Cláudia Simões (à direita) é confortada ao deixar audiência. Crédito: Manoela Ferrer, Arquivo Pessoal

Cláudia Simões (à direita) é confortada ao deixar audiência. Crédito: Manoela Ferrer, Arquivo Pessoal

Caso Cláudia Simões: 'Sempre que eu tenho que vir até aqui, não consigo dormir'

Julgamento sobre agressões no Tribunal de Sintra foi novamente adiado após juíza considerar que tempo era curto

10/05/2024 às 06:02 | 4 min de leitura
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“Sempre que eu tenho que vir até aqui, não consigo dormir.” As palavras são de Cláudia Simões, mulher negra que teve a face deformada durante uma abordagem policial, em 2020. O julgamento do caso da cozinheira —que também é ré por ter mordido o agente que a espancava— se arrasta e foi adiado mais uma vez no Tribunal de Sintra, na região metropolitana da Grande Lisboa.  

Na quarta (8), Cláudia e três agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) participaram da audiência, que durou duas horas. A sessão serviu para serem ouvidas as últimas testemunhas de defesa dos policiais. Ao final, a juíza Catarina Pires decidiu prorrogar a leitura da sentença para o dia 22 de maio, às onze horas, argumentando que o tempo era curto para a conclusão do juízo. 

"Me doem as pernas, os braços, o rosto… Em uma das sessões, a minha filha, que é apenas uma criança, teve que ficar duas horas e meia dando explicações. Eu realmente só queria que eles me dissessem como é que eu me aleijei sozinha”, afirmou Cláudia à BRASIL JÁ, depois da audiência. 

Depois de confirmar a data com as defesas de Cláudia e dos policiais, a magistrada sugeriu a ambas que buscassem “inspiração para dizerem tudo aquilo que precisam em um curto espaço de tempo”. Segundo a juíza, “falar muito em pouco tempo também é uma arte”.

“Eu já esperava por isso. Pelo menos a nova data será no mesmo dia do aniversário da minha mãe”, completou Cláudia em comentário à reportagem.

Cláudia Simões e o agente da PSP Carlos Canha são ambos considerados vítimas e réus no processo. Canha é acusado por três crimes de ofensa à integridade física qualificada, três por sequestro agravado, um por abuso de poder e outro por injúria agravada contra Cláudia e outras duas vítimas. 

Cláudia senta no banco dos réus por ter mordido Carlos Canha ao ser detida. A mulher foi enquadrada no crime de ofensa à integridade física. Os outros dois agentes, Fernando Luís Pereira Rodrigues e João Carlos Cardoso Neto Gouveia, são acusados pelo Ministério Público de abuso de poder e por não terem evitado que Simões fosse brutalmente agredida.

Face deformada em abordagem

A agressão contra a cozinheira aconteceu em 2020 dentro de um ônibus da empresa Vimeca, na Amadora. Ao perceber que a filha de Cláudia, na época com sete anos, esquecera o bilhete do ônibus em casa, o motorista do coletivo impediu que ambas seguissem viagem. 

O motorista também acionou o policial Carlos Canha, que passava pela rua. A brutalidade da abordagem a Cláudia, hoje com 46 anos, deixou marcas de espancamento na mulher. As fotos foram exibidas em jornais. 

Num primeiro depoimento, Simões relatou ter sido obrigada a se sentar no ponto de ônibus, onde foi agredida com um tapa nas mãos e estrangulada. Depois de chutes e socos durante a abordagem, ela admite: “foi aí que lhe mordi a mão [do agente]”. 

Cláudia Simões antes e depois das agressões. Crédito: Arquivo Pessoal

A cozinheira seguiu o relato contando que, depois de ser algemada, foi empurrada com força para dentro da viatura. “Quando a carrinha arrancou, começou a bater-me muito”, disse. “Fecharam o vidro e meteram música. Chamaram-me nomes: puta, vaca, macaca, preta do caralho...”, acrescentou no depoimento.

Os três agentes das forças de segurança negam todas as acusações. Carlos alega ter utilizado de força meramente necessária para prender Cláudia. Laudo do Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra), onde Cláudia Simões foi atendida no dia 19 de janeiro de 2020, descreve que a ela teve a “face deformada por hematomas extensos”. 

A perícia levou o Ministério Público a indiciar os agentes Carlos Canha, João Carlos Cardoso Neto Gouveia e Fernando Luís Pereira Rodrigues. Os dois últimos estavam dentro da viatura da polícia que levou Cláudia à esquadra do Casal de São Brás, na Amadora.

A audiência

Quando Cláudia Simões entrou na chamada Mega Sala, os três agentes da PSP já estavam sentados na primeira fila. Carlos Canha ficou no lado totalmente oposto ao de Cláudia, que se acomodou na primeira cadeira do lado direito. 

João Gouveia e Fernando Rodrigues, ambos fardados, ficaram sentados entre os dois. Raramente a juíza olhava para Simões. Sempre que se dirigia aos demais presentes, fixava o olhar nos três policiais e nos advogados. Todas as quatro testemunhas ouvidas na tarde de quarta foram indicadas pelos agentes da PSP, incluindo Pedro Manuel Neto Gouveia, de 57 anos, oficial da Polícia Metropolitana do Porto e tio do réu João Gouveia. 

Ao afirmar por videochamada que não conhecia nenhum dos outros arguidos, garantiu ter um bom relacionamento com o sobrinho, além de o considerar uma pessoa de “atitudes carinhosas”, sendo alguém que mantém contato permanente com a família e com os avós. 

Descreveu-o também como um jovem empenhado, atencioso e cordial devido à criação do sobrinho ter sido baseada no que ele chamou de “educação antiga portuguesa”.

O único depoimento presencial, entre as quatro testemunhas, foi o da procuradora da República Amélia Rodrigues, que alegou conhecer João Gouveia há mais de quinze anos por terem estudado juntos no liceu e na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. 

“Ele é uma das pessoas mais impolutas que conheço. Em termos profissionais, está sempre preocupado em fazer o melhor que sabe e consegue”, complementando que Gouveia sempre agiu como “apaziguador de conflitos” sendo um dos agentes “mais calmos e ponderados do seu grupo de trabalho”.

Depois de reler todos os depoimentos dos arguidos a pedido da advogada de Cláudia Simões, Ana Cristina Domingues, a juíza perguntou a Carlos Canha se ele já havia prestado formação de artes marciais dentro da polícia. 

O agente respondeu que sim, há dezenove anos, esse tipo de serviço para senhoras vítimas de violência doméstica e jovens “que não tinham o que fazer da vida”. Também afirmou já ter sido esfaqueado duas vezes durante os vinte e cinco anos de profissão.

Antes de encerrar a audiência, ambos os advogados disseram que gostariam de usar o seu tempo legal de no máximo uma hora para tecer as declarações finais antes da decisão. Foi quando a juíza disse não haver mais tempo. 

Para Cláudia, era a senha de que ela teria que reviver, mais uma vez, no próximo dia 22, todo o sofrimento em nova sessão. Com um olhar abatido e voz tênue, foi abraçada por todos que estavam à sua volta, incluindo militantes da Frente Antirracista e de outros movimentos sociais. 

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