Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial. Crédito: Agência Brasil

Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial. Crédito: Agência Brasil

Anielle Franco e a (esvaziada e branca) agenda antirracista em Portugal

Ministra da Igualdade Racial deixou movimento negro fora de seus compromissos, mas incluiu organização contestada por lideranças pretas

28/06/2024 às 13:26 | 6 min de leitura
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A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, deixou Brasília na manhã de segunda (24) e desembarcou em Lisboa no dia seguinte. A exemplo de outras centenas de autoridades e servidores públicos dos três poderes da República brasileira, a ministra veio a Portugal participar do Fórum de Lisboa, evento idealizado pelo decano e ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. 

O seminário é jocosamente chamado do outro lado do Atlântico de “Gilmarpalooza”, numa referência ao festival de música Lollapalooza.

Anielle Franco, como dito, não foi a única autoridade a aportar em Lisboa. Ao contrário. 

Outros tantos, tal qual a ministra, encaixaram agendas paralelas para justificar a viagem, dando-lhe um verniz republicano ao grande encontrão, um evento privado, financiado pela Fundação Getúlio Vargas, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, o IDP, fundado pelo próprio ministro em 1998 e administrado por seu filho, Francisco Mendes.

Entre as centenas de convidados do fórum, há, além de juristas e pesquisadores, empresas com interesse direto nos servidores públicos presentes na capital portuguesa. 

No evento, Anielle provavelmente notou, mas preferiu deixar passar que ela, a ministra brasileira de Tecnologia, Luciana Santos, a procuradora brasileira Manuelita Hermes e a senadora Eliziane Gama eram as únicas mulheres negras entre os 328 convidados a palestrar no fórum.

Anielle Franco, irmã da vereadora Marielle Franco —assassinada em 2018 por um grupo paraestatal e paramilitar conhecido popularmente no Brasil como milícia e símbolo desde então da luta antirracista pelo mundo—, teve seis encontros em sua agenda durante a estada em Lisboa. 

Nenhum deles, porém, foi com movimentos sociais da luta antirracista que pessoalmente encarna e, principalmente, representa em sua função pública. 

Em vez disso, Anielle preferiu encontros burocráticos e inócuos, dos quais nenhum compromisso saiu a não ser o de discutir alguma coisa no futuro, algo que poderia ter sido feito a distância, por videochamada, por exemplo. 

Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial (esquerda), e Margarida Lopes, ministra da Juventude e Modernização. Crédito: Josiara Diniz

Na terça (25), a ministra se encontrou com o embaixador do Brasil, Raimundo Carreiro Silva, e com a ministra da Juventude e Modernização de Portugal, Margarida Lopes. No dia seguinte, Anielle participou do Painel ESG e Sustentabilidade Corporativa do Fórum de Lisboa e assinou um memorando no Observatório de Xenofobia e Racismo. 

Por fim, também na quarta (26), na única agenda em que poderia cobrar melhorias para seus conterrâneos, a ministra esteve com o secretário de Estado Adjunto da Presidência, Rui Freitas, e o presidente da Agência para Integração, Migrações e Asilo, Luís Goes Pinheiro.

Depois da participação no Fórum Jurídico, a ministra Anielle Franco conversou com alguns jovens negros na Universidade de Lisboa. Crédito: Deborah Lima, Brasil Já


O mais próximo que teve do tema de sua pasta foi a assinatura de um memorando no Observatório de Xenofobia e Racismo, da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Ainda assim, a instituição é alvo de críticas por ser inerte e pouco expressiva em relação à causa. 

O observatório foi criado no dia 17 de março de 2023 com a missão de elaborar políticas que auxiliem Portugal a cumprir metas do Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação. 

A ideia era que um grupo de pesquisadores produzisse dados sobre as violências sofridas por negros. Em 2 de maio de 2024, mais de um ano após o início dos trabalhos, a instituição informou à BRASIL JÁ não dispor de informações de investigação autônoma, pois ainda se encontrava “em estruturação”.

Ou seja, não há medidas concretas para serem postas em prática no memorando assinado durante a visita da ministra à faculdade. O texto afirma, em resumo, que o ministério brasileiro e o observatório farão reuniões nos próximos dezoito meses para, só então, estabelecerem o que possivelmente constará em um novo documento de intenções. 

Informa o texto que o documento “representa apenas uma formal pretensão de união de esforços para aprimoramento da execução de suas atividades institucionais”. Em outras palavras: nada.

No ano passado, Anielle Franco já havia estado em Portugal para a Conferência Luso-brasileira, evento que marcou a reaproximação entre os dois países depois de sete anos de hiato. 

Na altura, foi celebrado um tratado que supostamente estabelecia uma “troca de informações” para gerar oportunidades de bolsas, intercâmbios e acordos bilaterais para derrubar barreiras do preconceito racista no dia a dia. De novo, pouco ou nada foi feito desde então.

Encontro entre a ministra Anielle Franco e os ministros do Supremo, Gilmar Mendes e Flávio Dino durante o Fórum Jurídico de Lisboa. Crédito: Deborah Lima, BRASIL JÁ

As críticas ao observatório

Em entrevista à BRASIL JÁ para a edição especial de junho que discute racismo e reparação colonial em Portugal, a ativista antirracista Paula Cardoso criticou o observatório. 

“Só tem pessoas brancas. Foi entregue a pessoas brancas que nem tem currículo com questão racial. Não temos o privilégio de escolher não fazer nada. Tenho essa responsabilidade. Sangue foi derramado dos nossos países para que possamos estar aqui livremente expressando nossa opinião. O mínimo que temos que pedir ao sistema é sermos ouvidos e não estamos a ser escutados”, afirmou.

