A socióloga Cristina Roldão se dedica ao estudo do racismo e da história negra na sociedade portuguesa Crédito: Reprodução

A socióloga Cristina Roldão se dedica ao estudo do racismo e da história negra na sociedade portuguesa Crédito: Reprodução

Cristina Roldão: 'É importante diferenciar sociedade portuguesa e as suas elites'

Roldão é uma das vozes mais ativas e sonoras contra o racismo, que de modo geral é relegado ao silêncio em Portugal

21/06/2024 às 15:53 | 4 min de leitura
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A trajetória acadêmica da socióloga Cristina Roldão é —não só, mas— essencialmente dedicada ao estudo do racismo e da história negra na sociedade portuguesa. 

Roldão se destaca como uma das vozes mais ativas e sonoras nesse campo, de modo geral relegado ao silêncio e ao negacionismo em Portugal.

A seguinte entrevista com Roldão à BRASIL JÁ ocorreu em duas etapas: primeiro, a jornalista Stefani Costa encontrou a socióloga durante uma das audiências de Cláudia Simões na Justiça. Depois, a jornalista Déborah Lima entrevistou a especialista por telefone.

Durante a conversa por ligação, Roldão denunciou o legado do colonialismo que ainda se manifesta no racismo estrutural em terras lusitanas e lembrou o imperativo de se reconhecer a responsabilidade de Portugal no colonialismo e na escravidão, mas sem cair na armadilha da culpa de toda uma nação.

Disse ela que enquanto as elites se beneficiavam da exploração colonial, a maioria da população portuguesa estava imersa na pobreza.

A seguir trechos das entrevistas:

De que forma que o legado do colonialismo se manifesta no racismo estrutural na sociedade portuguesa?

Uma pessoa negra, esteja no Brasil, na Europa, nos Estados Unidos, noutra parte do mundo, é discriminada e pende sobre si todo um imaginário desumanizante e de desvalorização. 

E, obviamente, do outro lado da relação, a população branca, esteja na Europa, esteja em África, esteja noutras partes do mundo, do ponto de vista étnico-racial, está numa posição mais favorecida. Isso se reflete nas diversas formas de desigualdade: no acesso à educação, na representação em livros e na formação de professores, na vulnerabilidade à violência policial e no acesso à saúde.

A visão otimista dos descobrimentos ainda influencia a forma como a história é ensinada nas escolas? 

Sim. Eu não encontrei nenhum manual que indicasse, por exemplo, quantas pessoas dos povos indígenas foram alvo do processo genocida. Quantas línguas e culturas desapareceram. Isso precisa estar nos nossos manuais. Tem que estar.

Como que a gente pode desconstruir e promover uma visão mais justa dessa história?

É preciso criar fóruns que permitam fazer com que pesquisas [sobre a violência do período colonial] possam ser apropriadas pela população em geral. Nem todos se vão transformar especialistas em História, mas tem que haver um mínimo comum de entendimento e de reconhecimento. 

Eu acho que a educação e a produção científica são essenciais para travar esta ruptura e conseguir finalmente reconhecer a violência do que foi o colonialismo e ter uma certa responsabilidade histórica, que é preciso não transformar em culpa.

Quando você fala que não pode se transformar em culpa, quer dizer que há uma diferença entre culpa e responsabilidade, certo?

Sim. Acho importante trazer isso. É preciso ter consciência que Portugal foi um império semiperiférico. A maior parte dos portugueses vêm de famílias de pequenos camponeses, do trabalho assalariado da terra. No contexto europeu, é um país pobre. 

Claro, existem vários questionamentos: como é possível um país que foi a sede de um império colonial de tal dimensão ter essa condição de pobreza? Mas essa é a realidade. 

A maior parte da população portuguesa, a esmagadora maioria da população portuguesa, tem um passado e um presente de muita pobreza. As pessoas, a maior parte delas, não se beneficiaram diretamente, tal qual, por exemplo, pode ter acontecido noutros contextos dessa exploração. 

Então, é muito mais uma responsabilidade histórica de reparar aquilo que aconteceu.

E por que você acha que a sociedade portuguesa tem tanta dificuldade em reconhecer esse passado e a existência do racismo estrutural nas instituições e na vida cotidiana?

Eu acho que é importante fazer uma diferença entre a sociedade portuguesa e as suas elites. Os grupos que estão no poder fizeram o seu patrimônio através do tráfico transatlântico ou da exploração em São Tomé, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau. 

As elites políticas também agem enquanto guardiões de uma certa identidade nacional ancorada a uma ideia de glorificação do que foi a expansão colonial e escravocrata. 

E depois há a população portuguesa. Por exemplo, no debate sobre a coleta de dados étnico-raciais em Portugal, muitas elites se opuseram. 

No entanto, pesquisas mostraram que 70% a 80% da população diziam que eram a favor da recolha de dados para combater as desigualdades, embora não fosse uma coisa que apreciassem, compreendiam que para se poder combater as desigualdades era preciso haver dados. Neste debate é importante não tomar as elites pelo todo. Ou o todo pelas elites.

Acredita que o debate a respeito da dívida colonial ajuda a trazer luz para a luta antirracista em Portugal?

Eu acho que não só ajuda a trazer uma certa luz, como ele faz parte. Uma das coisas que está acontecendo com esse debate sobre as reparações em Portugal é uma certa divisão de águas, como se a discussão sobre as reparações fosse algo que tivesse que ver apenas com África e as ex-colônias, e não tivesse nada a ver com Portugal. 

Eu acredito que isso é mais um dos argumentos que nós temos que desconstruir para que se compreenda como as questões a respeito do racismo institucional, do racismo cotidiano e do imaginário colonial que ainda existe em Portugal, tem muito que ver com esse passado.

 E qual é a sugestão para que a gente possa articular essas demandas por justiça racial e reparação histórica de uma forma eficaz?

 A importância do debate sobre as reparações é que ele permite pensar políticas de combate às desigualdades étnico-raciais numa perspectiva que não é existencialista e que reconhece as causas históricas dessas desigualdades. 

Porque não podemos ter uma política, por exemplo, de combate à desigualdade étnico-racial, como as cotas, como se fosse um benefício que a população branca está concedendo à população negra.

 Portugal está longe de alcançar essas medidas, como as cotas raciais, por exemplo?

 Eu não sei o que é que é longe. A história se faz lutando com os vários grupos. Portugal ainda está numa posição de reconhecer o problema. 

Portanto, é como se nós estivéssemos sistematicamente num debate sobre se há racismo ou não em Portugal, e se esse racismo tem ou não uma origem no tráfico transatlântico, e se Portugal tem uma responsabilidade ou não. Então, estamos sempre à porta do reconhecimento. 

Enquanto não conseguirmos ultrapassar essa porta, nós não conseguimos começar a discutir tipos de políticas [de reparação].

Como avalia o direcionamento do debate feito pela extrema direita, que vende a ideia de que reparar é apenas cobrar um valor monetário dos contribuintes e trabalhadores portugueses?

A reparação é um debate de grande amplitude, mas me parece que pensando, sobretudo, na posição que o Chega tem tido, não é. Aliás, eles estão usando os tribunais para isso, para passar a ideia de que falar sobre reparações em Portugal é de certa forma uma traição à Pátria. 

Não que eu advogue desse tipo de ideias, mas uma traição é continuar a dizer para a população portuguesa que ela é igualmente beneficiária do colonialismo e da escravatura como foram os grandes grupos econômicos, como foi o Estado português.

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