Diante de um contexto europeu cada vez mais conservador e isolado no que diz respeito às políticas de migração, estudiosos do tema convergem ao considerar que o avanço do da extrema direita ameaça e injustamente responsabiliza o imigrante por problemas econômicos e sociais.
Esse foi um dos temas debatidos na 21ª conferência da Imiscoe (International Migration Research Network, na sigla em inglês), em Lisboa, que reuniu na última semana acadêmicos de várias nacionalidades para um debate sobre questões migratórias.
O evento, que contou com o apoio da BRASIL JÁ, ocorreu no Instituto Superior de Tecnologias Avançadas (ISTEC).
Para Thais França, autora de um estudo internacional sobre os movimentos anti-imigração em Portugal, eventos com iniciativas multidisciplinares são importantes porque a migração não é um fenômeno unicausal.
A socióloga afirmou que existe uma série de motivações que podem levar uma pessoa a migrar.
“Nós precisamos olhar isso de uma perspectiva complexa, pensar em questões econômicas na mesma hora em que se pensa nas questões de saúde ou na questão de gênero e, também, nos temas sobre a descolonização. Eu tenho que levar tudo isso em consideração para conseguir ter um conhecimento mais adequado do que é esse fenômeno", disse.
Thais enfatizou que a pauta anti-imigração só começou a ganhar visibilidade no discurso português recentemente. Se comparado com o contexto europeu, um dos fatores que busca compreender esse novo cenário pode estar ligado ao recente aumento da diversidade da migração para Portugal.
Religião, a falta de comunicação entre os centros acadêmicos e a sociedade civil e o racismo, segundo França, também contribuem como fatores de seletividade das políticas migratórias na Europa.
"O que acontece agora em Gaza, no Afeganistão, no Sudão e em outros países que estão em conflitos é como se, de certa forma, fosse distante. E, ao ser distante, é um outro mais diferente. E racismo também está ligado a isso, pois ele informa quem é que tem direito e quem é que não tem."
Confira trechos da entrevista com a pesquisadora Thais França:
Qual a importância do estudo multidisciplinar para responder às principais questões migratórias em uma Europa cada vez mais fechada?
Os estudos da migração precisam ser interdisciplinares ou multidisciplinares, como você afirmou, porque a migração não é um fenômeno unicausal, digamos assim. As pessoas não migram só porque querem ganhar mais dinheiro. Existe uma série de razões, uma série de motivações.
E quais seriam essas motivações?
Podem ser econômicas, de saúde, de afeto, uma questão subjetiva, uma oportunidade de trabalho ou estudo ou também uma coisa que nunca esteve nos planos. Aprendi agora, em uma das sessões que participei que, em alguns casos, essa ideia de migração nem faz muito sentido, pois, em determinados contextos, ser móvel e migrar sempre fez parte daquela dinâmica social.
Mas, pensando nesse nosso contexto da Europa, que está cada vez mais conservadora, com políticas de imigração cada vez mais securitárias, com um avanço da extrema direita que é claramente anti-migração, olhar essa migração a partir de uma perspectiva perspectiva multidisciplinar, permite que eu possa identificar diferentes ângulos.
Ou seja, detectar diferentes problemas, diferentes causas, diferentes desafios e soluções para entender esse fenômeno, que é um fenômeno tão complexo e que é cada vez mais comum.
Por que é um fenômeno mais comum?
Aliás, eu nem sei se é de dizer que ele é mais comum, porque acho que ele faz parte. Ser móvel dentro das dinâmicas sociais sempre foi algo que nós vimos. Por isso eu acredito que a sua pergunta inicial já traz uma das respostas para os estudos migratórios. Nós precisamos olhar isso de uma perspectiva complexa, pensar em questões econômicas na mesma hora em que se pensa nas questões de saúde, ou na questão de gênero e, também, nos temas sobre a descolonização.
Eu tenho que levar tudo isso em consideração para conseguir ter um conhecimento mais adequado do que é esse fenômeno.
E hoje, qual seria a principal característica da extrema direita em Portugal? Você vê semelhança com o Brasil, por exemplo?
Não, não vejo. Em termos de imigração, não. Agora, se estivermos falando de extrema direita de forma geral, é uma outra questão. Mas, em relação à imigração, não, porque o Brasil sempre foi um país fechado para a imigração. Se você for olhar como é a construção das políticas migratórias no Brasil, elas estão muito ligadas com a questão da ditadura, da ideia desse imigrante que era problemático, etc.
Ou seja, sempre foi um país conservador para a imigração. Entretanto, essa não é uma pauta da extrema direita por lá, o que também não significa que os imigrantes no Brasil não sejam discriminados, não passem por racismo, não tenham essas experiências de marginalização, de exclusão etc. Já em Portugal, e na Europa como um todo, o imigrante é um alvo da extrema direita. Digamos que é um discurso comum que tem unido esse campo na Europa, de forma geral. Nos Estados Unidos também, se você for ver toda a política de [Donald] Trump contra os imigrantes.
E por que aqui e nos Estados Unidos o imigrante é o alvo da vez?
