Paulo Victor Melo

Jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia. Realiza pesquisa de pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa. Está em Portugal desde 2021

Paulo Victor Melo

Carta para uma menina negra

Tem uma música de um cantor brasileiro, chamado Emicida, em que ele diz que viu Deus, e Deus é uma mulher preta

01/07/2024 às 18:30 | 2 min de leitura
Paulo Victor Melo
Paulo Victor Melo
redacao@brasilja.pt

Jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia. Realiza pesquisa de pós-doutorado na Universidade Nova de Lisboa. Está em Portugal desde 2021

“Eu não estava a conseguir dormir, preocupada com a minha mãe.”

Das frases ditas por você, uma menina negra de 12 anos, esta foi a que mais marcou. Você contou que numa determinada noite, há quatro anos, não conseguiu dormir porque já era madrugada e a sua mãe ainda não havia chegado.

Em geral, menina, são as mães que não dormem até os filhos(as) abrirem a porta de casa. Das festas, dos encontros com amigos ou do trabalho (quando são obrigados a iniciar precocemente a vida laboral). Quando os filhos(as) são negros(as), as preocupações das mães são ainda maiores. 

Não à toa, delegacia, hospital e instituto médico legal são locais em que as mães vão buscar notícias sobre as suas crias, quando estas não dão notícias por horas.

Mas a força destrutiva do racismo tem um grau ainda mais perverso: tira o sono de uma criança, como você, preocupada em saber se a mãe voltaria para casa.

Você disse aquela frase em tribunal. Por ser menor de idade, a juíza explicou que você não era obrigada a fazer juramento sobre a veracidade das suas declarações. Mas lembro bem, menina, do seu enfático “sim!” ao ser perguntada pela juíza se queria responder aos questionamentos.

Durante o depoimento, rodeada de pessoas brancas com uma vestimenta preta que ostenta poder, você olhava para sua mãe. Via sua mãe triste, nós também te víamos triste. Não era para você estar ali. Não era para a sua mãe estar ali.

“Eu não gosto de me lembrar daquelas cenas.” Foi o que você disse à juíza ao ser perguntada o porquê de estar chorando.

Você ouviu a sua mãe ser chamada de macaca.

Você viu a sua mãe chorar, viu a sua mãe gritar, viu a sua mãe ser violentada fisicamente.

Você viu a sua mãe sair algemada, dentro de um carro da polícia.

Você viu a sua mãe chegar em casa, mas com supercílio e boca machucados.

Você viu a sua mãe chegar em casa, mas sem conseguir falar nem andar direito.

Você viu a sua mãe chegar em casa, com a roupa suja de sangue.

Você sabe o que sua mãe enfrentou. Você sabe o que sua família sofreu e ainda sofre.

Agora, quatro anos depois, você ouve aquelas pessoas brancas com uma vestimenta preta que ostenta poder concluírem que a sua mãe cometeu um crime. 

Qual crime? Talvez você se pergunte.

Eu te digo: nenhum! 

Todas as evidências apresentadas em tribunal mostram justamente o contrário: a sua mãe foi vítima e não culpada do que fizeram contra ela —contra você, contra a sua família—  em janeiro de 2020.

Sua mãe não é macaca, sua mãe não é selvagem, sua mãe não é arrogante, sua mãe não é exagerada, como disseram naquele tribunal.

Sua mãe é a que você conhece. A que, como você disse em tribunal: fazia viagens, passeios com a família, que cuidava da casa. A que faz de tudo para que você tenha um futuro bonito.

Sabe do que lembrei, menina? Tem uma música de um cantor brasileiro, chamado Emicida, em que ele diz que viu Deus, e que Deus é uma mulher preta.

Assim como você, menina, eu sou filho de uma mãe negra. E posso te dizer: é isto mesmo que elas são, o nosso Deus.

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