A partir de julho, conseguir o Número de Identificação de Segurança Social, o NISS, virou um desafio para imigrantes em Portugal. A numeração equivale ao NIS brasileiro (Número de Identificação Social), ou seja, serve para ter acesso a benefícios sociais e trabalhistas.
No Brasil, ao ter a carteira de trabalho assinada pela primeira vez, o NIS passa a se chamar PIS (Programa de Integração Social), nome mais conhecido.
Em Portugal, no entanto, estrangeiros têm tido dificuldades para gerar o NISS. Um professor e jurista moçambicano, que pediu para não ser identificado, contou à reportagem o que tem passado para tentar regularizar sua situação no país.
Ele chegou a Portugal no fim de junho de 2024, coincidindo com as mudanças na emissão do NISS decretadas pelo governo.
Em julho, além da documentação padrão (identidade e comprovante de moradia), também começaram a ser exigidas evidências específicas que comprovem a situação de trabalho e a regularização da residência no país.
"Estou enfrentando dificuldades porque me foi negado o NISS por não ter um contrato de trabalho, e quando vou às empresas, estas me pedem o NISS para poderem me contratar", afirmou.
O moçambicano chegou a Portugal com um visto de procura de trabalho e contou que as fichas para candidatura de emprego exigem o preenchimento do número do NISS. "Sem isso, a ficha não avança", lamentou.
Um sonho que pode acabar
A armadilha tem retardado os objetivos do moçambicano e seus planos em Portugal. Nascido na capital Maputo, ele veio ao país europeu em busca de novas oportunidades e para realizar o sonho de viver numa grande cidade.
"Cresci numa comunidade distante das cidades. Eu sempre quis morar na cidade. Quando terminei o nível médio, fui para uma cidade me formar como professor primário. Depois deste curso, fui enviado a uma escola muito distante de tudo, sem água potável, energia, rede de telefonia móvel e transporte", lembrou.
Depois de se formar como professor e trabalhar em áreas remotas, o rapaz voltou a Maputo para estudar Direito, mirando ter uma vida melhor.
"Sempre sonhei em morar em grandes cidades por causa das dificuldades que passei no campo quando criança", disse. E mesmo com os obstáculos em Portugal, ele se mantém positivo sobre seu futuro.
“A expectativa é boa. Apesar desta complicação do NISS, não penso em recuar. Aprendi que o caminho é sempre em frente. É uma nuvem que creio que vai passar e tudo vai se normalizar”, afirmou.
À BRASIL JÁ, a Segurança Social informou que, para atribuir a numeração do NISS a estrangeiros, desde 2 de julho deste ano, passou a ser necessário apresentar contrato de trabalho. O órgão especificou que a exigência veio com o Decreto-Lei n.º 37-A/2024, de 3 de junho — mesmo decreto que determinou o fim das manifestações de interesse.
A nota afirma que a"celebração do contrato de trabalho pode ser feita sem a prévia existência de NISS a cidadão estrangeiro". Na prática, como no caso do imigrante moçambicano, não é o que tem acontecido.
Letícia Florencio, profissional da área de recursos humanos há mais de seis anos em Portugal, disse à BRASIL JÁ que algumas empresas exigem o NISS para não correrem o risco de serem denunciadas como incentivadoras de imigração irregular.
"Depende da empresa e depende de qual é a situação que esse imigrante está. Se ele tiver uma autorização de residência vinculada a trabalho, a própria empresa pode fazer essa atribuição de NISS [como ocorre no Brasil]", afirmou Florencio.
A especialista criticou a alteração constante das leis e a falta de comunicação entre os órgãos governamentais, que segundo ela aumentam a insegurança jurídica dentro das empresas.
Como consequência, disse, as companhias evitam contratar imigrantes sem a documentação completa.
"Imagina, você dá um contrato de trabalho para um imigrante que não está nem com manifestação de interesse, visto, ou autorização de residência. Ele está aqui ou a turismo, ou então já passou o prazo de poder se regularizar, e então isso acaba sendo denunciado como incentivo à imigração irregular", exemplificou.
Para Florencio, a situação cria um campo nebuloso, especialmente para os imigrantes que chegaram recentemente.
"O governo vai mudando as diretrizes e os próprios funcionários das entidades públicas reguladoras não sabem responder a essa questão. E aí, ficam ali, numa exigência. A Segurança Social exige um contrato de trabalho, mas a ACT [Autoridade para as Condições do Trabalho] pode entender isso como incentivo à imigração irregular porque você está dando o contrato de trabalho para uma pessoa que ainda não tem a papelada em Portugal", afirmou.
Para a advogada trabalhista Giulia Barros, a nova lei —ainda que mire estabelecer critério claros e legalidade de contratos— acaba sendo um obstáculo para os imigrantes. "Pode ser, realmente, um atraso e dificulta que os imigrantes obtenham o NISS. Contudo, a lei busca de uma segurança jurídica”, disse.
Ela acrescentou que as empresasnão podem exigir NISS para a seleção e contratação de funcionários, ainda que sejam estrangeiros.
“As empresas devem adaptar os seus formulários para um campo opcional, afinal, o funcionário já pode ter NISS decorrente de outra situação de trabalho", afirmou.
Segundo a advogada, os imigrantes que estão presos entre a necessidade de um NISS para obter um emprego e a dificuldade de obtê-lo sem um contrato de trabalho podem denunciar a situação à Autoridade para as Condições do Trabalho. E ela reforçou: "o NISS deve ser obtido pela empresa".
Barros também defendeu que a Autoridade para as Condições do Trabalho promova fiscalizações desses casos, e completou dizendo ser necessário rever a legislação para retirar obstáculos das contratações de estrangeiros.
"Uma forma de mitigar esse obstáculo seria uma revisão da legislação a fim de tornar o processo mais simples —e a possibilidade de obter o NISS antes da formalização completa do contrato de trabalho. Por exemplo, criar um NISS provisório ou que outros documentos possam ser utilizados para obtenção do NISS."
Até a publicação desta reportagem, perguntas sobre a obtenção do NISS por estrangeiros feitas pela BRASIL JÁ ao Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social não foram respondidas. O texto será atualizado em caso de eventual resposta.
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