Porque é o que vai causar o chamado choque cultural, é o que não se adapta, é o parasita do Estado. São discursos, na verdade, que são muito antigos, que sempre tiveram presente nessa construção do imigrante ou como ameaça, esse que vai destruir a nossa nacionalidade, por exemplo, ou então do imigrante como problema, porque é o que não se integra.
Inclusive, as políticas de integração para o imigrante não consideram qual é o nosso papel enquanto sociedade, que tem que ser, na verdade, uma coisa dual. Mas, eu diria que, em termos de extrema direita, hoje em dia a migração é, digamos assim, central. E se consegue quase que ter um discurso unificado desse problema do imigrante, do refugiado, que precisa ser combatido.
Caso contrário, a Europa vai colapsar porque ameaça os valores europeus e essas pessoas não vivem esses valores. E também tem muito essa ideia de que o que está acontecendo lá precisa ser resolvido lá. E que nós, europeus, não temos nenhuma responsabilidade com isso.
E se pensarmos em Portugal, temos aí a questão da luta anticolonial, não é mesmo?
Sim. Não é possível falar sobre o tema em Portugal, e na Europa, sem olhar o que foi todo o processo de colonização, do que é essa política imperialista, dessa economia que permanece sendo de dominação, que continua promovendo desigualdades entre os países, entre os contextos.
Um pouco antes das legislativas em Portugal, você afirmou que a pauta anti-imigração não daria tanto eco ao processo. Depois das eleições daqui, e também das europeias, a sua visão sobre isso se mantém?
Nas europeias era claro, ainda mais porque você tinha outros contextos. Em Portugal, acredito que o que houve nessa questão da migração foi que ela apareceu e quem pegou nessa pauta foi só a direita. Ou seja, é como se a esquerda não tivesse argumentos para fazer uma contranarrativa desse discurso da direita em relação à migração. Penso que em Portugal essa questão começa a ganhar mais visibilidade, começa a ser mais estrategicamente utilizada dentro do discurso português. Mas, ainda não é nada do que é comparado com outros países.
Nas eleições [legislativas] passadas, a visibilidade que a pauta teve ainda não tem o mesmo tamanho que você tem em outros contextos. Isso não significa que a pauta não seja importante. Isso não significa que, cada vez mais, a extrema direita perceba que há eco para esse tipo de coisa.
E tem um motivo principal do porquê isso ainda não é tão forte em Portugal como em outros países europeus?
Existem várias explicações, mas nenhuma delas me convence muito. Há determinadas explicações que dizem que, porque Portugal ainda é um país de trânsito ainda, ou seja, esses imigrantes vêm aqui, regularizam-se e depois vão embora, não há um conflito tão grande no mercado de trabalho. É a teoria da competição. Não há uma competição muito grande, porque esses imigrantes estão sempre indo embora. O país é tão pobre, as condições são tão ruins que esses imigrantes vêm aqui, pegam nacionalidade e vão embora. Essa é uma discussão, mas que não me convence muito.
Depois, tem o fato de que é muito recente o aumento da diversidade da migração para Portugal comparado com outros contextos. Se você for ver, até 2010, 2015, mais ou menos, temos principalmente a migração brasileira, a migração das antigas colônias africanas, que, embora fosse visto como o outro, o menor, o colonizado e etc., ele não era tão visto como uma ameaça à portugalidade, porque, de certa forma, se pensarmos dentro do que é o discurso conservador e o discurso colonial, há muito uma ideia de que Portugal, de que as ex-colônias africanas e que o Brasil são, na verdade, países que só existem porque é Portugal existe.
Tem essa narrativa da grandiosidade de Portugal que também fazia com que esse fluxo, que era o mais importante, maior, numericamente, não causasse tanto conflito quanto você tinha em outros contextos. Como você começa a ter essa maior diversidade de fluxos, de nacionalidades que não se viam antes, tanto por um lado, porque você tem um maior número de pessoas vindo, mas, por outro lado também, porque essas pessoas já estão aqui, já estão criando famílias e etc.
Só agora, digamos assim, que isso vai causar mais embate comparado com o contexto de outros países.
A religião é um fator a ser levado em conta?
Sim, é importante pensar a imigração a partir da diferença da religião, porque você tem muitos imigrantes das ex-colônias africanas que vão para a França, que são da religião muçulmana. Você não tinha muito isso aqui em Portugal. O fluxo de pessoas que vão para a França pensando nesse contexto francófono, é muito mais intenso do que era no contexto português. Essa seria uma outra explicação.
O fato de que os grupos que chegavam aqui tinham, digamos assim, algum tipo de semelhança, ou seja, uma proximidade cultural, agora começa a mudar, e, quando se inicia essa mudança, você vê esse discurso ganhando mais força.
Como contrapor o discurso de que o imigrante é importante para Portugal porque contribui com a Segurança Social ou porque é uma mão de obra necessária?
É pensar em uma perspectiva maior sobre a imigração. Porque se eu só justifico que o imigrante vem porque ele contribui para a economia ou porque ele aumenta a demografia, é formada uma visão e um discurso utilitário sobre esse imigrante. Então, eu preciso ver a imigração como um direito, ver a mobilidade como um direito.
