Lucília Gago, PGR (Arquivo). Crédito: José Sena Goulão, Agência Lusa

Lucília Gago, PGR (Arquivo). Crédito: José Sena Goulão, Agência Lusa

PGR está há 3 anos sem analisar ilegalidade do Chega

'Falha inqualificável', diz Ana Gomes, candidata à Presidência em 2021 e autora da denúncia

20/02/2024 às 14:17

A trajetória de Ana Gomes se confunde com a história de Portugal. É, sobretudo, um longo caminho de permanente luta contra o fascismo em terras lusitanas. Por ter vivido e militado contra o salazarismo, ela costuma dizer que reconhece ditaduras quando vê uma.  

Aos 70 anos, completados no último dia 9, a diplomata aposentada, ex-eurodeputada e ex-deputada, e candidata à Presidência da República em 2021, falou à BRASIL JÁ sobre, entre outros temas, o atual contexto político do país.

Na conversa que tivemos, de aproximadamente meia hora, Ana criticou a morosidade do Tribunal Constitucional —e em particular da Procuradoria-Geral da República (PGR)— em analisar uma denúncia que ela própria fez contra a legalidade do Chega, partido de extrema direita. 

Ela se refere a um requerimento que se arrasta desde 2021. No documento, Ana Gomes afirmou que o partido liderado por André Ventura poderia ser enquadrado como uma organização de concepção racista e fascista. 

É nesse contexto que Gomes disse à BRASIL JÁ ser “inacreditável” que, até hoje, a procuradora-geral da República, Lucília Gago, não tenha tomado uma posição a respeito do processo e que a atitude representa uma “falha inqualificável”. 

No dia 14 de fevereiro, a reportagem procurou a assessoria de imprensa da PGR por e-mail e não teve resposta.

Candidata à Presidência em 2021, Ana Gomes. Crédito: Reprodução X

A ex-diplomata também lamentou que o governo, de maioria absoluta do Partido Socialista (PS), ao qual ela é filiada, tenha criado “tanta desilusão” ao povo português. Ainda assim, ela defendeu uma nova “geringonça” —apelido dado a coalizões de partidos à esquerda— liderada por Pedro Nuno Santos (PS). 

Perguntei então se, diante do atual quadro, seria possível uma aliança entre a direita e a extrema direita, passadas as eleições legislativas, do próximo dia 10 de março. A jurista acredita que sim. E fez um alerta: 

"[Luís] Montenegro [candidato da Aliança Democrática, de centro-direita] sairá, não incumprirá a promessa, mas outros o farão".  

Confira abaixo a entrevista.

BRASIL JÁ - Em que situação está o processo enviado ao Tribunal Constitucional em 2021 onde você pede a extinção do Chega? 

Ana Gomes - Como deve saber, fui candidata nas últimas eleições presidenciais daquele ano. Fiquei em segundo lugar, atrás do professor Marcelo Rebelo de Sousa e à frente do  [André] Ventura, que disse que se demitia caso não ficasse à minha frente. E claro, ele demitiu-se para depois voltar a ser reeleito. Eu tive que enfrentar o Ventura. Os primeiros embates foram exatamente nesta campanha presidencial. 

Para me preparar, fui ler o programa do Chega, no qual eles tinham se legalizado como partido. Nesta altura, André Ventura era o único deputado no Parlamento. Ao ler o programa fiquei estarrecida, fiquei doente. Como é que um país como Portugal, com a Constituição que tem, com as leis que tem contra o racismo e contra o fascismo, que são leis da República… Como é que foi possível um Tribunal Constitucional legalizar um partido que tinha aquele programa que previa desmantelar o Serviço Nacional de Saúde, a escola pública, os professores, impor pena de morte e castração química? Previa ainda a expulsão de imigrantes e a saída da União Europeia e da ONU. Eu fiquei estarrecida quando li aquilo. Como é que foi possível este partido ser legalizado? Como é que o Tribunal Constitucional não é chamado às suas responsabilidades perante a este programa? Como é que eles não viram este programa? Nunca deveria ter sido legalizado. 

