A saúde mental da mulher imigrante. Crédito: Adobe Stock, reprodução

A saúde mental da mulher imigrante. Crédito: Adobe Stock, reprodução

A saúde mental da mulher imigrante

Psicóloga e antropóloga analisam para a BRASIL JÁ como a imigração afeta psicologicamente as mulheres estrangeiras

08/03/2024 às 09:51

No mês passado, a Ordem dos Psicólogos de Portugal e o Serviço Jesuíta aos Refugiados disponibilizaram em Portugal um kit gratuito com informações pertinentes à saúde mental de pessoas imigrantes. 

Segundo as organizações, o material —disponível em dez línguas— também foi distribuído em algumas escolas portuguesas e é possível encontrá-lo no site da própria Ordem

O objetivo do guia é prestar apoio aos refugiados, exilados e imigrantes em situação de vulnerabilidade, com indicações claras e precisas sobre como os grupos estrangeiros podem cuidar da saúde psicológica. 

Nesse contexto, mais do que concluir que a saúde mental é crucial, indissociável do bem-estar do ser humano, buscamos saber o porquê de as instituições mencionadas anteriormente buscarem um enfoque em pessoas imigrantes, ou forçadas a viver em outro país.

E, por ocasião do Dia Internacional de Mulher, qual é afinal o impacto psicológico da imigração no caso delas?

Para tentar entender, a BRASIL JÁ conversou uma psicóloga e uma antropóloga a respeito da importância de ações como a criação do guia e outras iniciativas que prestam apoio psicológico às mulheres imigrantes que vivem no país (confira mais abaixo).

Dados sobre a imigração feminina

Entre 2012 e 2018, segundo dados do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), as mulheres imigrantes superavam em número os homens estrangeiros em Portugal. Estudos mencionam que o período, principalmente entre 2014 e 2016, pode ser o auge da "feminização da imigração" no país.

A partir de 2019, os homens voltam a ser maioria, entretanto, o estudo mais recente do Observatório das Migrações afirma que é "crescente o número de mulheres que migram fora dos contextos de reagrupamento familiar". 

Quer dizer, tem sido mais habitual que as mulheres que chegam ao país o façam por "decisão própria e de forma autônoma". Em 2022, eram 372 392 mulheres estrangeiras em solo português, um 47,6% do total de imigrantes contabilizados no país.

A desvalorização da mulher a deixa vulnerável

Para Patrícia Alexandra Ramos Graça, psicóloga clínica e de aconselhamento há 15 anos, as mulheres, independentemente da identidade ou status, estão sempre mais sujeitas a uma maior vulnerabilidade numa sociedade pelo fato de estarem em uma posição de desvalorização e de não reconhecimento. 

“Face ao contexto social atual, a mulher imigrante está desprotegida de apoios sociais, judiciais, etc. e sujeita a sofrer por não ter as respostas para possíveis traumas que podem fragilizar e reduzir a um ‘fechamento’ sobre si mesma”, explica a profissional licenciada pela Universidade Autônoma de Lisboa. 

Patrícia conta que já ouviu relatos diversos de partilhas e histórias de mulheres que a fizeram notar essa vulnerabilidade em pacientes imigrantes e refugiadas. 

Isso envolve desde relações amorosas abusivas, com casos de ameaças e de coerção, passando por condições de trabalho que não permitem a elas ter acesso aos apoios sociais fornecidos, fora os atos discriminatórios no acesso a tratamentos médicos. 

Em alguns casos, a falta de domínio da língua também se torna uma ferramenta de violência.

Violência doméstica e violência institucional

Para a antropóloga brasileira Rita de Cássia Silva, que vive em Portugal há mais de 20 anos, olhar para mulheres no âmbito do direito da família, por exemplo, é um ponto de extrema relevância quando se trata de saúde mental. 

Segundo ela, quando se é mãe muitas delas acabam se tornando vítimas dos próprios maridos, sofrendo violência doméstica, e ainda sendo revitimizadas institucionalmente. 

Citando casos concretos, ela explicou que há inúmeros relatos de mulheres que tentam lutar pela guarda de seus filhos, mas durante o processo escutam de profissionais do sistema judicial português que, por estarem mal psicologicamente, são incapazes de criarem os seus filhos.

“Há mães brasileiras que perderam tudo em Portugal, tiveram de retornar ao Brasil e vivem destroçadas interiormente. As crianças crescem aqui como se fossem órfãs de mães. Acredito que as associações civis formadas por profissionais éticos na área da psicologia —e que têm formação para trabalhar interseccionalmente— devem ter apoio governamental para trabalhar com mulheres imigrantes, bem como, trabalhar nas equipes multidisciplinares de apoio técnico nos tribunais de família."

