02/02/2024 às 06:00
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Na Europa, se desenha uma divisão clara entre lideranças que apoiam e os que são contrários ao acordo de livre comércio entre Mercosul —formado por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai— e União Europeia (UE). Na disputa entre os que ganham e os que perdem, entram os agricultores de França, Espanha, Bélgica, Grécia, Alemanha, Itália e Portugal, que marcham (ou param) com tratores pelas estradas de seus países.
Nos últimos dias, o movimento cresceu e se tornou a parte visível de uma disputa que se arrasta há mais de duas décadas e que, ao cabo, está em causa —e em movimentos de ida e volta— o protecionismo tanto na América do Sul como na Europa.
Para tentar acalmar os ânimos, ainda na quarta (31), o governo português anunciou um pacote de 500 milhões de euros para (tentar) mitigar o impacto causado pela seca e reforçar ao Plano Estratégico da Policia Agrícola Comum.
Segundo informações da Agência Lusa, os caminhoneiros espanhóis impedidos de entrar em Portugal na fronteira de Vila Verde de Ficalho, no município de Serpa, afirmaram "compreender" o protesto e voltaram aos pontos de distribuição de origem.
No fim da manhã de ontem, em declarações à SIC, a ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, disse que os agricultores devem confiar no governo e prometeu pedir autorização à Comissão Europeia para usar o orçamento do Estado com o intuito de evitar distorções no mercado.
Tais distorções citadas pela ministra tem uma razão que nem chega a ser dissimulada nos protestos: concorrência estrangeira. O que também se argumenta do lado europeu é que aos agricultores do continente são impostas regras de manejo muito mais rígidas do que as adotadas no Mercosul, por exemplo.
"Os agricultores devem confiar no Governo e nas instâncias europeias. A PAC [política agrícola comum] é o único instrumento europeu para fazer face à produção de alimentos e, neste momento, não serve os desafios que os agricultores têm pela frente", afirmou a ministra portuguesa.
O que é o acordo UE-Mercosul
Passados 20 anos de negociações, em junho de 2019 finalmente Mercosul e UE anunciaram chegar a um termo pelo que pudessem fechar o acordo que abarca três pilares: comércio, diálogo político e cooperação. O objetivo do pacto entre os países do Sul e do Norte é eliminar barreiras tarifárias entre os blocos econômicos e facilitar a circulação de produtos entre as nações.
Ao longo de décadas, programa-se eliminar progressivamente tarifas aplicadas a produtos de ambos os lados.
Por exemplo, atualmente o Mercosul impõe a taxação de vários produtos agrícolas da comunidade europeia. Em contrapartida, a UE oferece liberar 82% das importações agrícolas do Mercosul e só impor tarifas a produtos mais sensíveis. Os padrões europeus de segurança dos alimentos seriam mantidos e seguidos pelo Mercosul.
Na indústria, também se prevê a eliminação de 90% das tarifas de importações da UE.
Para sair do papel, os dois lados do acordo precisam cumprir protocolos no que diz respeito ao meio ambiente e ao direito dos trabalhadores.
O desafio Macron
No entanto, mesmo após duas décadas de negociações que, em tese, culminariam no acordo, um dos grandes desafios atuais para se firmar o pacto é personalizado na figura do presidente francês, Emmanuel Macron. Fragilizado na política interna e com a extrema-direita em crescimento, Macron tenta enterrar de uma vez por todas o acordo.
Ele sofre pressão sobretudo dos agricultores franceses, que, para garantir competitividade internacional, historicamente são beneficiados por fortes subsídios do Estado. A ação da França para favorecer seu agronegócio foi alvo de muitos contenciosos, alguns não resolvidos ainda, na Organização Mundial de Comércio.
Para ele, a última oportunidade de se fechar o pacto foi quando a Espanha estava na Presidência da União Europeia, no ano passado.
O presidente espanhol, Pedro Sánchez, e o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, trataram do tema e tudo parecia bem encaminhado.
"Aquilo era o último momento, porque vão acontecer eleições parlamentares do Parlamento Europeu e este ano provavelmente será um parlamento menos propenso a aceitar grandes acordos comerciais. (...) Sem o apoio da França ou sem anuência da França, me parece muito pouco provável que este acordo que está sendo negociado há mais de 20 anos possa prosperar", explicou Stuenkel.
