De saída nesta segunda (25) da presidência da Assembleia da República, posto número dois na hierarquia do Estado português, Augusto Santos Silva acredita que o ex-ministro António Costa terá sido um dos últimos políticos a se demitirem do cargo ao serem tornadas públicas suspeitas de crimes.
Na sexta (22), o ainda presidente da Assembleia conversou com exclusividade com a BRASIL JÁ sobre o resultado das eleições legislativas, o crescimento do partido de extrema direita Chega, a existência do que classificou como lawfare em Portugal e a demissão de António Costa do cargo de primeiro-ministro.
Perguntei a Santos Silva se ele não considerava que Costa havia se precipitado ao deixar posto, há mais de quatro meses. Ele respondeu que "não", e que, por outro lado, Costa deve ter sido um dos últimos políticos a agir dessa maneira com base em denúncias, antes de ser formalmente acusado de algum crime.
"Eu creio que o António Costa terá sido dos últimos políticos que se demitiram apenas porque foi tornado público que estavam suspeitos de alguma coisa", afirmou.
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Em 7 de novembro do ano passado, o ex primeiro-ministro se demitiu após ter sido noticiado que o Ministério Público o havia incluído numa investigação por supostos crimes de prevaricação e corrupção ligados a contratos do setor de lítio e hidrogênio verde.
Ao anunciar que deixaria o cargo, Costa disse entender que "a dignidade das funções de primeiro-ministro não é compatível com nenhuma suspeita", e, por isso apresentava a sua demissão. A declaração ocorreu após uma reunião entre Costa e o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
À BRASIL JÁ, Santos Silva afirmou que o autoafastamento faz (ou fazia) parte de uma tradição portuguesa.
Isto é, políticos apontados como suspeitos de crime saíam de cena, ainda que ocupassem altos cargos da adminstração pública. Uma tradição que o ainda presidente da Assembleia disse ter se consolidado nos governos do Partido Socialista, do qual faz parte.
"Bastava o Ministério Público formular a acusação para se entender que ninguém podia estar em condições de continuar a exercer um cargo público. Depois passou a considerar-se que nem era preciso formular a acusação. Se o Ministério Público considerasse que alguém era suspeito, esse alguém tinha que se afastar da vida pública", disse.
Santos Silva narrou que, ano após ano, políticos se demitiram por terem sido apontados como suspeitos pelo Ministério Público. Entretanto, acrescentou, finalizada a investigação muitos não eram sequer acusados, ou se iam a julgamento acabavam absolvidos.
"Acho que o primeiro-ministro fez bem em se demitir porque a acusação é muito grave. Vir o Ministério Público dizer que corre um inquérito-crime no Supremo [Tribunal de Justiça] contra o primeiro-ministro por suspeita de crime é uma acusação muito grave", afirmou.
No entanto, o presidente da Assembleia especula sobre se houve, aí sim, precipitação não de Costa, mas do Ministério Público; ou se o órgão passou a ter "preconceito contra a atividade política" porque, segundo ele, "não tinham provas que sustentassem a acusação".
"O fato é que cinco meses depois de ter sido anunciado que corria um inquérito-crime, uma investigação, nada se sabe dessa investigação. Entretanto, caiu um governo, foi dissolvido um Congresso, foram realizadas as eleições, mudou a maioria política e há um conjunto de consequências que existem justamente porque se iniciou uma investigação jurídica", afirmou Santos Silva.
Lawfare e o último reduto de pureza democrática
Termo importado do inglês, lawfare — ou guerra jurídica— segundo o dicionário de Oxford consiste em "ações judiciais empreendidas como parte de uma campanha contra um país ou grupo". Significa, em outras palavras, a instrumentalização da justiça para tirar de cena concorrentes no âmbito político.
No Brasil, o uso da expressão foi colado à Lava Jato e, mais comumente, à prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em 2017, Lula foi condenado pelo então juiz federal Sergio Moro —condenação depois anulada pelo Supremo Tribunal Federal— e o petista acabou impedido de concorrer às eleições de 2018. Jair Bolsonaro foi eleito e Moro deixou a carreira como magistrado para ser ministro do ex-presidente Bolsonaro.
Para Santos Silva, o lawfare, que ele argumenta não ser um fenômeno estranho no Brasil —a exemplo do contato acima—, tem ganhado capilaridade em outros países da Europa para além de Portugal, como Espanha e França.
"Nós temos casos que levam um número crescente de pessoas a considerar que o lawfare da perseguição judicial por motivos politicos é tambem um fato da nossa realidade. Infelizmente, mas um fato dessa realidade", disse o presidente da Assembleia.
Dessa conclusão Santos Silva abre um novo ponto de tensão ao tratar da justiça, afirmando que há um problema grave que diz ser "a disseminação de um certo preconeito contra a atividade política, como se a atividade politica por natureza fosse sempre suspeita de ser uma atividade criminosa".
"Ao mesmo tempo, temos um sentimento em muitos magistrados de que eles são uma espécie de último reduto da pureza da demoracia, e que estão investidos do papel de anjos vingadores da corrupção política. Eu digo, com toda a franqueza, que essa combinação tem efeitos absolutamente devastadores", afirmou.
A partir de terça (26), Santos Silva volta a dar aulas como professor universitário. A saída dele da presidência da Assembleia da República também se dá pela não reeleição dele como deputado pelo Partido Socialista.
Santos Silva reconheceu ter sido vencido ao saber dos resultados do círculo exterior de eleitores. No lugar dele foi eleito um deputado do Chega, o que para o ainda presidente da Assembleia foi entendido como uma derrota "política e pessoal".