16/08/2024 às 13:44
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Era manhã do último dia 6 quando agentes municipais irromperam na Rua José Falcão, em Arroios, local de Lisboa conhecido por concentrar pessoas em situação de rua. A missão dada aos funcionários da Câmara de Lisboa foi executar uma operação de limpeza no espaço, iniciativa que se intensifica em agosto, mês que em Portugal tudo parece parar —tudo menos a gentrificação na cidade.
Cunhado pela socióloga britânica especializada em urbanismo Ruth Glass, o termo gentrificação nasceu da descrição dela das mudanças em Londres em 1964.
Já àquela altura, a capital inglesa vivia um processo em que a população mais pobre foi progressivamente expulsa dos bairros da metrópole. Ocorreu (e ocorre) em Londres o mesmo que se repete em várias outras cidades do mundo, inclusive Lisboa.
Entre idas e vindas, Cheila Marques, de 28 anos, contou somar quase quatro anos em situação de rua. Em 6 de agosto, ela, o marido e mais pessoas na Rua José Falcão seriam vítimas da tentativa de apagamento da pobreza na capital portuguesa.
*(ATUALIZAÇÃO: o conteúdo foi atualizado a pedido da personagem, que disse ter se confundido sobre algumas informações. Confira o que foi alterado no fim do texto)
À BRASIL JÁ, Cheila disse que passou a dormir nas calçadas depois que teve cortado um auxílio social que complementava a sua renda doméstica e que lhe permitia pagar aluguel.
Há quatro anos, ela deixou de receber o auxílio da Santa Casa de Misericórdia porque o valor ultrapassava o limite de 400 euros. Enquanto estava grávida, a mulher contou que ainda recebia 530 euros por mês, com prazo máximo para recebimento de quatro meses.
"Depois, a instituição me cortou por completo e eu fiquei sem renda total", acrescentou.
Embora tenha dito à reportagem a razão pela qual deixou de receber o apoio, Cheila pediu para que a explicação fosse mantida em sigilo, solicitação que a BRASIL JÁ irá respeitar.
De qualquer modo, a mulher natural de Torres Novas, no distrito de Santarém, disse que assim como muitas pessoas resolveu migrar para a capital em busca de uma vida melhor, que acabou não encontrando.
No tempo que leva lutando para ter um lar, a mulher se tornou mãe de duas meninas, uma de 4 anos e outra de 2 anos e meio, com quem sonha voltar a viver sob o mesmo teto. Só que Cheila sabe que o salário que ganha não banca uma moradia digna para as filhas.
Sim, Cheila tem um trabalho. É atendente num posto de gasolina, mas os 750 euros que recebe por mês são insuficientes para a cara vida lisboeta. É um valor que, por vezes, proprietários cobram para alugar um quarto.
“Tenho visto várias casas e quartos para alugar, mas os preços dão até susto. Uns pedem mais que uma caução, outros exigem fiadores ou solicitam os recibos de vencimento. Eu trabalho o mês inteiro e não sou capaz de pagar por uma habitação digna no meu próprio país”, lamentou.
Com trabalho, mas sem teto, Cheila sofre na pele a gentrificação que, em Lisboa, deixa 3 378 pessoas sem casa, segundo dados da Câmara Municipal. Do total em situação de rua, 594 —ou 17,5%— estão a dormir nas calçadas. O ostros 2 784 estão preferem abrigos, segundo a administração pública.
E assim como a jovem de Torres Novas, parte dos que hoje estão em situação de rua, dormindo em barracas em Arroios e em outros bairros, têm trabalho.
Felizmente, no caso de Cheila, ela disse que tem recebido suporte no emprego. Ao ser entrevistada para a vaga, a mulher afirma que foi sincera, contando que vivia em uma tenda então montada na Almirante Reis, a maior avenida da capital.
Quatro meses depois, em abril deste ano, por pressão da vizinhança, Cheila e outras pessoas sem-teto se mudaram para a Rua José Falcão. Em todo caso, a jovem diz que recebe ajuda daqueles que, no mesmo mês de abril, lhe deram emprego.
“São pessoas super compreensivas. A minha patroa é uma mulher bondosa e digna. Ela me ajuda até quando preciso tomar um banho. Ao contrário de muitos, que julgam pessoas pela capa ao invés de perceberem a história delas. Eles têm sido coerentes com a situação. Nos comportamos como uma família”, disse.
Abrigos são insalubres, diz mãe
Os 17,5% de pessoas que preferem a rua aos abrigos municipais o fazem por alguns motivos. Cheila Marques afirmou que são péssimas as condições oferecidas nos locais. Ela mencionou o convívio com ratos, baratas e, sobretudo, percevejos.