Em dezembro, durante a conferência do clima em Dubai, o presidente francês classificou a pegada ambiental dos produtores do Mercosul como "repugnante". A declaração é forte e desagradou lideranças do setor, especialmente no Brasil, e o próprio governo brasileiro. Além de carregar em si uma mensagem preconceituosa, é uma mentira. Explico adiante.
Macron irá ao Brasil em março e tentará explicar a Lula que falava para o seu público interno.
Em jogo o campo
As reivindicações dos agricultores europeus envolvem questões internas, que, por nunca terem sido pacificadas, contaminam questões externas, como o acordo de livre comércio entre Mercosul e Europa.
Nas questões internas, há o ressentimento de terem sido "forçados" a focar a sua produção em algumas culturas agrícolas "mais vocacionadas" por seus países. Portugal, por exemplo, na produção de cortiça, azeitonas e uva.
A ação, nunca compreendida plenamente pelo agro, serve justamente para, no conjunto europeu, garantir competitividade internacional. A produção em pequena escala na Europa não dá conta da concorrência, sempre em grande escala, do países continentais, como Estados Unidos e Brasil, por exemplo.
A ideia que os Estados da União Europeia tiveram para melhorar o humor de seus agricultores e de lhes aumentar competitividade foi irrigá-los com subsídios. Agora, o agro quer mais diante da possibilidade de um acordo de livre comércio entre Mercosul e UE.
Chanceler alemão é a favor
Enquanto agricultores franceses e portugueses bloqueavam estradas, o chanceler alemão, Olaf Scholz, disse nesta quinta (1º) ser a favor do acordo com o Mercosul. A declaração foi dada à imprensa em Bruxelas, Bélgica, depois que se confirmou uma ajuda de 50 bilhões de euros à Ucrânia, fracionada em quatro anos.
Scholz lamentou que o diálogo sobre o pacto seja tão lento, mas, ainda assim, disse estar otimista com uma resolução do acordo. Entretanto, para somar-se ao lado que rejeita o acordo, encabeçado pela França, o primeiro-ministro da Irlanda, Leo Varadkar, também se manifestou contra a proposta.
"Quero fazer eco aos comentários do presidente Macron sobre o Mercosul. Não podemos ter uma situação em que nos impomos regulações ambientais aos agricultores [europeus] e permitimos importações de países que não as têm", afirmou Varadkar.
Macron aproveitou a deixa para reforçar o posicionamento contrário: "Tudo o que pedimos é que as normas ambientais e de higiene se apliquem aos produtos que importamos. Hoje, como está feito o rascunho da proposta, a França se nega a apoiar [o acordo] e seguirá negando".
O vale tudo dos que rejeitam o acordo
Um dos principais destinos de exportação do agronegócio brasileiro é justamente a Europa, que exige dos produtores protocolos ambientais e de higiene, ao contrário do que afirmou Macron. Um dos protocolos exigidos impede a UE de importar produtos produzidos em áreas desmatadas.
Também há resistências no Brasil
Um dos pontos do acordo de livre comércio que enfrenta resistência no Brasil é a metodologia para a cobrança da Taxa de Carbono. Em entrevista à Folha de S.Paulo, a secretária-executiva da Câmara de Comércio Exterior, Marcela Carvalho, reclama que há um desequilíbrio no método para a cobrança "antipoluição".
Como a Europa tem a pegada de carbono maior por conta de sua matriz energética suja (gás, diesel (gásoleo) e carvão), ao contrário do Brasil, cuja energia é limpa, os negociadores do acordo decidiram excluir do cálculo as emissões indiretas de carbono.
Por exemplo, quer-se taxar a siderurgia brasileira, porque o negócio em si é poluente, mas o gasto energético de outros segmentos mais fortes na UE não será contado, embora utilizem mais energia suja e emitam mais poluentes para atmosfera.
"A desvantagem é imensa para o Brasil em termos de competitividade, visto que o país possui uma matriz energética mais limpa e poderia se posicionar melhor no mercado europeu frente a outros concorrentes", disse Carvalho ao jornal.
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