Há exatos seis anos, em julho de 2018, contagiado pela bonita euforia de Paul Pogba, durante a celebração pelo título da Copa do Mundo de Futebol Masculino por sua seleção, a França, eu escrevi que “aquela comemoração também era minha”. Seis anos depois, reivindico como “minha” outra comemoração: a de Lamine Yamal, da seleção espanhola, vencedora do Campeonato Europeu de Futebol (Euro 2024).
Quem acompanha futebol razoavelmente sabe que Pogba e Yamal têm perfis distintos. Mas ambos, com as suas diferenças, fizeram o mesmo ao término das partidas finais acima referidas: levaram para dentro de campo as suas famílias.
Em 2018, Pogba levantou a taça junto com sua mãe e irmãos. Em 2024, Yamal colocou o seu irmão pequeno no colo, segurando com ele o troféu. Para além da minha identificação racial com Pogba e Yamal, as suas conquistas me mobilizam em outra dimensão, enquanto professor e pesquisador interessado em relações raciais, que é a de pensar significados da presença afrodiaspórica na Europa, tendo como eixo, neste caso, o futebol.
Vejamos: nascido na França, Paul Pogba é filho de Yeo Moriba, da Guiné, que foi a primeira mulher africana a levantar a taça de uma Copa do Mundo. E Lamine Yamal, nascido na Espanha, é filho de Mounir Nasraoui, de Marrocos, e Sheila Ebana, da Guiné Equatorial.
Estamos falando, portanto, de dois jogadores nascidos na Europa, mas filhos de imigrantes africanos. E o “mas” aqui é utilizado porque, apesar de serem europeus, Yamal e Pogba são alvos de discursos que, caso a vitória não venha, os colocam num lugar de inferioridade, de desumanização.
“Cuidado, se ele não se sair bem, vai acabar no semáforo.” Foi isto o que disse um comentarista da emissora de televisão Movistar, em abril deste ano, durante a transmissão de uma partida de futebol ao vivo, quando a câmera estava focada em Yamal.
“Yamal come presunto.” Foi o que cantaram torcedores espanhóis ao final do Euro 2024, um gesto de desrespeito ao fato dos muçulmanos não consumirem alimentos de origem suína. O Marrocos, onde nasceu o pai de Yamal, tem o islamismo como religião predominante.
Já Pogba, em 2019, meses após liderar a França rumo ao principal título do futebol mundial, foi chamado de “gorila” e “macaco” nas redes sociais após perder um pênalti. O que acontece com Yamal e Pogba, e com tantos outros jogadores nascidos negros nascidos na Europa e filhos de imigrantes africanos, expressa aquilo que certa vez declarou o jogador Karin Benzema: “Quando eu faço gols, sou francês. Quando não faço, ou as coisas vão mal, eu sou árabe”.
Benzema é francês, nascido em Lyon, e filho de argelinos. E isto o que exprimiu Benzema reflete uma questão ainda mais complexa: a perversidade do colonialismo e do racismo que perseguem as populações racializadas desde as tentativas de entrada no continente europeu.
Por exemplo: dias antes do mundo acompanhar a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, marcada pela defesa dos imigrantes, mais um barco com mulheres, homens e crianças do Senegal, Mali, Guiné e Gâmbia naufragava na costa da Mauritânia.
De acordo com a Organização Internacional para as Migrações, das cerca de trezentas pessoas que estavam na embarcação, 25 morreram e 165 estavam desaparecidos até o último dia 25 de julho.
Evidenciando a gravidade da situação, no período de dez anos, o projeto Migrantes Desaparecidos, da organização, registrou mais de 4 500 mortes e desaparecimentos de migrantes africanos na rota do Atlântico Ocidental. E apenas este ano já são quase duzentos mortos e desaparecidos no oceano.
Em “Discurso sobre o Colonialismo”, livro fundamental para a compreensão sobre as dinâmicas da exploração colonial europeia entre os séculos 15 e 20, Aimé Césaire escreveu que um dos resultados do colonialismo foi a criação de “sociedades esvaziadas de si mesmas, culturas pisoteadas, terras confiscadas, religiões assassinadas, magnificências artísticas destruídas, possibilidades extraordinárias destruídas”.
Ao trazermos a contribuição de Césaire para o assunto aqui discutido, a pergunta que fica é: quantas das pessoas mortas e desaparecidas na tentativa de entrada na Europa poderiam ser mães e pais de outros Yamal e Pogba? Quantas famílias e histórias são perdidas nesta travessia? Quantos possíveis troféus de Copa do Mundo ou Eurocopa ficam pelo caminho?
Quando afirmou que “meus ancestrais e meus pais sofreram para minha geração ser livre hoje, para trabalhar, para pegar o ônibus, para jogar futebol”, em resposta às ofensas sofridas em 2019, Paul Pogba também nos dizia sobre isso.
Entendo não ser possível falar de Yamal ou Pogba sem pensar nessas questões. Isto porque, por mais que eles vençam, por mais que eles comemorem, por mais que eles celebram, há sempre uma realidade que os/nos lembra da violência colonial e racista a que podem ser submetidos na hora seguinte.
Basta um pênalti perdido. Basta uma partida mal jogada.