Pedro Santarém nasceu em uma aldeia do distrito de Uíge, no Norte de Angola, em 1957. Dos 67 anos de vida, pelo menos trinta deles foram e continuam sendo dedicados à Frente Anti-racista [sic] Portugal.
Ainda criança, ele foi capturado pelas tropas portuguesas ainda no início da Guerra Colonial.
Adotado por uma família de Aveiro, passou os seus primeiros anos da infância na região central de Portugal. Depois de servir ao Exército, estudou Engenharia Mecânica em Lisboa e seguiu sua trajetória no Barreiro, cidade localizada na margem Sul do Rio Tejo, onde reside até hoje.
Pai de dois filhos, ele acredita que a luta antirracista deve ser feita no dia a dia:
“O maior desafio tem sido entre nós mesmos. Saber o que é o racismo, quando é que ele se propaga, como é que ele se desenvolve e porque é que ele não desaparece”.
A seguir, trechos da entrevista:
Como começou a sua militância antirracista em Portugal?
Tinha conhecimento dos conflitos da guerra colonial, pois, em alguns momentos, era posto à prova. Uma vez me disseram que em Angola os pretos andavam às turras [pancada com a testa] a matar os brancos. Eu disse que não era verdade. Afirmava que os meus pais não mataram ninguém, pelo contrário, foram mortos pelos brancos. As pessoas na igreja não pareciam acreditar.
Ainda pequenino, comecei a ter uma noção de que alguma coisa estava mal. Só em 1990, depois de uma conferência na SOS Racismo, passei a acompanhar o movimento e engrenei no tema até fundar a Frente Antirracista. Eu sempre estive no meio dos brancos, eu não conhecia a nossa cor. A minha cor só era visível quando um ou outro miúdo [criança] dizia que eu era preto e passava a mão em mim. Mas, normalmente, no dia a dia, eu não tinha a minha própria noção, apenas a noção dos outros.
Em que ano você criou a Frente Anti-racista Portugal?
Em março de 1995. Uma série de indivíduos que já vinham do SOS Racismo. Eu, Manuel Correia, Manuel Gouveia, Otávio Augusto, Zózimo Amado, muita gente. Nós éramos da SOS Racismo, mas no meio do caminho houve alguns debates e surgiram formas diversas de lutar contra o racismo.
Nós escolhemos uma [maneira] ligeiramente diferente e decidimos criar a Frente, com outras lutas mais de fundo. A seguir surgiu o caso do Alcindo Monteiro e junto com ele a necessidade de continuarmos essa luta.
Qual o maior desafio para enfrentar o racismo aqui em Portugal?
Saber o que é o racismo, quando é que ele se propaga, como é que ele se desenvolve e porque é que ele não desaparece. Essa foi a primeira questão que eu enfrentei e continuo a enfrentar, pois havia uma ideia de que não existia racismo. Havia aquele conceito de que eles [os portugueses] tinham sido bons, que não havia racismo, tanto do período dos descobrimentos como na altura da colonização. Diziam que tinham ido aos países [ex-colônias] para desenvolver as regiões e usavam esse discurso baseado no luso-tropicalismo. Isso dificulta o ponto de vista sobre a existência do racismo, da discriminação.
A sociedade portuguesa ainda é levada por esses clichês. E é cada vez mais necessário demolir essas estruturas. Houve uma alteração em termos de questões mais práticas, pois acabou o colonialismo, alterou-se alguns termos legislativos, mas a mente, que é o que produz o contexto da nossa experiência diária, não mudou.
A transição da guerra colonial para a liberdade [em 1974] deixou essas questões um bocado de lado, e, neste momento, as pessoas chegaram a essa conclusão e estão aprendendo a separar as coisas, compreendendo que é preciso ter a consciência de que muitas coisas que nós fazemos e temos no subconsciente e inconsciente são racistas. É preciso alterar o racismo do dia a dia, do cotidiano, das instituições, dos tribunais, da governação, no trabalho, na saúde e em tudo.
O que é reparação histórica para você?
Reparar, para já, é cumprir a Constituição. É ser solidário e respeitar a identidade dos outros povos. A princípio, é respeitar a autonomia, a soberania e a paz. Neste momento, tenho a sensação de que nós queremos tapar o sol com a peneira, limpar a história que fizemos [o passado colonial] com pagamentos. Isso nunca resulta. Nós pagamos, tentamos ser imediatos e continuamos na mesma. Continuamos a reproduzir questões do neocolonialismo. Pensar em pagar só com valores materiais não resolvem as questões mais íntimas e de reconhecimento de um povo, de reconhecer que também têm direitos. Somos todos iguais, não existem raças. Esse conceito não desaparece enquanto o neocolonialismo se mantiver. É preciso ter diálogo [sobre reparações].
Como incluir os mais jovens na luta antirracista?
Acredito que os jovens estão um bocado frustrados, pois não fizemos o trabalho todo após a revolução do 25 de Abril. Tem que haver esforço nas escolas, na educação, pois as pessoas desconhecem o que foi a luta anticolonial, o que foi a independência [das ex-colônias] e o que é que fazíamos em Angola e nos outros países. Como eles foram explorados e o que é essa exploração. Explicar o que significa liberdade de expressão.
São coisas que não são incluídas durante os estudos. Não se ensina como é que se trabalha com o outro, como é que se convive com o outro e como é que isso se constrói.
É preciso uma mudança em como se ensina história.
Sim. A Frente Antirracista, neste momento, tem ido às escolas com muita frequência. Estamos constatando que quando os alunos põem essas questões eles ficam com muita curiosidade e espantados com a discussão em si. Mas o fato mais curioso é que, dentro da escola, quem também dá muita atenção [ao que falamos] são os professores. Eles pedem esses debates com os alunos.
Daí dá a ideia de que o conjunto da educação precisa ser mais bem desenvolvido. Há algumas frases escandalosas nos livros didáticos. É preciso alterar. Só teremos condições para mudar se nós conseguirmos introduzir neste contexto social e na sociedade portuguesa a noção do que é a independência [das ex-colônias], os valores, o que é respeitar o outro, o que é paz e o que é liberdade, coisa que na própria sociedade não tem sido estimulado.
O sistema jurídico é racista?
Sim, é racista, é fascista. A estrutura em que ela se baseia. O problema não está somente nas pessoas, mas na estrutura. É preciso alterar a estrutura. Nós temos de escolher coisas novas, nos mexermos e nos esforçamos para criar uma ordenação que consiga acompanhar [as mudanças antirracistas].
Também é preciso mudar as coisas de cima para baixo. Entender, por exemplo, que muitos policiais são pessoas como nós, trabalhadores, e que [temos de] pegar os problemas pela raiz e superá-los é o melhor caminho.