No ano passado, Paula Cardoso, jornalista fundadora da rede digital “Afrolink”, publicou em coluna no site Setenta e Quatro críticas à falta de representatividade negra do observatório. “As escolhas, recém-publicadas em Diário da República, escancaram o descompromisso público com a luta antirracista. Afinal, até agora, contam-se três pessoas no Observatório, todas brancas, cuja trajetória profissional não permite compreender como foram parar aí. Não é a realidade racista que falta conhecer neste país, são as pessoas que essa realidade continua a excluir e a matar”, escreveu em 18 de maio de 2023.

Durante o fórum, a BRASIL JÁ perguntou à ministra, entre outras coisas, se ela conhecia os questionamentos referentes à falta de representatividade do movimento negro no observatório, e se ela não estranhava que a instituição fosse liderada por pessoas brancas. Anielle demonstrou incômodo com a pergunta, respondendo que “estranho seria se a gente não estivesse fazendo nada”. 

A ministra seguiu dizendo que estranharia não estar em espaços de poder e decisão como este, em referência ao fórum. Ela, mulher preta, preferiu tergiversar, misturando assuntos que não estavam no escopo da pergunta.

“Estranho é a gente ter o Observatório de Xenofobia e Racismo sem que correlacione com pessoas negras. Então, eu não acho estranho. Pelo contrário. É que nem quando criticam: ‘Ah, você vai estar no fórum jurídico’. Sim, eu vou estar onde eu quiser. Porque a gente é criada, estudada, para que a gente esteja e possa adentrar espaços de decisão, de poder, de estudo”, afirmou a ministra. E seguiu:

“Tem duas coisas na sua pergunta que precisam ser ditas, que é: o racismo não é só pauta de negros. Assim como a LGBTfobia não é só pauta para LGBTs. A gente não pode sentar aqui e esperar: ‘Ah, porque ela é branca, eu não vou sentar’. Pelo contrário, se ela é uma pessoa branca, ela tem que ser uma aliada nessa luta, porque muitas das vezes quem vai chegar primeiro nessa pauta são pessoas brancas e não a gente”.

Ter brancos como aliados na luta antirracista não era a questão, mas sim a falta de representatividade no fórum e no observatório onde a ministra deixou sua assinatura. Paula Cardoso comentou a afirmação de Anielle dizendo ser incompreensível como “figuras com tanto letramento racial conseguem compactuar com esse tipo de prática”, em referência à inoperância do observatório. 

“Não consigo perceber mesmo e fico triste de saber que a resposta foi essa”, acrescentou. Segundo Cardoso, a ida da ministra brasileira era uma boa oportunidade de cobrar um posicionamento institucional. “Se fosse um observatório para promover a igualdade de gênero não estariam todos indignados com um elenco todo masculino?”, indagou. 

Recentemente, a jornalista foi ao observatório e também mencionou a falta de representatividade. 

“Houve embaraço, basicamente era um elefante branco na sala, ninguém falava naquilo, mas eu tive de falar. Até porque não são só as pessoas que estão na liderança do observatório, todos tem currículo na área de direitos humanos, mas nada na área racial. Como se o combate ao racismo não exigisse uma especificidade que vai muito além de uma abordagem genérica”, afirmou. 

“Não faz sentido nenhum que esse órgão seja liderado por essas pessoas. Outra questão que seria interessante discutir: onde está o estatuto do Observatório? O que ele já fez? Por que não fez mais nada? Qual é o papel desse Observatório? Isso não é claro. Porque observar, nós já observamos que existe”, acrescentou a jornalista. 

A reportagem da BRASIL JÁ fez as mesmas perguntas ao observatório a sobre a falta de representatividade, mas não obteve resposta.

Outra voz sonora na luta antirracista em Portugal, a socióloga Cristina Roldão também questiona os valores do Observatório do Racismo e da Xenofobia. No ano passado, quando o governo anunciou as nomeações, Roldão apelidou a instituição de “observatório branco”. 

Era o título de sua coluna no jornal Público, no dia ​​16 de março de 2023. A ativista disse que o governo escolheu de propósito alguém com um percurso de relevância no feminismo e não no antirracismo —se referindo a Teresa Pizarro Beleza. 

Roldão não quis desmerecer a trajetória da liderança, mas disse que defendia estudiosos com currículo na área étnico-racial para assumir o órgão. 

“Não é um bom prenúncio se atendermos à forma como o governo se tem demarcado dos movimentos antirracistas da sociedade civil e apresenta o ORX [o observatório] como uma coisa da academia. Com esta opção sobre a direção do ORX, perdeu-se mais uma oportunidade de dar um sinal de compromisso e orientação às instituições e à sociedade em geral. E perdeu-a propositadamente”, criticou, à época.

No dia 17 de março de 2023 foi assinado entre a NOVA School of Law e o Governo português o protocolo para a criação do Observatório do Racismo e Xenofobia. Crédito: Divulgação

O que informa o ministério

Em nota, o Ministério da Igualdade Racial afirmou que o retorno de Anielle a Portugal "é o desdobramento de uma agenda iniciada no ano passado, que incluiu reunião de escuta e troca com os movimentos sociais". 

A pasta acrescentou que "as escutas embasaram o desenvolvimento das ações necessárias para a efetivação do memorando assinado esta semana" e que "acordos bilaterais são compromissos firmados entre governos, a partir de instrumentos que permitem avançar em medidas concretas que possam refletir, neste caso, na vida de brasileiras e brasileiros, e isso inclui a promoção da igualdade e enfrentamento aos casos de xenofobia e racismo".  

O texto afirma que "a gestão do Ministério da Igualdade Racial tem no diálogo com a sociedade civil e na transversalidade seu método de construção política e com base nessa premissa constrói as políticas".

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