É esse o tipo de discurso que precisa ser colocado, sobre qual é a nossa responsabilidade. E quando eu falo nossa responsabilidade, qual é a responsabilidade da Europa e do colonialismo e do passado colonial etc. nesses tipos de fluxos? Qual é a importância de pensar a reparação? É assim que eu posso construir, pois, se pegarmos apenas nessa perspectiva economicista, estamos reduzindo o imigrante a um trabalhador que paga contas. E o imigrante é muito mais do que isso.
Hoje, por conta da pauta anti-imigração, podemos dizer que há uma violência política em Portugal em cima daqueles que propõem o tema no debate público?
Sim, com certeza. É um tema cada vez um tema mais controverso, que gera cada vez mais mal-estar. Não é a minha especialidade, mas se você for pensar em termos de ciências políticas, é um assunto cada vez mais polarizado e mais problemático, digamos assim. Isso também tem a ver com o tipo de espaço onde se consegue falar sobre imigração.
Nas universidades, por exemplo, você percebe um aumento desse comportamento discriminatório?
Tem duas coisas acontecendo. Por um lado, aqui em Portugal, eu observo que há um crescimento do movimento negro. Ele ganhou mais força nos últimos anos. Não na mesma intensidade do movimento da extrema direita, mas o movimento negro tem conseguido ocupar mais espaços, e, de certa forma, os movimentos migratórios também. Então, é como se você começasse a ter um discurso acadêmico que tivesse mais alerta para isso, pois, durante muito tempo, esse debate não estava nem na pauta. Imigração, racismo, preconceito, não faziam parte da agenda da academia portuguesa.
É como se, com muito tempo de atraso, essa discussão comece a aparecer na academia, você começa a ter estudantes de doutorado escrevendo teses, começa a ter mais acadêmicos que vêm de fora também, porque tem muitos estudantes de doutorado que vêm do exterior que colocam essa pressão também. Mas, por outro lado, tem isso que você fala, dos casos de violência, das micro agressões, que começam a tornar-se mais comuns dentro da universidade, um espaço que também reproduz a sociedade. Ela não está desconexa das outras dinâmicas sociais. Então, por que pensar que isso não aconteceria na universidade? Ela também funciona como produção de conhecimento para a direita.
Inclusive tem uma crítica do movimento negro a respeito do Observatório de Discriminação e Racismo, não é?
Eu conheço a crítica, mas não sou muito aprofundada para poder fazer um comentário. Mas, sei que uma das grandes questões, primeiro, foi o fato de uma das pessoas que está à frente do Observatório ser uma pessoa branca, quando você tem um movimento negro que está aí, contribuindo para isso, ou seja, sempre essa invisibilização, desvalorização e etc. Acho que é um assunto muito bem pautado.
E tem uma outra questão também, que é essa falta de conexão entre a academia e a sociedade civil. Você cria um observatório que é só acadêmico. Você cria um observatório que tem pouco canal de diálogo.
Vivemos neste momento uma guerra na Europa. Você percebe uma diferença no tratamento para os refugiados e imigrantes ucranianos em relação aos que saem do Sul Global? E por que isso acontece?
Tem uma série de coisas. Primeiro, você tem uma proximidade geográfica. Depois, essa guerra também é uma guerra ideológica. O que a Europa diz quando ela se põe contra, ou seja, o que a Europa diz quando ela se põe numa situação de maior abertura para os ucranianos em relação à Rússia? Também tem essa abertura política. Mas aí também tem uma questão de seletividade. Quem é que pode entrar na Europa e quem é que não pode entrar na Europa? Quem pode entrar na Europa é europeu, né? Isso aí também está presente.
O que acontece agora em Gaza, no Afeganistão, no Sudão e em outros países que estão em conflitos, é como se, de certa forma, fosse distante. E, ao ser distante, é um outro mais diferente. Ou seja, esse problema que você colocou está muito ligada com essa questão da seletividade das políticas. E o racismo também está ligado a isso, pois ele informa quem é que tem direito e quem é que não tem.
Acredita que o fim abrupto da lei da manifestação de interesse pode aprofundar a crise migratória em Portugal?
É um retrocesso porque ela não vai barrar a irregularidade, não vai barrar as entradas irregulares. Na verdade, é o tipo de medida que vai contribuir ainda mais para o tipo de irregularidade.
E qual a melhor forma de combater essa irregularidade?
Promovendo a regularização, e não promovendo mecanismos que tornam a regularização ainda mais difícil. Se o que você chama de crise migratória é a dificuldade dos migrantes de terem acesso aos direitos, à regularização e etc., sim. É uma política que põe uma carga ainda muito maior nessa possibilidade de regularização. E eu não consigo ver uma solução para esse problema dentro das medidas que o novo governo já apresentou.
Observei que neste evento há um espaço de denúncia caso alguém se sinta discriminado. Já teve alguma denúncia? É comum que isso aconteça durante essas conferências?
Aqui, por enquanto não. No ano passado teve só um caso, mas eu não sei te dizer se é porque as pessoas não vão e denunciam, sabe? Mas eu não diria que é porque não acontece. Afinal de contas, é um espaço acadêmico. Então acontece sim.