A população indígena no Brasil cresceu de novecentos mil, em 2010, para 1,7 milhão, em 2023. Os números refletiram em maior visibilidade e representatividade em diversas áreas, incluindo a política, onde candidaturas indígenas aumentaram significativamente.
O resultado foi um recorde de eleitos em 2024, com nove prefeitos e 241 vereadores, impulsionado por políticas afirmativas como acesso proporcional ao Fundo Partidário e ao tempo de propaganda eleitoral.
Uma pontas de lança da luta pelos direitos indígenas se chama Sonia Bone de Sousa Silva Santos, indígena do povo Guajajara-Tentehar. É conhecida como Sonia Guajajara, uma das cem pessoas mais influentes de 2022, segundo a revista Time.
Em 2023, se tornou a primeira mulher indígena em um cargo do primeiro escalão do governo brasileiro. Guajajara é a titular do Ministério do Povos Indígenas.
Em entrevista à BRASIL JÁ, disse que o aumento da representatividade indígena é fundamental para a democracia reflita a diversidade cultural e étnica do país. Para ela, a maior presença de indígenas em cargos públicos é fruto das políticas públicas que garantem a inclusão desses cidadãos à sociedade brasileira.
“O impacto positivo no chão dos territórios encontra maior reverberação. Não se pode excluir a presença indígenas da função pública se o Estado deseja verdadeiramente reparar historicamente o processo de marginalização das populações indígenas", disse
O que significa ter a senhora em um ministério do governo brasileiro?
Tanto para os indígenas quanto para a sociedade, a minha presença como a primeira ministra de Estado dos Povos Indígenas representa um marco e ao mesmo tempo uma ruptura.
O marco se configura no fato de que sou a primeira mulher indígena a ocupar o cargo dentro do Poder Executivo. Isto significa que há incidência direta de uma indígena em uma das instâncias de elaboração e articulação de políticas públicas em defesa da garantia de direitos indígenas, atuando na conformidade e reforçando a garantia do bem viver, da multiplicidade populacional, [na manutenção] das diferentes cosmovisões e modos de vida dos parentes e parentas que habitam o território nacional.
Neste aspecto também se materializa a ruptura com um Estado que priorizou políticas e posturas de tutela e não de escuta livre, prévia e informada, em relação aos povos indígenas, que são afetados diretamente por ações e medidas de governos. Assim sendo, a partir do marco e da ruptura é que mudanças são necessárias e possíveis de se concretizarem.
Eu venho do movimento indígena, e a mensagem que fica é que, da base, surgem lideranças aptas a lutarem por reparação histórica. Minha presença tem o caráter simbólico de reconhecimento do Estado brasileiro de que a violação de direitos indígenas precisa de um basta e que os próprios indígenas estão habilitados para designar as maneiras como isso vai acontecer, além de inúmeras propostas e direcionamentos para a saúde, educação, preservação e conservação do meio ambiente.
Qual foi o maior desafio enfrentado pela senhora ao longo da sua trajetória política?
Ao longo da minha vida, fui movida a enfrentar e superar desafios. Começando por ser filha de pais analfabetos da educação escolar, lavradores que sustentaram oito filhos comendo o que plantavam; trabalhar como babá e doméstica aos 12 anos de idade para ter um lugar onde ficar e poder estudar o ensino fundamental; ser interna num internato aos 15 anos para fazer o ensino médio, de onde tenho orgulho de ser egressa, a Fundação Caio Martins em Minas Gerais.
Todos esses foram desafios enfrentados e superados com coragem e determinação para ajudar meus pais e meu povo, e, depois, esse sonho se transformou num sonho coletivo, o de luta pelos povos indígenas do Brasil e por um mundo melhor para todos.
A senhora é ministra, mas é bom lembrar que a senhora é deputada. Foi eleita.
Ser deputada federal e ministra de Estado não torna esse desafio menor. Ao contrário: torna maior a responsabilidade de enfrentar o racismo impregnado na sociedade, o preconceito, a discriminação.
Como a sua atuação no ministério ajuda a fortalecer a luta pela preservação da cultura, da língua e dos territórios indígenas?
A instituição do Ministério dos Povos Indígenas na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi acompanhada da formação de uma infraestrutura organizacional com subdivisões que se ocupam de temas prioritários para os povos indígenas.
Além da garantia de direitos territoriais, por meio da demarcação de terras, por exemplo, o ministério dispõe de braços para atuar diretamente nos territórios e nas comunidades indígenas com o objetivo de consolidar o acesso à saúde, à educação e à segurança, que são fatores essenciais para que as culturas e costumes indígenas se mantenham.
Pode nos dar exemplos?
Os indígenas possuem conjuntos de saberes tradicionais e ensinamentos acumulados transmitidos de geração para geração, mas, sem o devido monitoramento, investimento e fiscalização, direitos básicos deixam de ser cumpridos. Exemplo: o abandono e descaso em relação às populações indígenas da gestão passada. Agora, o Executivo afere as necessidades dos indígenas do país e, por meio de programas articulados e financiados em conjunto com outros ministérios, atacam problemas estruturais severos.
