Numa tarde de sexta ensolarada e quente de abril, encontrei o cantor Luca Argel em Santarém, a 82 quilômetros de Lisboa, entre um intervalo de um ensaio e seu show Sabina. Naquela noite, Luca se apresentou no Teatro Sá da Bandeira e, como de costume, às sextas vestia branco, uma tradição entre os adeptos do candomblé —religião de matriz africana que diz frequentar, mas não ter sido iniciado ainda.
“Quando eu comecei a cantar samba, simultaneamente eu comecei a pesquisar a história das músicas, dos compositores... E se você lê ou ouve sobre samba e não se sente envolvido com religiosidade, você não ouviu samba. Tem algo de errado aí”, disse Luca, entre sorrisos, à BRASIL JÁ.
Luca orgulha-se de ser mangueirense e torcedor do Fluminense igual ao Cartola. Nascido e criado na Tijuca, bairro vizinho ao Morro de Mangueira na zona norte do Rio de Janeiro, diz que torcer pela Estação Primeira seria natural, mas a proximidade com a escola aumentou ao ver, ainda pequeno, sua mãe vibrar com a Verde e Rosa na Sapucaí, a passarela do samba.
Músico, poeta e escritor, ele tem usado no seu trabalho referências às raízes do samba e as conexões com a herança colonial portuguesa. O carioca chegou a Portugal em 2012 de maneira não planejada. No Rio, era professor de música numa escola municipal e queria ampliar as possibilidades profissionais com um mestrado.
Luca lançou livros de poesia publicados no Brasil, na Espanha e em Portugal, e cantou “Tanto Mar” de Chico Buarque no Festival da Canção deste ano. A música é uma das que os portugueses mais gostam de ouvir quando celebram a sua democracia. Muito ativo politicamente, Luca falou sobre sua relação com Portugal.
Leia trechos da entrevista:
Você se apresentou no Festival da Canção da RTP justamente no ano comemorativo dos sessenta anos do festival e dos cinquenta anos do 25 de Abril. Mais ainda. Interpretou “Tanto Mar”, de Chico Buarque. Como foi?
Nossa. Esse foi um dos acontecimentos mais interessantes da minha carreira. Fi- quei muito feliz que eles tenham me cha- mado. Quando chegou o convite, eu fiquei feliz demais e reorganizei minha vida para participar do programa. Eu saí do TV direto para o aeroporto. Tinha uma viagem mar- cada, mas deu certo.
Perguntei sobre o que sentiu no festival porque você é de esquerda, de corrente marxista, e houve uma celebração ali da luta democrática em Portugal. Fala um pouco sobre sua relação política com Portugal.
Quando eu cheguei aqui, em 2012, o país es- tava saindo da crise [política e econômica]. Na minha primeira semana em Portugal foi dia de uma das maiores manifestações do país contra a Troika*. Fui à manifesta- ção no Porto e fiquei impressionado e com uma imagem romantizada da capacidade de mobilização dos portugueses. Mas eu tive sorte porque essa mudança no primeiro momento foi muito boa para a cultura.
E como foi sua ida à Festa do Avante no ano passado?
O Avante é um festival muito interessante. Político e organizado por um partido político. A adesão é grande e o público vai pela ideologia. Isso é bonito e dá uma esperança... Mas quando vem as eleições percebo que é um recorte. A primeira vez que fui ao Avante foi ano passado para uma apresentação e foi uma das mais marcantes da minha carreira. Eu cheguei cedo, fiquei percorrendo o festival para entender como funcionava, ver o público. Foi legal.
E hoje como você enxerga o atual momento político de Portugal, num contexto em que a centro-esquerda deixou o governo, a centro-direita ocupou o espaço de poder, mas não completamente, e a extrema direita nunca foi tão votada?
Sinto preocupação pelos imigrantes. O país depende muito dos imigrantes e a imigração é o espantalho usado pela extrema direita para colocar medo nas pessoas. Usam-na como manobra dizendo que o imigrante vai tirar o emprego do nacional, e o resultado dessa eleição é uma expressão de campanha de desinformação por parte da extrema direita.
No Brasil, 2022 teve uma inversão. Mas lá a extrema direita ainda existe e é barulhenta.
Eu vivi o 2018 estando aqui em Portugal. Estava cantando numa roda de samba e atualizava o tempo todo o [portal de notícias brasileiro] G1 pelo celular e, de repente, veio a notícia de que o [Jair] Bolsonaro tinha vencido aquela eleição. Para continuar o show foi difícil, ainda tinha um apoiador dele gritando. Foi complicado. Em 2022, eu vivi o oposto. Também num samba, veio o resultado das eleições e o alívio.
O álbum Sabina é uma homenagem ao candomblé?
Não chega a ser uma homenagem, mas usa muito os ritmos do candomblé para contar histórias. O álbum fala de “Sabina”* que eu conheci por meio de um texto do Luiz Antonio Simas [historiador, compositor e escritor brasileiro]. Peguei trechos do tex- to e os coloquei nas canções. O material é uma mistura de realidade e ficção e esse trabalho também foi editado em história em quadrinhos. O show “Sabina” combina sonoridades afro-brasileiras com um boca- do de versatilidade entre o rock e o funk e, claro, muito samba.
Por que você decidiu vir para Portugal?
Não era planejado estar aqui. Eu era professor de música na cidade do Rio de Janeiro e queria fazer um mestrado. Um amigo me sugeriu fazer na Universidade de Évora. Vim, cursei seis meses de Criação Artística. Não gostei e troquei para outro mestrado, agora, em Literatura, na Universidade do Porto.
Foi o mestrado que o influenciou a se lançar como escritor?
Não. Acho que mesmo se eu não tivesse feito esse mestrado eu teria lançado os livros que escrevi.
Cantor, compositor, poeta, professor, escritor. São muitos artistas dentro de você, né? O que tem de trabalho para esse ano?
[As bochechas de Argel coram enquanto ele ri de timidez e não responde.]
Você enfrenta uma plateia gigante e fica tímido quando falo dos seus múltiplos talentos?
O palco é mais fácil [mais risos]. Para esse ano eu me preparo para lançar um álbum com dez faixas de músicas regravadas. Será mais para o final do ano e nos meus planos profissionais também estão incluídos fazer shows no Brasil. Quando morava no Brasil, eu era professor de música então não me apresentava. A vida de cantor aconteceu aqui em Portugal.
É romântico?
[Luca respira fundo] Taí uma boa pergunta. Sou romântico!
À moda antiga?
Não! Jamais. Esse romantismo à moda antiga tem muito machismo também. Eu sou um romântico moderno.
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