A antropóloga, que trabalha em projetos de arte e educação com crianças e jovens desde 1996, afirmou ainda que, infelizmente, muitas instituições “possuem viés negacionista sobre a existência de racismo, xenofobia e discriminação de género na sociedade portuguesa”, o que ela avalia que atrapalha o trabalho com essas populações atingidas pela revitimização. 

Como seguir em frente

Voltando com a psicóloga Patrícia Alexandra Ramos Graça, a profissional acredita que um ambiente menos nocivo a essas mulheres passa necessariamente pelo rompimento da sociedade com os estereótipos e preconceitos criados sobre imigrantes —e que isso só é possível através de uma educação que aceite o estrangeiro. 

“Não quer dizer que o imigrante não terá de fazer a sua parte para ser aceito, algo que já acontece, mas que não é visto pela grande parte da sociedade. Será sempre necessário uma efetiva inclusão para que um lado e o outro possam coexistir e é isso que, na minha opinião, tem falhado sistematicamente”, pontua.

Como afro-portuguesa, Rita de Cássia, que também é doutoranda em Ciências da Comunicação pela Faculdade Nova de Lisboa, me disse que jamais perderá suas raízes ancestrais e que é importante, a cada dia, reafirmá-las todos os dias. 

“O Brasil também é aqui, a África também é aqui, a Ásia também é aqui. Penso que se começarmos a ter uma visão abrangente a partir do âmbito educacional em Portugal, poderemos vir a co-criar uma sociedade verdadeiramente pós-racista, pós imperialista e pós-patriarcal”, disse.

Sobre se há diferenças emocionais entre pacientes vindas de países de língua portuguesa para aquelas que não dominam a língua, Patrícia Graça acredita que exista uma convergência, pois, de uma forma ou de outra, chega-se ao mesmo ponto. 

“A partir do momento que se imigra, independentemente do país de origem, o rótulo já existe. A língua, o falar, ler e compreender, acaba por ser menos um obstáculo, contudo, todos os trâmites, processos burocráticos e integração são os mesmos”, disse. 

A profissional acresccentou a questão do recorte racial dessas mulheres, pois, segundo ela, se adicionarmos o fator etnia, a formação acadêmica, profissional e o poder econômico, as diferenças e as divergências na forma como se é tratado serão mais marcantes —independentemente de se falar português ou não. 

Questão colonial

Na visão de Rita de Cássia, a questão colonial é decisiva para essa análise emocional a partir da língua e do recorte racial de mulheres imigrantes em Portugal. 

Ela lembra que parte das africanas são as mais atingidas, por não falarem a língua portuguesa, e assim acabam se tornando alvos fáceis para a prática de discriminação de gênero interseccionada com o racismo, a xenofobia, o classismo, a aporofobia, o machismo, entre outros 

“É crucial que possamos lutar contra este modus operandis. Ser mulher, negra e pobre em Portugal, imigrante ou não, é uma verdadeira desgraça. No entanto, há muitas que estão a fazer frente, a acreditar em si próprias, a co-criar redes de apoio e a compreender que existimos e que temos o direito de acessar os espaços onde quisermos estar, de desenvolver os nossos potenciais, direito que deve ser salvaguardado pelas instituições portuguesas”, complementa.

Mulheres imigrantes e eleições

Ambas especialistas também alertaram para o impacto que o resultado das eleições legislativas do próximo domingo (10) pode causar a mulheres imigrantes. 

Para Patrícia, será um dos momentos mais importantes desde a Revolução dos Cravos, período em que as mulheres conquistaram muitos direitos depois de 48 anos de ditadura no país. 

“O aborto voluntário foi legalizado em 2007 e em vésperas de eleições legislativas. Há quem queira reverter a lei para retirar um direito de escolha e de opção da mulher”, acrescentou a psicóloga.  

Já para Rita de Cássia, seria uma tragédia para imigrantes muito parecida com a que aconteceu no Brasil, quando a extrema direita chegou ao poder, em 2018. 

“As mulheres imigrantes que lutam contra violência doméstica, divórcios litigiosos, que estão anos à espera de documentação regularizada perante o Estado português, ou as que enfrentam problemas financeiros por causa do desemprego, ficariam em situações mais vulneráveis ainda, uma vez que o discurso de ódio contra a imigração por parte de políticos da extrema direita e da direita produzem reverberações educacionais e institucionais nefastas que recaem sobre os seus corpos no quotidiano."

Últimas Postagens