A brasileira que uniu método científico à literatura e venceu prêmio internacional

Fernanda Ribeiro é a primeira mulher a levar o prêmio de revelação literária da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa

11/06/2024 às 17:00 | 7 min de leitura
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A brasileira Fernanda Ribeiro é a primeira mulher a vencer o Prêmio Revelação Literária da União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa. Aos 40 anos, a escritora é natural de São Gotardo, Minas Gerais, e seu livro "Cantagalo" fala sobre o casamento interracial. 

Com uma trajetória atípica entre os escritores premiados, a mineira começou a escrever literatura fazendo uso de um método acadêmico. 

Fernanda é Bacharel em Comunicação Social e doutora em Ciências do Desenvolvimento Humano, onde atua como pesquisadora no campo da neurobiologia das emoções. Como jornalista, é editora de ciência. 

Mas a rotina nas pesquisas acadêmicas com ratos de laboratório não a desviou da vontade de escrever. E logo em seu primeiro livro foi premiada. 

Fernanda chegou este mês a Portugal para o lançamento de "Cantagalo", que já está nas livrarias portuguesas. Por aqui, "Cantagalo", da editora Guerra e Paz, estará também na Feira do Livro de Lisboa —que vai até o dia 16 de junho, no Parque Eduardo VII, em Lisboa.

Nesta quinta (13), a escritora participa de uma sessão de autógrafos, às 16h, no Pavilhão da Editora Guerra e  Paz. Em setembro, Fernanda embarca para Cabo Verde para um encontro de escritores como parte da premiação. 

A escritora disputou o prêmio com outras 167 obras de 15 países, incluindo Timor-Leste, mais países de língua portuguesa na África, Senegal, Brasil, Alemanha, Polônia, Holanda, Reino Unido, Suíça e Israel.

O júri da premiação é formado por acadêmicos, críticos de literatura e escritores do Brasil, Portugal, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Timor-Leste, Guiné-Bissau e Macau. 

Fernanda Ribeiro nos concedeu entrevista no dia em que foi anunciada publicamente sua premiação. A escritora estava em casa, em São Paulo, sudeste do Brasil.

Confira trechos da conversa.

Capa de Cantagalo, obra de Fernanda Ribeiro. Crédito: Divulgação

BRASIL JÁ: Eu quero começar perguntando como é que está esse coração, esse sentimento?

Fernanda Ribeiro: Nossa, é assim, eu já sabia, né?, que eu tinha vencido... Que o Rui Lourido (UCCLA)  me ligou pra dar notícia. Foi em fevereiro que ele ligou e eu estava com dengue. E ele ligou e eu fiquei atordoada, assim, quando ele deu a notícia. Porque na hora eu fiquei assim: 'Gente, será que eu venci mesmo?' E depois eu mandei um e-mail pra UCCLA, até pra confirmar as informações que ele me passou de publicação. E aí eu fui processando a notícia,  foi uma felicidade, nossa... Porque é uma luta, né? A gente conseguir ser publicado.

E são restritos os concursos. Porque acho que tem muito concurso pra livro publicado  mas não para originais de inéditos, e é um concurso internacional. E isso que é legal também, todos os pais de língua portuguesa, o júri também, é um júri muito diverso, isso que é muito bom. 

É sua primeira obra, Fernanda? 

A primeira obra. Eu tenho, assim, conto publicado com amigos, porque eu participo de um coletivo artístico que se chama "Infâmia", que é um coletivo de escritores aqui no Brasil. Mas é meu primeiro livro, foi meu primeiro romance.

Como foi esse flerte com a literatura? Foi desde a infância? Quem estimulou você para a literatura? 

Desde a infância, sim. Eu sempre gostei de ler. Eu tenho, ali, uma lembrança de estar, acho que na pré-escola, e uma professora me incentivar a pegar livros na biblioteca. E eu morava numa cidade mineira muito pequena, chamada São Gotardo. É a capital da cenoura e fica no Triângulo Mineiro, perto de Uberaba. 

A professora incentivou a biblioteca, era uma biblioteca que antigamente funcionava um colégio de freiras, que ficava do lado dessa escola municipal. E aí eu fui lá, até na companhia dos meus pais, e me lembro do primeiro livro que eu peguei, que chamava "Elizabeth, a Vaca Fantasma". 

Era esse o título do livro. E aí foi um pouco se tornando um hábito, lendo, sempre lendo. Gostava de escrever. Aí fiz o curso de jornalismo na universidade. É por isso que eu vim pra São Paulo, estudei aqui na USP. 

