Estudante brasileira de medicina veterinária denunciou racismo, xenofobia e apologia ao nazismo em grupo universitário; MP arquivou caso. Crédito: Arquivo pessoal

Estudante brasileira de medicina veterinária denunciou racismo, xenofobia e apologia ao nazismo em grupo universitário; MP arquivou caso. Crédito: Arquivo pessoal

Brasileira denuncia racismo em universidade e MP arquiva caso: 'Eu me sinto inútil'

Jennifer Melo foi às autoridades expor a propagação de ódio na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

13/02/2025 às 17:18 | 5 min de leitura | Direitos Humanos
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"Ninguém me acolheu. Eu me sinto inútil, sabe? Como assim tudo o que eu falei, tudo o que eu mostrei, não deu em nada?"

O desabafo é de Jennifer Melo, 26 anos, intercambista brasileira da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, a UTAD, em Vila Real. A estudante conversou nesta quinta (13) com a BRASIL JÁ sobre a discriminação e o racismo sofridos na instituição de ensino. 

Como revelou o jornal Expresso, Jennifer foi um dos alvos de mensagens de ódio enviadas num grupo de WhatsApp de residentes universitários da UTAD. 

No grupo exposto por ela, circulavam mensagens de apologia ao nazismo, xenofobia, racismo e outras manifestações de discurso de ódio

Depois de vir a público e apresentar provas dos ataques às autoridades portuguesas, Jennifer foi isolada pela instituição que deveria acolhê-la e, pior ainda, descobriu que a denúncia feita ao Ministério Públuco não daria em nada.  

Jennifer, que é da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, foi aluna de intercâmbio em Portugal de agosto de 2023 a fevereiro de 2024, depois de ser escolhida num disputado processo seletivo. Ela contou à reportagem que o racismo era sistemático e durou toda a jornada acadêmica. 

Ataques virtuais

O caso começou com uma reclamação de barulho numa das residências universitárias. Um aluno, irritado com a situação, fez uma queixa informal no grupo, e, como resposta, um colega enviou um "sticker" —uma figurinha— de uma mulher obesa sentada no colo de um homem. 

Mas a troca de piadas de mau gosto virou um comportamento perturbador e criminoso. A conversa seguiu e surgiram imagens de teor nazista, racista e até mesmo pedófilo. Jennifer, que é negra, disse que não podia se calar diante daquelas imagens e protestou.

Diante da queixa, outro aluno respondeu com uma imagem mais chocante: um jovem branco nas costas de um homem negro, acompanhado de uma frase que dizia: "Eu adoro negros, até comprei um." 

Na conversa, a que a BRASIL JÁ teve acesso e por decisão editorial prefere não reproduzir, um estudante responde que se tratava de "humor negro", tentando desqualificar as queixas de Jennifer e de outros alunos ofendidos com a figurinha. Para os integrantes brancos do grupo, aquilo não significava nada.

Em outra situação parecida, em 9 de novembro de 2023, o caso foi reportado à reitoria da universidade. Em outro grupo de WhatsApp, alunos do curso de medicina veterinária compartilharam imagens pornográficas explícitas e de conteúdo pedófilo, além de, novamente, racistas e xenófobicas. 

Para Jennifer, o caso tomou proporções alarmantes.  Em email enviado ao vice-reitor para Internacionalização da UTAD, Luís Leite Ramos, Jennifer solicitou uma intervenção imediata. O vice-reitor respondeu rápido, e disse que se comprometeria a responder de forma adequada: 

"A UTAD não tolerará nem deixará de combater qualquer tipo de manifestação, pública ou privada, discriminação, xenofobia, racismo, sexismo ou afim que ocorra no seio da sua comunidade acadêmica", afirmou.

Mas a promessa de resposta dura aos ataques não passou disso: uma promessa. Os alunos responsáveis pelas mensagens foram ouvidos e pediram desculpas por escrito. No entanto, Jennifer disse que sofreu pressão para desistir de levar a denúncia às autoridades.  

Ela foi chamada para três reuniões durante o processo e em todas afirmou que não foi acolhida, mas sim desencorajada a seguir em frente. 

A certeza da impunidade

A BRASIL JÁ teve acesso aos documentos encaminhados por Jennifer às autoridades portuguesas. São imagens de captura de tela e textos reproduzindo as mensagens trocadas nos grupos. 

Um dos trechos mostra que, no dia 22 de novembro de 2023, um dia antes da abertura de procedimento interno da universidade, foi criado um novo grupo no WhatsApp para os alunos se prepararem para a reunião sobre as denúncias feitas por Jennifer. 

O nome do grupo era: "grupo livre de denúncias ou relacionamentos a estudantes mesquinhos da UTAD". A troca de mensagens indicava que a estratégia era desqualificar e negar as acusações, especialmente aquelas feitas pela estudante brasileira. 

Com ao menos trinta membros, o então novo grupo despejava mais ódio e mensagens de cunho nazista. Um dos membros enviou um sticker com um pedaço de carne, acompanhado da frase "cozinhando com Hitler". 

