Professora Carol Jesper é mestre em Educação e autora de livros didáticos. Foto: Divulgação

Professora Carol Jesper é mestre em Educação e autora de livros didáticos. Foto: Divulgação

Variantes da língua portuguesa enriquecem o idioma, diz professora

Carol Jesper, criadora do projeto 'Português é Legal', fala sobre como o preconceito linguístico afeta o nosso idioma

26/07/2024 às 09:58 | 9 min de leitura
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A brasileira Carol Jesper, professora de língua portuguesa, mestre em Educação e autora de livros didáticos, falou em entrevista à BRASIL JÁ sobre a influência do português brasileiro em Portugal e o preconceito linguístico que se vive deste lado do Atlântico.

Criadora do projeto "Português é Legal", que divulga vídeos nas redes sociais com o objetivo de combater o preconceito linguístico e dar dicas sobre o padrão da língua, Carol frisa a importância de se compreender as variações da língua portuguesa sem preconceitos.

“Quando se coloca nessa posição de achar que os brasileiros estão estragando a língua, demonstra uma falta de compreensão sobre o que é o processo natural de uma língua.”

Entre os pontos abordadas na conversa com a reportagem, Jesper discute a influência cultural do Brasil em Portugal, o medo infundado de que a variante europeia desapareça e a importância de se enxergar a diversidade linguística como um enriquecimento, não uma ameaça.

Confira abaixo trechos da entrevista:

Em um vídeo publicado no Instagram (@portugueselegal), você menciona que, já na década de 1970 e 1980, havia um certo incômodo com a influência do português brasileiro em Portugal. É possível saber como e por que esse incômodo começa a surgir?

O incômodo começa à medida que produções culturais brasileiras passam a estar disponíveis em Portugal, como as novelas brasileiras, que tiveram um grande sucesso. Isso fez o português que é falado no Brasil se popularizar, ou levou um pouco da consciência sobre as diferenças.

O contato com a produção artística do Brasil facilitou essa consciência de quais mudanças, de quais diferenças a gente tem. E é a partir daí que fica mais nítido um incômodo de alguns portugueses, claro. A gente sempre tem que estar mais cuidadoso. Porque os que não ficam incomodados às vezes se queixam dessa generalização, e acho que eles estão certos.

Há portugueses que temem que o português europeu possa ser engolido por outras variantes, principalmente a nossa variante brasileira. Quais são as bases desse medo e até que ponto ele pode ser ou não justificado?

Acho que a principal base é o fato de que verdadeiramente uma língua se espalha com os falantes, e ela depende de falantes para existir. Então, uma redução coloca a língua em risco de extinção, de fato. Não me parece um risco que esteja próximo, ou que seja mesmo real para o caso da variante europeia. 

A população brasileira contribui para a existência da língua portuguesa ao longo do tempo, mas a variante europeia especificamente, ela sempre vai depender da existência de pessoas que a falem. Então, enquanto houver Portugal, enquanto houver a população de Portugal conhecendo e usando as formas usadas na Europa, não existe risco de que essa língua desapareça, ainda que ela seja minoritária de um ponto de vista mais global.

O Brasil é responsável por manter a língua portuguesa no ranking das mais faladas mundialmente. Somos 200 milhões de brasileiros, enquanto o total de falantes é aproximadamente 230 milhões. Isso faz diferença, concorda?

É claro que o número de falantes importa. O número de falantes vai influenciar no quanto uma variedade se propaga ou não, mas isso não significa que eles devam temer ou que eles precisem considerar que a língua falada em Portugal tal como ela é, com uma gramática própria, com vocabulário próprio, uma sintaxe própria, uma pronúncia própria, que ela corra risco em função da existência de uma outra variante que é mais numerosa.

E pode haver essa coexistência como existe e como a gente vê também com outras línguas faladas em vários países, como o inglês, existem diferenças e elas coexistem, não necessariamente a gente precisa ter uma que domine em detrimento de todas as outras ou colocando todas as outras em risco de desaparecer.

A língua portuguesa varia de região para região no Brasil e em outros países. Aqui em Portugal também é assim, do norte ao sul do país, cada local tem suas próprias especificidades na fala. Você poderia dar exemplos de como essas variações enriquecem a língua como um todo?

Acho que dois aspectos que são mais fáceis de perceber são o sotaque e vocabulário. Quando a gente tem vários termos nomeando uma mesma coisa, isso é uma variedade que não coloca nenhum deles em risco, não traz nenhum malefício, e muitas vezes, alguma forma de nomear vai estar relacionada a uma outra característica do local, de alguma forma à cultura ou a algum hábito do local, ou algo que só acontece naquela região. 

Para uma coisa ser nomeada do jeito como ela é, pode ser influenciada por diversos fatores, inclusive o fator regional.

Outro aspecto dessa variação fácil de perceber, é que o sotaque é gerado pelo contato. Por exemplo, eu sou de Minas Gerais. No sul de Minas a gente fala de um jeito mais parecido com o caipira de São Paulo, mas na capital tem um outro jeito de falar. É uma outra prosódia, tem um ‘R’ diferente, eu falo ‘R’ retroflexo, que é o caipira, a capital já fala o ‘R’ aspirado.

"A imposição da língua é um troféu de guerra", diz a professora Carol Jesper
 

Então, mesmo que a gente fale com vários traços diferentes, sejam eles sonoros ou sejam eles de nomenclatura mesmo, tudo isso reflete alguma característica que é cultural, que é social, que é parte da vida, e não haveria por que lutar em prol de uma padronização.