Eu sei que havia uma grande cumplicidade da Presidência da República, do Governo, etc., por ter deixado isso acontecer. Sei porque, em última análise, são esses, além do Tribunal Constitucional, que têm mais responsabilidades do que eu, como cidadã, para exigir que o Tribunal revise o estatuto do partido. E ninguém fez. Por isso, logo a seguir às eleições, sabendo que estava óbvio que Marcelo iria ganhar, visto que era também o incumbente, voltei para casa e disse ‘agora vou fazer eu uma participação como cidadã porque eles não podem fingir que não sabem, que não podem rever’. 

E o que encontrou ao ler a legislação portuguesa?

Que o próprio Tribunal Constitucional não podia retomar o assunto sem ser, para isso, convidado pela Procuradoria-Geral da República. A PGR é que tinha a obrigação, como defensora número um da legalidade do país, de pedir ao Tribunal que reapreciasse a questão, ainda por cima não só à luz do programa, mas de uma série de práticas sinistras que, aliás, foram exibidas durante a própria campanha eleitoral do Chega. 

Atitudes como, por exemplo, chamar de bandidos uma família de origem africana, atos perfeitamente xenófobos e racistas contra a população cigana, contra a população africana, imigrantes etc. Portanto, é daí que eu faço uma participação, que não foi ao Tribunal Constitucional, foi à PGR, órgão que podia levantar a questão junto ao TC e obrigá-lo a reapreciação da questão. 

Fiz isso em fevereiro de 2021 e, no mês seguinte à campanha e das eleições, mandei uma queixa mais completa fundamentando, com base nas leis contra o racismo e contra o fascismo, que estávamos diante de uma organização fascistas que dizia e previa em seu programa a extinção da República, a criação de uma “nova” constituição (através da alteração da Lei Fundamental) e, portanto, uma quarta República. Não podia ser mais claro. Com dados concretos, incluindo fotografias de atos racistas e etc, mostrei o que eles tinham feito durante a campanha eleitoral. 

A seguir, fui ver o representante da Procuradoria-Geral da República junto ao Tribunal Constitucional em uma reunião formal que resultou em uma ata, onde me foi dito: ‘Sim senhora, nós vamos fazer o nosso trabalho, mas quem vai decidir é a procuradora-geral da República [Lucília Gago]’. Nessa altura, o próprio Tribunal Constitucional estava com um número incompleto de juízes, pois havia um problema qualquer com nomeação de juízes. 

Os elementos da PGR no TC, portanto no Ministério Público, disseram-me que poderia demorar uns meses, já que era preciso que o Tribunal estivesse completo. Naquela altura não estava, entretanto veio a estar, e, em última análise, isso é decidido pela própria procuradora-geral. Tenho a certeza que os representantes do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional fizeram o seu trabalho e mandaram isso para apreciação da senhora procuradora-geral da República . No entanto, até hoje, ela está sentada em cima disso.

Em fevereiro do ano passado, eu disse publicamente que não aceitava não ter resposta. Ao princípio da legalidade, fiz uma participação como cidadã e exijo uma atuação do Ministério Público. É evidente que, entretanto, o Chega tinha aumentando o número de parlamentares na última eleição legislativa. 

Já não era só um deputado, eram doze, o que deixou a situação muito mais difícil. Mas, a situação se tornou politicamente mais complicada por causa da PGR que não atuou a tempo, não é? 

É neste período que a advogada Carmo Afonso também apresenta um pedido de extinção do partido junto ao seu, correto?

A Carmo Afonso ajudou-me. A segunda comunicação que mandei à PGR é complementar à primeira participação e tenho a ajuda dela para elaborar o texto e enviar toda a documentação, todos os atos racistas, fascistas, etc, etc. E mais, havia aspectos de ordem criminal, relacionados com indivíduos financiadores do próprio Chega, algo de conhecimento público. 

Membros envolvidos com organizações ilícitas?

Sim, eu suspeito que esses financiadores tenham ligações com organizações ilícitas, por isso mandei os elementos que eu tinha. Não há só o ângulo constitucional, há o ângulo da investigação criminal relativos a alguns financiadores do Chega. A procuradora-geral ficou sentada, até hoje não fez nada. 

Em fevereiro de 2023, perguntei no meu programa na SIC o que a senhora procuradora-geral da República estava à espera para decidir sobre isso. É evidente que a situação, entretanto, tinha se tornado muito mais complicada politicamente, porque quando eu fiz a queixa, o Chega tinha um deputado e agora já possuem doze. 

