Cena de 'Dois Papas', de Fernando Meirelles Crédito: reprodução

Cena de 'Dois Papas', de Fernando Meirelles Crédito: reprodução

A humanidade dos papas

Como dois filmes revelam o caráter humano na infalibilidade da função do papa: dicas para assistir em tempos de despedida de Francisco

23/04/2025 às 12:53 | 3 min de leitura | Cultura, Diversão e Arte

A representação cinematográfica do Vaticano e seus rituais mais secretos vêm em ondas ao longo do tempo, oferecendo ao público um vislumbre privilegiado das complexidades humanas que habitam uma das instituições mais antigas e enigmáticas do mundo.

Não sendo católico, indico, porém, dois filmes para se assistir nestes dias de despedida de Francisco: os recentes "Conclave" (2024) e "Dois Papas" (2019) emergem como obras de particular sutileza desnudando o suposto manto sagrado da infalibilidade, revelando as vulnerabilidades, hesitações e contradições que pulsam sob o peso da mitra papal.

Cena de 'Conclave' Crédito: divulgação

"Conclave", sob a direção precisa de Edward Berger e inspirado no romance homônimo de Robert Harris, conduz-nos pelos corredores sombrios e salas ornamentadas do Vaticano durante o processo de eleição do novo pontífice.

O protagonista, cardeal Lawrence, interpretado com magnética contenção por Ralph Fiennes, torna-se nosso guia neste labirinto de intrigas eclesiásticas.

Uma sequência particularmente reveladora mostra o ritual da fumaça: os cardeais depositam seus votos enquanto o silêncio eloquente da Capela Sistina é pontuado apenas pelo ruído dos papéis e o eco dos passos.

A câmera percorre os rostos tensos dos cardeais, capturando olhares furtivos e gestos quase imperceptíveis que denunciam alianças e rivalidades.

Quando a fumaça negra se eleva, sinalizando a falta de consenso, testemunhamos não apenas um ritual antigo, mas um campo de batalha em que ambições pessoais e visões divergentes sobre o futuro da Igreja Católica se confrontam sob o olhar impassível dos afrescos de Michelangelo.

Em outra cena magistral, Lawrence caminha sozinho pelos jardins vaticanos ao entardecer. A luz do crepusculo banha seu rosto enquanto ele confronta suas próprias dúvidas sobre a legitimidade do processo.

Cena de 'Dois Papas', quando Francisco comemora por sua argentina contra a Alemanha de Bento 16 Crédito: reprodução

Este momento de solidão contemplativa revela a dimensão profundamente humana de um homem dividido entre o dever institucional e suas convicções pessoais – uma metáfora visual para o isolamento inerente às posições de poder eclesiástico.

Por sua vez, "Dois Papas", sob a direção sensível de Fernando Meirelles, transcende o simples retrato biográfico para compor uma sinfonia visual sobre o encontro de duas concepções distintas de fé e liderança.

A sequência inicial contrasta os ambientes que definem cada personagem: Bergoglio em Buenos Aires, entre pessoas simples, celebrando missa em uma pequena igreja de periferia, enquanto Bento 16 aparece isolado nos esplendores arquitetônicos de Castel Gandolfo.

Há uma cena de extraordinária beleza cinematográfica quando os dois homens conversam no interior da réplica da Capela Sistina.

A câmera os enquadra sob o "Juízo Final" de Michelangelo, colocando suas figuras diminutas diante da grandiosidade da arte. O contraste entre a monumentalidade do cenário e a intimidade da conversa sublinha o paradoxo do papado: seres humanos falíveis supostamente investidos de autoridade divina.

Memorável também é o momento em que Bento 16, interpretado notavelmente por Anthony Hopkins, toca piano para um hesitante Bergoglio.

A música de Mozart flui dos dedos do pontífice como uma confissão não verbal de sua humanidade. Neste breve interlúdio, vislumbramos não o papa, mas Joseph Ratzinger – um homem idoso com paixão pela música clássica e um senso de beleza que transcende dogmas.

A sequência em que ambos assistem à final da Copa do Mundo entre Argentina e Alemanha cria um contraponto de leveza quase cômica às discussões teológicas.

A espiritualidade do voto em um novo papa, a tentativa de fazer a vontade de Deus Crédito: divulgação

Ver Bergoglio tentando conter sua euforia enquanto Bento 16 o observa com educada curiosidade oferece um raro momento de candura que ilustra como mesmo figuras de tão elevada posição compartilham prazeres mundanos.

A pizza que dividem depois, acompanhada de Fanta – supostamente o refrigerante favorito de Ratzinger – completa este retrato de humanidade ordinária em circunstâncias extraordinárias.

"Conclave" presenteia o telespectador com uma sequência igualmente reveladora quando o cardeal Bellini, um dos candidatos favoritos, se retira para rezar em sua cela após uma votação inconclusiva.

A câmera o captura em extrema vulnerabilidade, despido de sua batina vermelha, ajoelhado em oração, seu corpo treme sob o peso da possibilidade de ser escolhido, sua ambição e limitações.

Este momento de fragilidade absoluta desmistifica o poder cardinalício, mostrando como o fardo da responsabilidade afeta mesmo os mais preparados.

As duas obras vão além da mera curiosidade sobre os bastidores vaticanos para oferecer reflexões profundas sobre a natureza do poder espiritual em tempos de crise.

Em "Dois Papas", há uma sequência devastadora em flashback em que Bergoglio, interpretado no passado por Juan Minujín, confronta suas ações durante a ditadura argentina.

Seus olhos refletem o tormento de decisões passadas enquanto a câmera nos transporta pelos corredores sombrios da memória e da culpa – uma jornada interior que todos os líderes, mesmo os espirituais, precisam empreender.

"Conclave" e "Dois Papas" são, assim, obras que transcendem o fascínio superficial pelos mistérios do Vaticano. São meditações visuais sobre como homens imperfeitos navegam pelas águas turbulentas da fé institucionalizada, buscando conciliar tradição e renovação, dogma e compaixão.

Através da linguagem artística e poética do cinema, estas narrativas nos convidam a contemplar não apenas o luxo das vestes papais, indo além, nos revelando as cicatrizes humanas que elas ocultam – e nos lembrando que mesmo os representantes de Deus na Terra carregam consigo o inescapável peso da condição humana.

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