É tentar colocar esse ideal de língua na frente do que é uma língua real. Então a fala sobrepõe a escrita, a variedade sobrepõe qualquer padronização. Quando as línguas surgem, quando elas existem, primeiro elas existem em toda sua variedade, e depois a gente fazendo uma descrição com base no funcionamento delas, elas podem gerar um documento normatizador, como os dicionários, como as gramáticas, mas a existência de uma língua variada precede qualquer normatização. 

Então não vejo nenhuma razão para querer padronizar características que são tão intrínsecas de uma língua, de um funcionamento normal de uma língua.

Há muito preconceito aqui com o português “brasileiro” e há essa tentativa de separar essa língua portuguesa nos modos de vivência. Você acredita que a sociedade perde nessa tentativa de separação social sobre quem fala português com sotaque brasileiro e quem fala com sotaque europeu?

Acho que em primeiro lugar essa é uma polêmica que revela fatores que não tem nada a ver com a história. Vem da visão do brasileiro como inferior e desse desejo de dissociação. Hoje em dia a gente olha para a língua de outras formas. O meu projeto chama “Português É Legal”, mas, embora português seja legal, não foi por vias divertidas, amigáveis, que a língua portuguesa veio parar no Brasil. 

Olhando do ponto de vista do processo de colonização, geralmente se fala que a língua, a imposição da língua é um troféu de guerra, ou seja, nós perdemos. Quando você impõe uma língua num território que tinha várias outras, isso é um troféu pra quem conseguiu fazer essa imposição. Tudo bem, isso aconteceu há muito tempo. A população de hoje em Portugal não pode se responsabilizar. 

Mas não é que a população brasileira tenha um dia aderido a uma língua que é de outro país, não. Foi essa língua que chegou até aqui por processos históricos, agora ela é falada por uma população que cresceu. Essa tentativa de fazer a separação entre as línguas parece tentar apagar esse histórico de imposição da língua.

Então, em primeiro lugar, e não é só o caso do Brasil, mas em Angola e Moçambique, por exemplo, todos os países que usam a língua portuguesa fazem isso por uma questão de terem tido menos poder político. Hoje a população querer esse distanciamento mostra uma tentativa de se colocar a imposição de superioridade em relação aos outros países, revela muito preconceito. 

São línguas mutuamente inteligíveis, apesar das suas características específicas, compartilham muito ainda de vocabulário, de estrutura, até mesmo de sotaque, porque a diferença é inerente à língua.

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Seja dentro do país ou em outro continente, o sotaque é diferente, mas a gente se entende. Então, eu só vejo isso de um ponto de vista social, de um preconceito social. Não acho que seja, de fato, um medo da mudança linguística, porque a mudança linguística também é inerente. E mesmo que não houvesse brasileiros nunca na história falando português, o português de hoje não seria o mesmo de quinhentos anos atrás. 

Quando se colocam nessa posição de achar que os brasileiros estão estragando a língua, demonstram uma falta de compreensão sobre o que é o processo natural de uma língua. O processo natural é de mudança. Quanto mais falantes, mais mudança, inevitavelmente. Mas é um tipo de mudança impossível de conter.

Às vezes eu brinco que parece que estão segurando o ponteiro do relógio, como se fossem parar o tempo. E é a mesma coisa de tentar conter a mudança de uma língua. Não tem como, porque é o processo natural dela. Agora, se eles se incomodam que outros países falem, outras pessoas falem, acho que é um problema sem solução para eles. Porque a língua está aí e ela é dos falantes. 

Ela não pode ser colocada nesse lugar de um objeto em disputa hoje em dia. Ela já é de todos. No máximo, pode ser que algum dia se nomeie de formas diferentes. Mas, do meu ponto de vista, Portugal vai perder relevância se um dia isso acontecer. A população vai ser numericamente insignificante, o português vai sair de todos os rankings de línguas mais falados no mundo e vai estar lá o brasileiro. Então não me parece algo que seja benéfico para a população portuguesa.


No “Português É Legal” você chegou a comentar que essa postura julgadora em relação às variáveis da língua afasta uma curiosidade saudável. Gostaria que falasse um pouco sobre isso.

Esse pensamento me veio porque eu tinha acabado de ler as notícias que diziam que havia pais portugueses se queixando do fato de os filhos assistirem canais brasileiros no YouTube, como do Lucas Neto, e aí eu fiquei pensando como a gente perde essa oportunidade, porque são crianças e adolescentes que estão numa fase muito propícia à investigação de tudo no mundo, de como as coisas funcionam, do que existe, de porque as coisas são como são. 

Então, acho que seria uma oportunidade excelente para incentivar esse tipo de curiosidade e levar um conhecimento mais profundo. 

Refletir: o que será que tá me gerando estranhamento? Será que é a pronúncia? Será que é o vocabulário? Por que eles não falam tal palavra do mesmo jeito que a gente? E outras sim? Por que que aqui ficou relva e lá no Brasil ficou grama? Por que que não foi relva? Será que tem outras palavras derivadas de relva que sobreviveram no Brasil? 

Então, acho que até pensando do ponto de vista da educação mesmo, é a faixa etária ideal para se instigar esse espírito científico, o espírito da dúvida, da curiosidade. É o momento de mostrar como as coisas são interessantes e como há muito por trás daquilo que a gente nem imagina. 

Quando eu paro no julgamento, eu vou colocar um rótulo e a minha reflexão acabou. Agora, quando eu vou além do julgamento ou quando eu deixo de passar pela etapa do julgamento, eu vou ser capaz de investigar raízes que vão trazer respostas muito mais interessantes, muito mais informadoras. 

Quando a gente abre mão de simplesmente rotular algo que gerou incômodo, dá esse passo de investigação e estimula os mais jovens a ter esse olhar de curiosidade, a gente pode chegar a informações muito interessantes e muito reveladoras. 

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