A jovem também recorda da comida estragada e de uma rotina insuportável para quem precisa sair para trabalhar e, na volta, busca por descanso. A insegurança também é outro fator que a preocupava nos abrigos.
Ainda assim, o maior medo da mãe é que o Estado retire de vez a guarda de suas filhas caso ela dê entrada num abrigo.
“Na condição em que as minhas filhas estão, se eu for para um abrigo, automaticamente o Estado se apodera delas. E eu tenho focado nisso, na luta para que elas possam voltar a viver comigo e com o meu marido, que está desempregado. Preciso ter um lar e um ordenado melhor”, afirmou.
A filha mais velha, de 4 anos, já não vive com Cheila. A menina foi levada após uma denúncia anônima feita à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. Ela e o marido foram acusados de negligência e paradeiro incerto, o que ela nega.
Antes que acontecesse o mesmo com a filha menor, Cheila disse que a entregou na mesma casa de acolhimento, para que as irmãs ficassem juntas.
“Eu tive que entregar a minha própria filha para protegê-la, garantindo o mínimo de bem-estar para o seu desenvolvimento. Eu não posso viver com elas nas ruas, muito menos nesses abrigos do Estado”, afirmou.
Operação limpeza
A Câmara Municipal de Lisboa afirmou, em nota à reportagem, que a operação levada a cabo no último dia 6 foi previamente avisada às pessoas que dormem na Rua José Falcão. No entanto, segundo relatos à BRASIL JÁ, incluindo o de Cheila Marques, não foi o que ocorreu.
Os sem-teto disseram ter sido surpreendidos com a ação de despejo. As pessoas em situação de rua relataram que as barracas foram retiradas por equipe da Comunidade Vida e Paz, com apoio de agentes da Polícia Municipal e funcionários da Câmara de Lisboa.
Cheila contou que três tendas foram retiradas sem que as pessoas que nelas dormiam fossem realocadas. A única saída para eles foi se abrigar debaixo da marquise.
“Eles não levaram a minha tenda, mas a deixaram danificada e com todos os meus pertences revirados. Eles também levaram os nossos sapatos que estavam guardados, as cadeiras e outros objetos. Ficamos, basicamente, sem nada”, disse.
Cheila disse que não estava na José Falcão na manhã da operação, mas ao voltar ao local notou que as fotografias de suas filhas e pertences das meninas foram recolhidos e jogados no lixo.
“Pelo que sei, a equipe havia falado de limpeza da rua e não das tendas. Não somos lixo para sermos retirados dessa forma.”
Comerciantes que viram a ação municipal afirmaram à reportagem que as pessoas em situação de rua ficaram desconfiadas do aviso sobre a “operação limpeza”. Os próprios vendedores estranharam a movimentação, que disseram só ocorrer com frequência na Avenida Almirante Reis, paralela à Rua José Falcão.
Instituições negam que ação foi repentina
Diácono Horácio, presidente da direção da Comunidade Vida e Paz, disse à BRASIL JÁ que a limpeza e a recolha de pertences das pessoas em situação de rua é de competência dos serviços da Câmara Municipal de Lisboa.
Ele não explicou o porquê de funcionários da instituição, que é privada, também participarem da limpeza, segundo relataram os desabrigados.
O dirigente também afirmou que os mutirões são “precedidos de comunicação dentro de um prazo estabelecido”, e acrescentou que as operações são imprescindíveis para garantir o mínimo de salubridade nos locais onde essas pessoas se encontram.
Ainda segundo Horácio, como equipes da Vida e Paz atuam na região, ele acredita que técnicos da comunidade podem ter sido uma forma de o poder público transmitir informações às pessoas sem-teto.
Por nota, a Câmara de Lisboa, sem comentar a retirada das tendas no dia 6 de agosto, afirmou que as ações de intervenção são realizadas para assegurar a saúde pública aos cidadãos.
Também foi informado que o novo plano municipal para as pessoas em situação de rua prevê 70 milhões de euros em investimentoem respostas que promovam o acolhimento, a capacitação e a autonomização das pessoas nessas circunstâncias.
*(ATUALIZAÇÃO: Esta reportagem foi atualizada às 18h47 desta sexta (16) a pedido de Cheila Marques, que disse ter se confundido a respeito das seguintes informações:
1. Ela não soma dez anos vivendo em situação de rua. Na verdade, são quatro anos.
2. Ela não recebeu auxílio da Segurança Social, mas sim da Santa Casa de Misericórdia, por quatro meses, enquanto esteve grávida.
3. Ela não estava no trabalho quando houve a ação das forças municipais. Cheila disse que havia ido visitar as filhas numa casa de acolhimento.)
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