Por exemplo, há o Departamento de Línguas e Memórias Indígenas para zelar pelos 274 idiomas indígenas que existem no país. Além de editais de fomento voltados ao esporte e iniciativas culturais, esse órgão vem conduzindo processos para instituir quinze centros de estudo e uma Universidade Indígena para a preservação das línguas.
Além da manutenção, também funciona como construção de memória.
Sim, esse departamento está construindo a proposta de um Museu Virtual para alojar inúmeros documentos de órgãos indigenistas do período da ditadura e do acervo do Arquivo Nacional de modo a disponibilizá-los aos indígenas com o intuito de municiar seus estudos e a sua luta por direitos. O projeto vem sendo elaborado em parceria com o Arquivo Nacional do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos.
Quais aspectos da cultura e tradição indígenas ajudam a guiá-la nos momentos mais desafiadores?
Além dos elementos da cosmovisão dos Guajajara, da Terra Indígena de Arariboia, no Maranhão, da qual faço parte, creio que a resiliência que forjou o movimento indígena no Brasil é o principal aspecto da cultura e tradição indígena que me acompanha, me inspira e dá suporte emocional e físico nas ocasiões de desafio.
A capacidade de resistir e oferecer frente a infestação de problemas que se espalham em nossos territórios indígenas criou uma legião de guerreiros e guerreiras que se valem de um grande espírito de comunidade e conexão com a natureza de nossos habitats para seguir em frente, até a conquista plena de nossos direitos e a garantida de nossa continuidade como parte da expressão da diversidade nacional.
Como a senhora enxerga o aumento da representatividade indígena na política?
Apesar de tardio, o aumento da representatividade indígena na política é mandatório para que, de fato, a democracia possibilite um retrato mais realista da nossa diversidade. Mais indígenas em cargos de tomada de decisão significa maior incidência indígena na feitura de políticas públicas. Portanto, o impacto positivo nos territórios encontra muita reverberação.
As eleições passadas apresentaram um aumento de 14% no número de candidatos indígenas. Em 2020, 236 indígena foram eleitos. Neste ano, 256 indígenas foram escolhidos por voto para ocupar cargos de prefeito e prefeita, vice-prefeito e vice-prefeita e vereador e vereadora. Não há como ignorar a presença de indígenas em cargos públicos se o Estado deseja verdadeiramente reparar historicamente o processo de marginalização e exclusão das populações indígenas.
Algum conselho aos eleitos, especialmente os jovens?
Meu conselho é que estudem e se preparem com as ferramentas à disposição para que tenham capacitação para disputar cargos políticos e, ao conseguirem, retornem às suas comunidades com projetos e ações que colaborem com a dignidade e a conquista de direitos dos povos indígenas.
Na sua opinião, qual é o papel dos movimentos indígenas na construção de políticas públicas mais inclusivas?
O Brasil é um exemplo de organização no tocante ao movimento indígena. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib, serve como guarda-chuva para uma série de outras organizações que atuam em regiões e biomas específicos do Brasil em parceria com entidades indigenistas, associações sem fins lucrativos e parceiros internacionais.
O papel dos movimentos indígenas na construção de políticas públicas se dá pelo contato direto que possuem com os territórios devido a sua capilaridade. Desse modo, têm a habilidade de fazer diagnósticos de problemas e capacidade de mobilização para atrair a atenção do poder público. Os movimentos também integram iniciativas importantes, como o Conselho Nacional de Política Indigenista, comissões e grupos de trabalho para trazer o cotidiano dos territórios aos mecanismos que os compõem.
A maior mobilização do movimento indígena se dá no Acampamento Terra Livre, quando representantes de todo o Brasil se reúnem em Brasília, no mês de abril, para apresentar as demandas e as urgências aos órgãos da administração pública. Muito do que vem sendo formulado e concretizado em termos de políticas públicas é uma consequência desta organização. Isso possibilitou a inserção de indígenas que se preocupam em escutar os problemas de outros indígenas para encontrar soluções.
Como o país pode se tornar mais inclusivo e respeitoso com a diversidade indígena?
A pluralidade e a diversidade indígena precisam ser institucionalizadas em espaços públicos por meio de políticas que assentem as culturas como partes importantes do mosaico multicultural que reflete a realidade do país.
Primeiramente, essa institucionalização é possível pelo reconhecimento de áreas tradicionais dos indígenas por meio da demarcação. Indígenas possuem um entendimento da realidade através do convívio harmônico com o ecossistema que habitam e, a partir dessa relação, se materializa o modo de vida com desdobramentos linguísticos e comportamentais que revelam as singularidades dos 305 povos que vivem no Brasil.
Consequentemente, a demarcação garante condições para que essas características se reproduzam sem interferências do garimpo, da exploração de mão obra indígena, do extrativismo ilegal e do crime organizado. Portanto, para incluir é preciso cessar a negação da possibilidade de existir como os indígenas julgam coerente com seus costumes.
O combate ao preconceito e à violência também precisa ocorrer na formação dos não indígenas. O ensino de culturas indígenas e africanas na rede pública de ensino é fundamental para gerar o entendimento para as novas gerações de que há populações vítimas de processos históricos que buscam contornar a situação complexa que atravessam, e o apoio do Estado e dos brasileiros de forma integral é necessário para promover mudanças reais.
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