Nessa altura, eu recebi uma comunicação do chefe de gabinete da senhora procuradora-geral da República, por escrito, a dizer-me que o assunto estava em apreciação. Mais nada.

E agora o objetivo de Ventura é aumentar ainda mais a bancada.

E tem toda a maquinaria de [Jair] Bolsonaro, da IURD [Igreja Universal do Reino de Deus ], do Steve Banon e sei lá mais quem… Hoje, existem muito mais empresários a financiá-los. Enfim… O mais perverso disso tudo é que o próprio Tribunal Constitucional mandou-os mudar o programa várias vezes.

Poderia explicar melhor?

A minha participação e a da Carmo Afonso não foram levadas à consideração do Tribunal pela PGR, que tinha o dever de o fazer, porque o princípio da legalidade obrigaria a isso. Mas por conta própria, o Tribunal Constitucional decidiu encontrar e informar que o programa do Chega tinha vários problemas, mandando-os refazê-lo. E no fundo eles estavam, sucessivamente, a afinar, a melhorar, a edulcorar o programa do partido para torná-lo mais razoável. Isso é de uma promiscuidade total. 

O programa original na base do qual eu fiz a queixa, já não é o programa de hoje. Eles já mudaram várias vezes, correspondendo às posições do Tribunal Constitucional que esteve no fundo a encaminhar tais observações para eles irem corrigindo as posições. Em relação ao programa original, na base do qual eles foram legalizados e do qual eu apresentei queixa, os poderes públicos em Portugal não atuaram. Em particular a PGR, que é de responsabilidade da senhora procuradora-geral da República. 

Você chegou a apresentar essas questões ao Parlamento Europeu?

Não vale a pena. Isso é uma questão interna, nacional. Eu faço muitas outras participações sobre outras coisas, mas isso é uma questão nacional. É uma questão da Justiça portuguesa. Nem a Comissão Europeia, nem o Tribunal Europeu, podem fazer alguma coisa. É Portugal, são as autoridades portuguesas, a PGR. 

Acho que outros poderes públicos, designadamente o presidente da República e o primeiro-ministro [António Costa], deviam ter agido também. Porque é evidente que era completamente diferente a queixa de uma cidadã, eu ou a Carmo Afonso, do presidente da República ou do primeiro-ministro. Isso eles não quiseram fazer. Mas eu fiz. Eu arrostei com as consequências disto. E arrosto sem problemas. 

Sei que me exponho a muita coisa, mas fiz por dever de cidadania. E continuo a achar inacreditável que a Procuradora-Geral da República até hoje não tenha tomado posição. E mais, tem deixado a situação política agravar-se, deteriorar-se e mudar para não ter que agir. É uma falha inqualificável ao dever e às obrigações de quem exerce este cargo e de quem deve ser guiada, entre outras coisas, pelo princípio da legalidade e muitos outros. 

Uma falha do Poder Judiciário?

É claro que, e eu não tenho dúvida, que a questão é política, não é só jurídica. Mas também há uma base jurídica e é por isso que temos leis que impedem a constituição de partidos racistas e fascistas. Se são as próprias autoridades que estão a descuidar dessas leis, se os que mais deviam fazer cumprir são os que mais negligenciam. Estamos mal, muito mal.

Acredita que o Chega duplique o número de deputados e alcance o governo?

Eu não acredito que eles vão duplicar o número de cadeiras. 

Obviamente que eles têm muito mais força política agora. Hoje, o Chega tem e trabalha com um grupo parlamentar composto por doze deputados e sei que vai aumentar. Até porque há muito ressentimento e há muita gente que vota movida por isso, além da existência de uma máquina poderosa com algoritmos e etc. a direcionar propaganda mentirosa e desinformação às pessoas. Mas, estou convencida que não vai crescer tanto como eles apregoam. 

E a possibilidade de uma coligação entre a AD e o Chega, acha que pode acontecer? 

