Mamadou Ba, liderança antirracista: Portugal não rompeu com o racismo estrutural

‘O racista arranja sempre uma maneira de fazer com que tu não te sintas parte da comunidade’, afirmou em entrevista exclusiva à BRASIL JÁ

25/01/2024 às 18:31 | 4 min de leitura | Dia a Dia
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Uma das principais lideranças antirracistas em Portugal, Mamadou Ba é licenciado em Língua e Cultura Portuguesa pela Universidade Cheikh Anta Diop, em Dakar, pertence ao Movimento SOS Racismo, e é membro do Fórum Permanente da Década Internacional para os Afrodescendentes. 

Foi membro, ainda, do Conselho Permanente da Comissão Nacional para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial entre 2015 e 2019, e participou do Grupo de Trabalho para o Censo 2021. De Vancouver (Canadá), conversou por videochamada por quase duas horas com o jornalista da BRASIL JÁ Nonato Viegas sobre a luta contra a discriminação em Portugal. 

Confira, a seguir, uma parte da conversa:

BRASIL JÁ: Você está há 27 anos na luta contra o racismo. O que o motivou? 

Mamadou Ba: Eu faço militância desde os meus 14 anos. Eu nunca tive noção de que ser negro era um problema até chegar à Europa. Nunca. Eu sabia pela história que houve o colonialismo, que houve a escravatura, que são os albergues fundacionais do racismo. Não é que ignorasse isso, porque eu já era pa - nafricanista, militante, mas viver na pele a violência de “ser negro” só senti quando cheguei a Portugal. Eu percebi que ser diferente era um problema. No país onde eu nasci, o Senegal, há pessoas brancas, há mestiços. Eu estudei num liceu de excelência em Dakar, com filhos de diplomatas. Mas nunca me passou pela cabeça essa história de ser negro ou ser branco.

Seu depoimento me lembrou uma amiga. Ela é angolana e só descobriu o racismo quando chegou ao Brasil. Explico: sou brasileiro, uma pessoa preta, ainda que de pele mais clara, mas preta, que nasceu e cresceu numa sociedade estruturalmente racista. Ser preto, portanto, é parte da minha identidade existencial. Significa que, entre outras coisas, você é obrigado a desenvolver estratégias de sobrevivência. Desde coisas simples, como não mexer na mochila ou nos bolsos da calça dentro de uma loja, até a evitar o contato com a polícia. Às vezes, a estratégia salva a vida. A minha amiga, sendo angolana, não sabia o que é ser uma pessoa preta dentro deste contexto. Eu brincava que ela sabia e conhecia o que é ser branco em seu contexto de Angola e que, só no Brasil, ela descobriu a sua negritude. Essa experiência existencial de ausência do racismo que você e ela experimentaram, e que brancos normalmente conhecem bem, eu não tenho a menor ideia. 

Meus filhos e as minhas filhas estão conscientemente antirracistas e emocionalmente maduros. Eles cresce - ram muito para aprender a fazer com que não sejam eles a carregar o far - do de serem negros. Meu filho mais novo, quando se lhe pergunta “tu és de onde?”, ele responde sempre com um sorriso e diz “sou de Massamá”. Massamá não é obviamente um país. Mas aquilo é uma forma muito inteligente de se defender das perguntas loucas que fazem as pessoas que não são brancas em Portugal e não são vistas como naturalmente portuguesas. Pessoas não brancas são sempre tidas por supostas estrangeiras. A pessoa diz: “E os teus pais, e os teus avós?”. Porque o racista arranja sempre uma maneira de fazer com que tu não te sintas parte da comunidade. Tenta arranjar, mesmo que seja de uma forma sutil, uma maneira de fazer entender: “Olha, tu estás aqui, mas tens que te lembrar que não és daqui”.

Ao que você atribui esse comportamento? 

À falta de fazer uma ruptura com o racismo estrutural na sociedade portuguesa. Porque não se educou as pessoas a olhar para as partes hediondas desta nossa história. Não é julgar a história. Isto é um discurso tão pobre e tão preguiçoso... Ninguém está aqui a julgar as pessoas. A história, as responsabilidades, estão estabelecidas. Se sabe quem colonizou quem, quem escravizou quem. Qual lição tiramos do nosso passado? A lição é: a gente percebe que há um déficit de igualdade entre pessoas na sociedade. Esse déficit de igualdade você tem por causa de uma dívida histórica. Construiu-se uma narrativa de que há determinadas pessoas que são superiores a outras. E esta é a ideia que nos persegue até hoje e que faz com que agora haja racismo, haja xenofobia. Então, em vez de perder muito tempo sobre “não julgar a história” — isso é anacrônico—, o que vamos fazer para que as consequências da história não se sintam hoje no presente?

No Brasil, só houve políticas afirmativas antirracistas após a compreensão de que havia, e que ainda há, um problema. Esse processo, é claro, enfrentou resistência. Posso dizer que é um processo em andamento. 

Eu acho que a ausência do Estado aqui (Portugal) é porque ele não tem nada para propor. Quando há um vazio programático não há vontade, não há predisposição para debater. Porque se tu não estás a propor nada, se tu só falas, tu não tens coisas concretas, então tu foges o máximo que puder do debate. Tu deixas o espaço vazio para esse gajo. O André Ventura [líder do Chega!] chegou à Assembleia da República e a primeira coisa que ele propõs sobre as questões das minorias foi o fim do único instrumento público de combate ao racismo. Ele fez uma proposta de lei para extinguir a Comissão para Igualdade contra Discriminação Racial. E isto é que é perigoso: ninguém veio publicamente atacar aquela proposta. 

O silêncio é consequência da falta de pretos na Assembleia da República? Por que os partidos não incluem pessoas pretas em suas listas? Eu acho até contraditório que hoje sejam apenas dois deputados e um deles seja do Chega. 

Exatamente. Aliás, esse é o debate central. Qual é a centralidade política que a democracia dá à questão racial? Estão todos a fugir desse debate e é bom retratar a história disso para as novas gerações perceberem. Se eles querem que a democracia seja realmente uma democracia representativa, plena, onde estão representadas todas as componentes da sociedade, [estas] têm que estar refletidas na sua representação. Isto devia ter sido muito fácil para os portugueses, porque se há um país que sabe o significado da imigração no mundo ocidental é Portugal. Portugal fez, na resistência ao fascismo e na construção democrática, homens e mulheres ousarem saltar muros para ir procurar um futuro melhor. Portugal é um país de emigração. Então, a representatividade é uma questão de coragem política, de perspicácia política, de vontade de construir um horizonte estratégico em que as pessoas negras entram de igual para igual na disputa política, na disputa democrática.

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