'Senna' alcançou o primeiro lugar no Top 10 Global de séries de língua não inglesa. Crédito: Netflix/Divulgação

'Senna' alcançou o primeiro lugar no Top 10 Global de séries de língua não inglesa. Crédito: Netflix/Divulgação

Senna: o que a série da Netflix diz ao imigrante

Ayrton Senna é do Brasil. E nós também somos —não importa onde nossos pés pisem

12/12/2024 às 06:30 | 3 min de leitura

Nasci em 1998, quatro anos depois que Ayrton Senna morreu. Não precisei ter vivido na mesma época que ele para saber o tamanho que ele teve —e ainda tem. E é isso que fazem os grandes heróis. Eternizam-se. Ultrapassam o tempo e desafiam fronteiras.

E sobre quebrar fronteiras, ele entende. A série que assisti na Netflix se tornou uma das produções mais caras da história da plataforma e, desde que foi lançada, em 29 de novembro, não saiu da listagem das mais vistas em Portugal —e em outros países. Também se tornou a produção de língua não-inglesa mais assistida em todo o mundo.

Os seis episódios da superprodução mostram a ascensão do piloto numa perspectiva que vai além do lado profissional. Na vida pessoal, Senna teve que, desde cedo, tomar decisões importantes e abdicar de muitas coisas em busca de realizar seu sonho.

E foi assim que ele saiu do Brasil. Como quem precisa sair de seu terreno para buscar oportunidades de crescer. No caso dele, no automobilismo. E conseguiu. Mas pagou o preço. O preço que muitos de nós, imigrantes, também pagamos.

Fora do seu país, Ayrton teve que enfrentar a ausência da família em momentos importantes. Conheceu a saudade. Aquele sentimento temido que não tem tradução e todos nós convivemos diariamente. 

O ator Gabriel Leone interpreta Ayrton Senna em série na Netflix. Crédito: Divulgação

Teve que aprender, do dia pra noite, a falar um idioma que não é dele, a viver em lugares que não lhe pertencia e a comer comidas sem o tempero da mãe.

Ayrton perdeu aniversários e calorosos natais enquanto a família dele perdia vitórias e frias derrotas na pista. Naquela época, sem o advento da internet, o único jeito era ouvir a voz no telefone. De vez em quando. 

Até que a voz dele embargou e sua mãe, dona Neide, não hesitou ao fazer as malas e enfrentar horas e horas de viagem para dar um aconchego. Era a recarga que o então expatriado precisava.

Sim. É preciso ter a bateria cheia para enfrentar o desprezo, a indiferença e claro, o preconceito. Uma certa xenofobia escondida em micro agressões que a série bem mostra, porque além de enfrentar competidores na pista, Ayrton encarou batalhas invisíveis nos corredores, nas entrelinhas, nos gestos. 

A exemplo dos comentários sobre seu sotaque, que ele transformou em uma certa cicatriz de pertencimento. Afinal, manter nosso sotaque não é imperfeição, é resistência.

Por essas e outras que talvez ele pode ter sido visto como um rebelde ou arrogante. Eu diria que é uma dose de arrogância que a gente precisa tomar para sobreviver nesse mundo que não está pronto para nos receber. 

Isso é ser o Mau Selvagem, de Álvaro Filho. É tomar coragem necessária para se impor. Romper barreiras. Fazer história.

Também notei o não-pertencimento de Lilian Vasconcelos, primeira e única esposa do piloto, representada na série pela atriz Alice Wegmann. A atuação foi certeira e capaz de mostrar o desconforto com o clima europeu, a sensação de estar sempre deslocada, como um objeto mal encaixado num quebra-cabeça que a gente não escolhe. 

A adaptação não é só física, é uma negociação existencial. Ela não aguentou. Nem todo mundo aguenta.

Mas o propósito de Ayrton era grande. Deixar a bandeira do Brasil no lugar mais alto do pódio era uma missão. Não era só por ele, era por todos nós. Era pra mostrar que apesar de todo silenciamento, nós existimos e resistimos.

Na pista e fora dela, ele nunca desistiu. A insistência dele é um reflexo da vida do brasileiro que tem que superar diversos obstáculos. Ele passava por cima. 

Ayrton tinha muito, muito orgulho de ser brasileiro.

Ayrton Senna é considerado pela Fórmula 1 o piloto mais rápido de todos os tempos. Crédito: Divulgação

Esse sentimento fica ainda mais aflorado quando a gente fica longe. Aqui fora, todo mundo sente aquele quentinho no coração quando toca um samba, Caetano ou Anitta. Ver as cores verde e amarelo é se sentir acolhido, ou até mais simples: é se sentir visto.

Numa cena em que o piloto volta ao Brasil e vê a pobreza, ele tem certeza de que precisava fazer a diferença. E fez. Seja na alegria que levou aos conterrâneos ao honrar a bandeira brasileira, seja no Instituto Ayrton Senna, a ONG que deixou como legado. 

No fim das contas, morar fora é como cantam Emicida e Gil: “viver é partir, voltar e repartir.”

E Ayrton Senna, trinta anos depois, ainda nos ensina muitas coisas.


Sobre Senna

Produção: Fabiano Gullane e Caio Gullane

Roteirista-Chefe: Gustavo Bragança

Escrito por: Álvaro Campos, Gustavo Bragança, Rafael Spínola, Thais Falcão e Álvaro Mamute

Direção: Vicente Amorim e Julia Rezende

Direção geral e Showrunner: Vicente Amorim

Jornalismo verdadeiramente brasileiro dedicado aos brasileiros mundo afora


Os assinantes e os leitores da BRASIL JÁ são a força que mantém vivo o único veículo brasileiro de jornalismo profissional na Europa, feito por brasileiros para brasileiros e demais falantes de língua portuguesa.


Em tempos de desinformação e crescimento da xenofobia no continente europeu, a BRASIL JÁ se mantém firme, contribuindo para as democracias, o fortalecimento dos direitos humanos e para a promoção da diversidade cultural e de opinião.


Seja você um financiador do nosso trabalho. Assine a BRASIL JÁ.


Ao apoiar a BRASIL JÁ, você contribui para que vozes silenciadas sejam ouvidas, imigrantes tenham acesso pleno à cidadania e diferentes visões de mundo sejam evidenciadas.


Além disso, o assinante da BRASIL JÁ recebe a revista todo mês no conforto de sua casa em Portugal, tem acesso a conteúdos exclusivos no site e convites para eventos, além de outros mimos e presentes.


A entrega da edição impressa é exclusiva para moradas em Portugal, mas o conteúdo digital está disponível em todo o mundo e em língua portuguesa.


Apoie a BRASIL JÁ

Últimas Postagens