Acho que sim. Não há dúvida nenhuma. A direita está dividida. Mesmo segundo as indicações e as sondagens, a própria base da direita e o apoio à direita estão divididos. Mas, o Chega vem do PSD e do CDS. Eles não nasceram do ar, já estavam por lá calados e disfarçados. Ventura dá corpo a essa gente, pois sai do PSD, traz muita gente de lá, do CDS e também dos partidos que estão ainda mais à direita e que não estavam nas estruturas, congregando ainda forças ligadas aos grupos religiosos brasileiros e também da Opus Dei (que de resto tem suas querelas lá dentro) para transformar-se naquilo que são hoje. 

As bases do PSD demonstram que não querem aliança com o Chega, pois muita gente percebe que isso é absolutamente contaminante e descredibiliza as credenciais democráticas do partido, sendo um ato impossível e grave do ponto de vista europeu. Mas também há uma outra parte que não se importa. 

E mesmo ao nível de direção do PSD, nós sabemos que há gente que claramente defende que, se for necessária uma aliança com o Chega para fazer governo, eles farão. E tem pessoas que já disseram isso: Passos Coelho, Miguel Alves, Pinto Luz… 

Não é o caso de Luís Montenegro (atual líder do partido) que disse que “não é não” e, portanto, terá que o fazer, mas a questão é esta: se no dia 11 de março, mesmo que a AD não seja a mais votada, se eles puderem fazer um governo com uma maioria à direita, com os votos do Chega e da Iniciativa Liberal, eles farão. 

Luís Montenegro sai e entra outro líder do PSD (um dos nomes que eu te disse) e fazem essa aliança. Montenegro sairá, não incumprirá a promessa, mas outros farão. A prova de que eles já podem e vão fazer isso é que em 2020 fizeram nos Açores. 

Eu ia colocar justamente essa questão dos Açores à senhora.

O que aconteceu em 2020 tem grande responsabilidade do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que nunca deveria ter deixado que o PSD se coligasse com o Chega nos Açores. Porque, naquela altura, o Chega era mais inaceitável com aquele programa anterior do que o de agora. E nunca esse precedente teria sido criado por lá sem o "ok" do presidente da República. 

O ministro da República nos Açores faz o que o presidente da República lhe manda fazer e, portanto, não tem autonomia nenhuma. Se houvesse a coligação nos Açores, que é um precedente grave e que mostra que essa coligação pode voltar a existir no dia 11 de março, é porque o presidente da República deu luz verde a ela, deixou que ela se fizesse. 

Inclusive, creio que o Marcelo caiu durante muitas vezes na campanha eleitoral exatamente por isso. Não tenho dúvida nenhuma que se existir uma possibilidade de haver uma maioria de direita, ainda que o PSD não seja mais votado, mas se com os outros ele puder fazer maioria, eles vão fazer. Montenegro se afasta e eles vão encontrar outro líder do PSD disponível a fazer.

Por isso, é importante que os portugueses e toda a gente, incluindo os portugueses de origem brasileira que cá vivem e que votam, saibam que o que está em causa é, de facto, a possibilidade deles fazerem uma coligação com a extrema-direita para estarem no poder. 

E uma nova "geringonça" à esquerda, acredita ser viável?

É possível também a geringonça à esquerda. É previsível, penso eu, e desejável. Penso que é o desejável. Ninguém cogita que o povo português vai voltar a querer uma maioria absoluta visto que o último governo (PS) criou tanta desilusão. Mas a grande questão é essa: ou vamos ter uma maioria de esquerda ou de direita. E se houver uma maioria de direita não há duvida nenhuma que eles vão coligar com o Chega e serão influenciados pela agenda xenófoba e racista daquele partido. 

Maioria de esquerda sim, pode haver, deve haver. E mais, acho que os portugueses têm uma boa memória da chamada "geringonça". Acabou por ser um governo muito mais consensualizado. E com Pedro Nuno Santos essa "geringonça" pode funcionar muito melhor, pois ele realmente foi o pivô da primeira. 

Era ele quem negociava o tempo inteiro com o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda, e esses debates atuais têm demonstrado que sim, há entendimento à esquerda. Que há convergência à esquerda. Há diferenças, mas podem dialogar, consensualizar e ter soluções que dêem estabilidade e rumo de crescimento ao país. Mudanças e reformas necessárias. A maioria de esquerda é possível e é desejável na minha opinião. 

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