Com 22 anos de atuação no Supremo Tribunal Federal (STF), completados nesta quinta (20), o decano da Corte chegará neste sábado (22) a Portugal, onde ocorre a 12ª edição do Fórum de Lisboa, preparado para discutir formas de evitar que a desinformação (as fake news) disseminada —especialmente pelas redes sociais— atrapalhe a democracia.
Ele vê o problema como de "governança global" e diz que o STF, no Brasil, está preparado para enfrentar a questão.
Segundo o ministro, o evento "cumpre uma função importante ao trazer esses debates e trazer especialistas que discutem as mais diversas questões vitais para a democracia".
O Fórum de Lisboa, que ocorre entre 26 e 28 de junho, reúne anualmente acadêmicos, gestores, especialistas, autoridades e representantes da sociedade civil, do Brasil e da Europa, e este ano terá como tema os "Avanços e recuos da globalização e as novas fronteiras: transformações jurídicas, políticas, ecoômicas, socioambientais e digitais".
A BRASIL JÁ conversou por telefone com o ministro nesta quinta (20).
Confira abaixo a entrevista, na qual Mendes tratou de semipresidencialismo, moderação das redes sociais, eleições municipais, reparação colonial e mais:
"Deputado que espalha fake news pode perder mandado por quebra de decoro"
BRASIL JÁ:O tema "governos de coalização e desafios das políticas públicas" será debatido no fórum na semana que vem. Sobre isso, e tomando o semipresidencialismo português em comparação ao nosso presidencialismo, como o senhor avalia essas formas de governo?
Gilmar Mendes: Já há algum tempo temos discutido o tema do semipresidencialismo. Foi exatamente no fórum que lançamos esse debate. E, hoje, está muito presente no contexto político brasileiro. Temos discutido muito a problemática das fake news, do eventual controle das mídias sociais... Estamos debatendo isso também no fórum.
E outra preocupação, num país desigual como o nosso [o Brasil], é as políticas públicas serem efetivas.
No fórum nós lançamos, já há algum tempo, até com a liderança de pessoas importantes como o presidente do [Banco] Bradesco, doutor [Luiz Carlos] Trabuco, a ideia de haver uma lei de responsabilidade social no Brasil, não é? Então, temos tido esses diálogos e essas discussões que, eu imagino, são extremamente proveitosas para a crítica e ambiente acadêmico e político.
O senhor já defendeu a moderação das redes para evitar que esse ambiente fosse regido pela "lei da selva". Como isso pode ser implementado, principalmente num momento em que a discussão sobre fake news e responsabilização avança não apenas no Brasil, mas também na Europa?
A gente já tem alguns modelos europeus em funcionamento. O modelo alemão, que com alguma adaptação se tornou o modelo europeu. Temos, recentemente, o modelo da Grã Bretanha. E, no Brasil, há discussões sobre isso, sobre regulação das redes.
O próprio deputado [federal] Orlando Silva [do PCdoB], que foi relator desse projeto [no Congresso brasileiro], estará em Lisboa discutindo essa temática, junto com outros especialistas.
O pessoal da Unesco estará presente, também, que acompanha com muita preocupação essa combinação que —você sabe— é delicada entre liberdade de expressão e os demais valores que circundam esse debate. Ninguém quer suprimir a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, mas também se preocupa com essa onda avassaladora de fake news, mentiras, abusos que se perpetuam.
Você viu que no Rio Grande do Sul, agora na tragédia, as pessoas estão comprometendo a ajuda e o trabalho que é realizado porque se espalhavam fake news. Isso é extremamente grave. E o que se quer é que haja uma moderaçao efetiva por parte das próprias empresas, dos próprios provedores.
E o Brasil está em meio a essa discussão. O TSE, o Tribunal Superior Eleitoral, avançou nesse debate para as eleições. Mas é preciso ter uma regulação para o país como um todo. E muitos cobram do Supremo, e cobram também do Congresso, essa regulação.
"Fake news não é um problema do Brasil. Como sabemos, é um problema da governança global"
O senhor acha que está sendo suficiente essa resposta, no sentido de responsabilizar as pessoas que cometam esse tipo de crime?
Nesse caso do Rio Grande do Sul, houve deputados que participaram da divulgação de fake news, o que pode levar até à perda do mandato por comprometimento do decoro. Mas não é essa a discussão. O que é fundamental é que todos tenham responsabilidade.
E é isso que se quer. Hoje, há um temor enorme —e vai ser o teste para as eleições de outubro— que haja abuso com o uso da Inteligência Artificial na propaganda eleitoral.
O TSE vai estar sendo testado ao limite nesta questão. E é fundamental, então, que a gente discuta isso e esteja atualizado em relação às respostas. Não é um problema nacional, não é um problema do Brasil. Como sabemos, é um problema da governança global e devemos, então, estar atentos a isso.
E acho que o fórum cumpre uma função importante ao trazer esses debates e trazer especialistas que discutem as mais diversas questões vitais para a democracia. E essa é uma questão vital para a democracia, hoje.
A Justiça brasileira está preparada para o enfrentamento? O Supremo é um dos alvos preferenciais dos ataques dos grupos extremistas.
O Brasil enfrentou uma crise institucional muito séria no governo [do ex-presidente Jair] Bolsonaro. Houve uma campanha muito forte contra o judiciário e, especialmente, contra o Supremo Tribunal Federal. Enfrentamos isso e saímos vitoriosos dessa batalha. Mas é uma batalha de todo dia. Todo dia o tribunal sofre esses ataques. Em razão, muito mais, dos seus méritos do que dos seus defeitos.