Então você é uma colega (termo usado entre jornalistas para identificar pares). Chegou a exercer a profissão? 

Sim. E comecei a trabalhar com jornalismo, aí depois eu fui pra área de ciência, mestrado, doutorado, mas sempre lendo, flertando com a literatura e já fazendo meus esboços do que eu queria escrever. E, nisso, eu fiz em 2019 o, não sei se você já ouviu falar, que tem um curso que chama Curso Livre de Preparação de Escritor (CLIPE). É gratuito numa instituição aqui em São Paulo, que se chama Casa das Rosas. 

É um projeto muito bacana, eu acho que não tem igual no Brasil. Eles fazem um processo seletivo todo ano, pegam várias pessoas de diversas regiões do Brasil e têm toda uma preocupação com a diversidade. Então, tem homens, mulheres, sempre tem alunos trans, alunos da periferia. 

Até antes da pandemia ele era exclusivamente presencial. Aí, depois da pandemia, ele ficou online. Agora, eu acho que ele voltou a ser presencial. E ele é ministrado dentro de um museu, na Avenida Paulista. E nesse curso os professores são escritores brasileiros. Então, alguns são premiados, outros aí na luta, e eu gostei muito de ter conhecido e pegado as referências. 

Então, eu tive a ideia de escrever, começar a escrever seriamente, romance, colocar um método, uma disciplina. Aí, esse processo durou cerca de três anos, eu já tinha esboços do que eu queria fazer. Eu tinha uma ideia geral da história, ambientada em Minas Gerais, nesse universo ali do cerrado mineiro, relacionado às plantações de café. Então, eu comecei a esboçar a partir daí a história que veio a se chamar "Cantagalo", que é a fazenda fictícia do livro.

Você sabe que Cantagalo, no Rio de Janeiro, é uma favela? 

Eu pensei assim: Olha, eu acho que os cariocas vão ler o título e achar que eu estou falando da comunidade. E aí, Cantagalo, nas minhas pesquisas, era um nome de fazenda mesmo, e aí eu usei esse nome, que tem relação com um galo na história também.

Eu comecei a trabalhar em cima desses esboços em 2020, e em 2023 eu dei o livro por concluído. Nesse processo todo, eu fui submetendo a leituras críticas. Eu falo assim, que esse livro não foi nada solitário, porque muita gente leu, muita gente opinou, muita gente deu palpite.

Eu fiz leituras críticas profissionais, eu mandei para leitores profissionais para que eles me devolvessem. Então, isso me ajudou. 

Uma escritora acadêmica, né? Porque eu estou  tentando entender a sua relação com a literatura.

Eu sou doutora em Ciências do Desenvolvimento Humano. Eu tenho pesquisa no modelo animal, trabalho com rato. 

Eu falo que a literatura tem relação com a ciência também, porque, se você for ver a ciência, você tem que olhar para o que foi feito antes para poder fazer a ciência. Porque, que nem a literatura, eu sou muito crítica àquela ideia que diz que tudo que era importante já foi dito. Tem muitas pessoas que falam isso, que já foi dito, já existem clássicos, para que produzir coisa nova? 

Sempre existe coisa nova porque o que está sendo produzido hoje é com base no que foi produzido antes. O que você leu e como você entende o mundo agora, a partir de perspectivas que você vê nas obras literárias anteriores. Então, eu acho que é muito parecido com a ciência, você olhar e tentar entender o mundo e tentar explicar 

Essas leituras externas, esse trabalho acadêmico  da mestre e da doutora Fernanda você também fez para o livro esse é o segredo de sucesso. Qual o prêmio você recebeu? 

O livro vai ser lançado em junho, na Feira do Livro de Lisboa, pela editora Guerra e Paz. Em setembro vai ter um encontro de escritores em Cabo Verde, que faz parte da premiação e recebi também o valor de 3 mil euros. 

Eu nunca vejo a literatura tão incluída nos incentivos públicos, linhas de apoio. Sempre vejo muito mais incentivo para o audiovisual. Você percebe isso também? Como você enxerga esse mercado? Aí a gente fala de Brasil, obviamente, que é a sua realidade. 

Olha, eu falo assim pela minha experiência. O processo de escrever um livro é uma coisa que eu falo assim, você tem que querer demais mesmo, porque outra coisa não explica, porque não tem um incentivo realmente de concursos. Antigamente tinham editais, tinha um edital da prefeitura de São Paulo, por exemplo, que premiava o livro, o projeto de livro. Costuma ter o PROAC, só que também é pelo projeto de livro, mas premia um pouco os escritores.

