Nicolás Satriano

Jornalista e editor da BRASIL JÁ

Nicolás Satriano

A previsão de Glenn Meade

Em livro escrito há três décadas, escritor irlandês anteviu que imigrantes seriam alvos de extremistas na Europa

21/08/2024 às 17:05 | 3 min de leitura
Nicolás Satriano
Nicolás Satriano
nicolas@brasilja.pt

Jornalista e editor da BRASIL JÁ

Há trinta anos, uma obra quase premonitória do escritor irlandês Glenn Meade chegava às livrarias do mundo: a nove - la “Brandenburgo” (Hodder & Stoughton, Londres, 1994). O nome do livro faz referência ao icônico Portão de Brandenburgo, em Berlim, um monumento símbolo das conquistas e desgraças daquela nação. 

Mas a obra, na verdade, é um exercício de ficção que parte da pergunta “e se?”. Dou exemplos: e se o nazismo voltasse a estender a sua sombra sobre a Alemanha? E se os asseclas de Adolf Hitler reeditassem a nefasta ideologia para mirar outros alvos? E, mais importante, quem seriam os alvos? 

A resposta de Meade para a provocação (e peço perdão pela pitada de spoiler): imigrantes. Quando menciono o tom profético da obra de Meade, não é sugerindo que hoje em dia exista materialmente algum plano sórdido de alemães para eliminar estrangeiros. Não. 

O curioso do livro é que, há três décadas, o escritor anteviu que imigrantes passariam à condição de párias na Europa. A publicação de Brandenburgo vem quando a União Europeia dava seus primeiros passos —a comunidade havia nascido um ano antes do lançamento da obra, em 1993. 

Àquela altura, integração era a palavra que ditava a tendência no espaço europeu. De volta a 2024, o avanço da extrema direita e de nacionalismos implosivos querem o contrário: militam pela fragmentação, ou, pelo menos, o isolamento do velho con - tinente dos demais países, especialmente dos mais pobres. 

O conceito de “Europa fortaleza” é difundido diariamente entre os mais radicais sem qualquer receio, como se a vinda de estrangeiros ameaçasse o tão falado bem-estar social europeu. Esqueceu-se, contudo, de frisar aos adeptos do isolacionismo que o tecido social nesta terra só não está mais esgarçado porque há imigrantes que trabalham de forma incansável. 

Ainda assim, a rejeição ao estrangeiro existe e persiste, contaminando a política europeia e, tal qual previu Meade, mirando os imigrantes —fenômeno que em Portugal não é diferente. 

O tema migrações, vira e mexe, ganha destaque nos meios de comunicação portugueses. Enquanto isso, a xenofobia e o racismo dão as caras nas ruas, na Assembleia da República e em outras instituições. O ódio se alastra e as respostas do governo, quando não alinhadas ao tácito pacto de exclusão, são insuficientes. 

Em Portugal, a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, a famigerada Aima, criada em outubro de 2023, ainda não mostrou a que veio. Quero dizer, onde está e em que consiste a integração que leva no nome? 

Substituir a polícia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras foi um avanço, é verdade, mas a transição atabalhoada de SEF para Aima segue travando a vida de milhares de imigrantes que sonham com a regularização. A BRASIL JÁ tem perseguido as razões para a inércia do órgão. 

Mostramos, em março, que num espaço de uma semana a agência por fim oficializou em cargos 23 diretores de departamentos. Batizamos a manobra de tapa-buraco porque, naquele momento, era inconcebível que após cinco meses de funcionamento o órgão continuasse acéfalo. 

Desde então, outras mudanças vieram, como o fim da manifestação de interesse, em 3 de junho último. A extinção expressa do instrumento na Lei de Estrangeiros simplesmente varreu a pos - sibilidade de regularização de incontáveis pessoas que já estão em Portugal. E por quê? 

O governo o fez sob o argumento de ser fiel ao que apresentou no plano eleitoral: ter um país de portas abertas e não escancaradas. Uma retórica pouco crível considerando que a burocracia portuguesa não permite que algo seja tão essencialmente fácil no país. 

Afinal, quantas histórias conhecemos de pessoas que há meses —e até anos— tentam se regularizar? Ainda assim, na base do jeitinho, revelamos na BRASIL JÁ que atletas e treinadores extracomunitários conseguiram uma entrada VIP para a autorização de residência. 

Pressionada pelas federações de esporte e pelo dinheiro do futebol profissional, em 24 julho a administração pública solucionou o processo de contratação de estrangeiros no setor fazendo com que a Aima criasse um puxadinho exclusivo para cuidar desses casos. 

Por escrito, a agência se comprometeu a analisar e decidir sobre os processos de residência em dois dias. A medida soa como deboche para estrangeiros que perdem horas de vida tentando um agendamento na agência, ou que passam meses e anos à espera de respostas que se sabe lá quando virão. 

Seguir de perto o que se vive como imigrante em Portugal é angustiante. E, nesse momento da História, passa a ser mais insuportável pois é nítido que se colocou um xis nas costas dos que migram, como se a eles pudesse ser atribuída qualquer culpa pelas más decisões políticas ou econômicas levadas a cabo na Europa. 

Glenn Meade escrever uma novela enquadrando os imigrantes como alvos numa fictícia reedição do nazismo pode soar absurdo. E é. Mas, ainda assim, também é assustador pensar no quão tênue tem ficado a linha entre ficção e realidade. Boa leitura 

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