Outro integrante enviou uma imagem de Hitler usando uma camisa do Supergasbrás e carregando um botijão. Logo depois, um participante comentou: "Eu só entrei (no grupo) porque pensei que iam fazer um leilão de pretos... estou desapontado." 

A sequência de mensagens segue com um dos membros escrevendo em alemão a seguinte mensagem (traduzida): "Olá, bem-vindos à Alemanha. Aqui você pode ir para a câmara de gás ou para o conselho." Vários outros alunos também responderam com stickers de saudação nazista.

Jennifer disse que estava incrédula com as mensagens. No dia seguinte, em 23 de novembro, depois que os alunos foram ouvidos por representantes da universidade, a situação parecia ter piorado. No mesmo grupo, os participantes seguiam debochando e compartilhando discursos de ódio.  

Um dos integrantes escreveu: "O último pede desculpa aos betos [gíria portuguesa que se aproxima de playboy, no Brasil] que nos denunciaram na resi." 

Outro compartilhou um sticker de Hitler nu fazendo saudação nazista, no que um terceiro respondeu: "Parece que não ouviste o suficiente na reunião (...) Era o único sem medo das ameaças?" 

As virulentas mensagens deram a sensação a Jennifer de que o caso estava fora de controle. A denúncia dela parecia estar criando mais resistência do que reflexão entre os alunos.

Depois do pedido de desculpas formal e manifestação da universidade, o caso foi levado ao Ministério Público, que arquivou o caso.

O argumento do procurador que assinou a decisão foi o de que jovem não tinha "noção de estar a cometer um crime de pornografia de menores" e alegando que as imagens haviam sido compartilhadas em um "contexto de brincadeira". 

As imagens racistas e nazistas, por sua vez, não foram analisadas ou comentadas pelo Ministério Público, tendo sido consideradas “só uma observação” e “apenas os crimes de incitação a pedofilia” foram considerados “relevantes”.

Impunidade e falta de apoio institucional

Jennifer classifica como omissa a conduta das autoridades acadêmicas e do Ministério Público. Para ela, o desprezo institucional pela gravidade do caso foi frustrante. "Esse sentimento de impunidade é bizarro porque os professores não fazem nada", afirmou à reportagem. 

A estudante também se queixou de não ter apoio da universidade. 

"Ninguém nunca chegou pra falar: 'Jennifer, eu lamento pelo que você tá passando.'"

Sem uma política clara de acolhimento e se sentindo invisível na universidade que a selecionou para o intercâmbio, Jennifer disse que ficou profundamente desanimada. Ela passou a ver a sala de aula como um ambiente hostil, repleta de agressões verbais, sem interação e que a excluía.

"A universidade não está preparada para esse 'boom' de alunos internacionais que eles receberam", afirmou a jovem, se referindo à ausência de políticas internas de integração e cuidado com estrangeiros. 

No site institucional, a universidade divulga que, dos mais de 8 500 estudantes, 12% são internacionais. A página da UTAD também menciona que no corpo estudantil há mais de cinquenta nacionalidades, mais de 460 acordos internacionais e mais de setecentos acordos Erasmus. 

A reportagem enviou email à vice-reitoria para Internacionalização da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, nesta quinta (13), com perguntas e pedido de manifestação sobre o caso. A resposta veio no último sábado (15), em nota.

A UTAD confirmou que recebeu uma denúncia no dia 10 de novembro de 2023, "sobre alegados episódios de discriminação ocorridos num grupo privado de estudantes, na rede social WhatsApp, através da estudante Jennifer Oliveira Melo". 

Segundo a Universidade, na época dos fatos foram "tomadas as devidas diligências, foi prestado todo o apoio à estudante, quer pelos órgãos da Universidade, quer pela própria Associação Académica, e durante o processo, a UTAD manteve o contacto com a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, instituição de origem da estudante em mobilidade".

Em resposta ao arquivamento da queixa pelo Ministério Público, a UTAD afirmou que respeita a decisão do órgão, que possui competência constitucional para exercer a ação penal e zelar pela legalidade democrática. 

No entanto, a universidade reforçou seu posicionamento de repúdio a qualquer manifestação de discriminação, xenofobia, racismo, misoginia ou sexismo dentro do seu campus ou na comunidade acadêmica. A instituição declarou ainda que, sempre que necessário, tomará as medidas internas e judiciais cabíveis diante de situações desse tipo.

Impacto emocional e social

"O sentimento é de muita injustiça e falta de empatia", afirmou Jennifer ao comentar o desamparo que sentiu após apresentar as denúncias. O apoio que teve veio e amigos próximos. 

"Na época, eu pensei: 'Eu vou embora daqui a um tempo. Eu tenho apoio, porque eu tive apoio de amigos, mas outras pessoas não vão ter'."
Jennifer Melo estava vinculada ao Laboratório de Parasitologia da UTAD e chegou a desenvolver quatro livros didáticos com o grupo. Crédito: Arquivo pessoal

A solidão e o medo de represálias fizeram com que ela cogitasse voltar para o Brasil antes do tempo previsto. Mas, segundo ela, ficar significava se opor ao silêncio. "Não é possível que isso continue acontecendo", disse. "Eu lutei muito para estar aqui e fiz história. Fui uma das melhores alunas do laboratório".

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