Então, essa parte cultural aqui é uma concorrência muito grande. Recentemente teve o prêmio Maria Carolina de Jesus. Foi um prêmio que premiou, se eu não me engano, acho que  quarenta mulheres. Foi um prêmio restrito a mulheres. 

Agora, vamos falar em futuro, o que você está pensando? Já tem um próximo tema?

Agora, a próxima batalha vai ser publicar o livro aqui no Brasil. A editora Guerra e Paz cuida de todo processo editorial e eles lançam em Portugal, já assinei contrato com eles. Aqui, no Brasil, eu tenho a liberdade, isso que também é muito legal do Prêmio UCCLA, que eles dão essa liberdade de você poder procurar um editor e publicar no seu país. 

E eu já estou no processo. É algo, assim, que é muito concorrido. E mesmo com uma premiação dessa, você precisa muito ir atrás e tentar falar com os editores, o canal aqui do leitor... Do escritor chegar direto no editor, é muito difícil. E aí eu estou nessa batalha para encontrar uma boa editora para publicar o livro no Brasil.

E o próximo projeto, eu estou com outro romance, que é uma espécie de continuidade desse meu livro. Já é nos tempos atuais, mas tratando de muita questão que estava lá presente no século XIX continua presente agora em termos da sociedade brasileira. 

Consegue, sem dar spoiler, desenhar um pouquinho mais para a gente sobre essa novidade do próximo livro? 

Ele é ambientado também em Minas Gerais, numa cidade fictícia que se enriqueceu com a pecuária e trata das relações familiares. Principalmente daquela coisa do Brasil do quarto de empregada? De que as pessoas mantêm ali um quarto e muita gente mantém às vezes uma pessoa praticamente em trabalho escravo dentro de casa. Uma coisa que está muito presente nesse meu livro, no Cantagalo, e isso vai ser trazido para esse agora uma situação assim que persiste ainda.

Nota: O prêmio literário é promovido anualmente pela organização internacional União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA), em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa. 

É premiado um original de autor inédito, com a intenção de estimular a publicação de novas vozes em língua portuguesa.  O prêmio existe desde 2016.

Parecer do Juri - Prêmio UCCLA 2024

"Cantagalo é um romance de família, com Praxedes, nome obtuso, como centro da ficção. História de peripécias rápidas, diálogos vivos, o que atravessa este livro como rio subterrâneo é não só a condição feminina e a questão da escrita, mas a própria condição do Livro como possibilidade de escapar a uma vida vazia, concreta, feita de cenas sem sentido nesse lugar – Cantagalo – que é alegoria de todo o Brasil. Tudo numa dicção autêntica, um modo de pôr as personagens a falar que lembra, de facto, um outro mundo."

António Carlos Cortez - Crítico literário português, consultor do júri do prêmio UCCLA

Trecho da obra destacado pelo Júri

"De uma página a esmo:

A mulher desejar se casar é como um tropeiro querer que seus burros despenquem um a um no barranco, batendo palmas enquanto tudo que tem de valor desaparece no escuro sem fundo. Minha casa é escura. Meu pensamento, minhas horas, se acabam no trabalho de uma casa para dois. Trabalho que não acaba nunca. Se tiro o pó hoje, amanhã preciso tirar outra vez. A comida se come, as panelas ficam vazias, o excelente marido não gosta de feijão requentado. Roupa suja também não, ele troca de roupa duas vezes por dia, insinua que eu não esfreguei a gola nem debaixo do braço, apenas deixei de molho e isso é desleixo. Minhas manhãs se vão no preparo do almoço e na limpeza dos penicos. O excelente marido, se não o acompanho na sesta, pune-me com cara feia, achará defeitos no jantar. A tal da janta, nela emprego quase toda a tarde, gasto cabeça para variar nos preparos. Minhas leituras se acumulam no armário-livreiro, deixei há muito de escondê-las porque o excelente não abre aquelas portas, hoje me premiou com esta: "Os livros não fazem sentido porque há os jornais, não vou me entreter com histórias velhas quando posso saber de agora". Acha-se espirituosíssimo. Fiquei mais infeliz ao ouvir isso do que depois de me deitar com ele."

Redes Sociais: @fernandatribeiro @uccla_1985 @guerraepaz @feiradolivrodelisboa

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