Você sabe que o tribunal enfrentou a questão da pandemia, em que o governo federal defendia ideias negacionistas, uso de medicamentos que não eram efetivos, e o tribunal fortaleceu estados e municípios para enfrentar essa grande batalha que custou 700 mil vidas ao Brasil.
Então, o tribunal tem uma larga experiência nesse enfrentamento e certamente essa temática vai ser versada no seminário.
"O Brasil vai pedir a extradição dos foragidos do 8 de Janeiro"
Nesta quinta (20) foi noticiado que a Argentina enviou ao Brasil uma lista com nomes dos foragidos que estão lá. Eu queria saber como a Justiça, o Supremo —que guia esse processo— pode alcançar essas pessoas nos outros países.
Esse caso da Argentina tem sido amplamente noticiado e eu imagino que o próprio Ministério da Justiça está pedindo informações para, eventualmente, solicitar a extradição [dos foragidos]. E vai tratar como trata todos os demais casos de pessoas com processos no Brasil, que estão sendo investigadas ou que já foram condenadas, e vai pedir a extradição.
Eu não vejo maiores problemas nessa questão e nem imagino que aqui possa haver algum tipo de crise diplomática.
Pelo contrário, acho que após a posse de [Javier] Milei [no cargo de presidente], já houve vários contatos entre autoridades brasileiras e argentinas a área de economia, de energia... E a vida segue normal.
De algum modo o extremismo político começa fora da política, com a criminalização da política tradicional, como, no Brasil, foi parte do legado da Lava Jato, operação de que o senhor é crítico. Portugal teve um primeiro-ministro que saiu porque foi envolvido em supostas denúncias, que até hoje não se efetivaram.
Nós temos um painel sobre essa questão de judicialização da política e atuação do Ministério Público e do Judiciário. Portugal viveu, também, esse seu momento, que levou à renúncia do primeiro-ministro [António] Costa. E a Espanha teve também um episódio envolvendo a esposa do presidente [Pedro] Sánchez.
[Neste momento, o ministro retoma o pensamento sobre o Brasil]
Também teremos um painel sobre o papel das Forças Armadas. Nós sabemos os problemas que tivemos durante o governo Bolsonaro. Há propostas no Congresso, regras para a participação dos militares na administração e vamos estar discutindo, inclusive com ex-ministros da Defesa, essa questão.
Nesse capítulo da preservação da democracia, é fundamental considerar, principalmente na América Latina, as intervenções por parte das Forças Armadas na vida política.
"O crescimento do racismo e da xenofobia em Portugal preocupa a todos"
Marcelo Rebelo de Sousa puxou o debate das reparações às ex-colônias portuguesas. Foi capa na edição de junho da BRASIL JÁ. Como o senhor vê o debate proposto pelo presidente?
É um tema bastante delicado, como nós vemos das reações à proposta do presidente Marcelo Rebelo de Sousa. O Brasil sempre teve essa componente africana na sua formação racial —e muito se deve aos escravos [escravizados] que para aqui vieram.
E na nossa política, mesmo no governo militar, nós sempre tivemos simpatia, por exemplo, para com os movimentos de independência na África, depois criamos e ajudamos a fortalecer a comunidade de língua portuguesa —e entendemos que essa dívida que temos com o continente africano deva ser vista sempre de um prisma de cooperação, em que procuramos manter nas nossas políticas de desenvolvimento, nas políticas de cooperação.
Os governos Lula 1 e 2 foram marcados nesse sentido, de ter uma presença brasileira muito forte, especialmente nos países da África de língua portuguesa. À medida que esse tema volta talvez também devesse voltar [a discussão sobre] o fortalecimento na comunidade de língua portuguesa. Isso já seria um grande passo na cooperação tecnológica e cultural, que é fundamental.
Existe uma forte cultura de transparência na Justiça brasileira que chega a ser contrastante quando se depara com outras culturas do direito, especialmente aqui na Europa. A transparência ajuda a sociedade a fiscalizar e fortalece a democracia, não?
Cada país tem suas características culturais. Por exemplo, nós já temos a tradição dos julgamentos abertos, ao contrário do que acontece na Europa massivamente, em que os julgamentos não são feitos em público. A partir daí, ficou muito fácil para o Brasil adotar a TV Justiça, o que não seria comum nem em Portugal nem na Europa em geral. Mas é interessante esse diálogo, até para vermos atributos e defeitos dos vários sistemas.
O senhor há muitos anos vive entre Portugal e Brasil, conhece a realidade do país, e eu estava lembrando que numa entrevista o senhor citou o presidente Marcelo Rebelo de Sousa quando ele disse que o país é uma comunidade de afetos. Nesse momento, a gente vê casos de xenofobia em crescimento vertiginoso. Eu queria saber o que deu errado, nesse sentido, já que o discurso de ódio —como os números demonstram— é crescente?
Certamente esse é um tema que preocupa a todos: o crescimento dessa questão do racismo, da xenofobia. É até uma contradição. Porque Portugal, um país pequeno, se valeu da diáspora para ajudar na sua sobrevivência.
Veja quantos familiares nós temos em Portugal e quantos portugueses estão espalhados mundo afora.
Aí, vemos esse sentimento crescente de xenofobia, com vitória de partidos mais dados a essa temática extremada, de vedação da migração, de causar dificuldades à imigração. Tudo isso é preocupante. Especialmente, então, em relação aos brasileiros, isso fica mais chocante. Mas eu acho que nós temos que investir energia para resgatar esse bom sentimento de que falava o presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Esse sentimento de afeto.
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