Recentemente, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, abordou um tema considerado tabu —colonialismo e a escravidão— numa reunião com a presença da mídia Internacional. Afirmou: “Portugal assume toda a sua responsabilidade pelos crimes cometidos durante a escravatura e a era colonial.” Ele considerou, ainda, que “tiveram custos que devem ser pagos”. E continuou: “Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos. Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como é que podemos reparar isso”.
É a primeira vez que um estadista português assume de forma tão transparente as mazelas do colonialismo e da escravatura. A resposta foi uma dura contestação. O primeiro-ministro, Luiz Montenegro, responsável pelo governo, afirmou que se “recusava [a] avançar com o processo de programas de ações específicas que tivesse esse propósito”. O partido de extrema direita Chega, por intermédio de seu líder André Ventura, afirmou que o presidente “fez uma traição ao povo português e a sua história”. Além disso, propôs uma ação criminal contra Marcelo na Assembleia da República. Venceu, porém, o bom senso. Os parlamentares consideraram a proposta totalmente equivocada, “insana, ignorante e infantil”. Ao propor o debate, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa abriu a discussão sobre o colonialismo português e suas consequências na história mundial, oferecendo a possibilidade de uma profunda reflexão no campo econômico, social, político, cultural e histórico.
Colonialismo
A primeira fase colonial foi até meados do século 17 sob o controle de Portugal e Espanha. Os europeus foram os primeiros a adotarem esses princípios, com o objetivo de aumentar as fontes de matérias-primas, minerais e agrícolas, em benefício do desenvolvimento econômico de suas metrópoles. Portugal passou a dominar o Oceano Índico e, posteriormente, com a conquista de Macau adentrou nos mares do Sul da China. Em sequência, alcançou a África e as Américas competindo com os espanhóis. Contudo, o colonialismo português é, de todos, o que possuía a mais antiga história e seguiu os passos do capitalismo mercantil, com uma estrutura econômica, política, social e cultural de domínio do povo colonizado.
Esse sistema foi consequência da revolução comercial ocorrida na Europa entre os séculos 15 e 16, cujo ápice ocorreu na segunda metade do século 19. Na época, seus líderes foram Portugal, Espanha, Holanda, Inglaterra, França. Posteriormente, Bélgica e a Alemanha. No início, estes países retiravam especiarias, metais preciosos, açúcar e diversas matérias-primas das colônias e traziam para a Europa para obterem o desenvolvimento econômico. Em síntese, a colonização era um domínio absoluto das áreas habitadas por povos diferentes e que desembocou no Imperialismo.
Escravidão, colonialismo e Portugal
Segundo o antropólogo Claude Meillasoux, “a escravidão é um modo de exploração que toma forma quando uma classe distinta de indivíduos se renova continuamente a partir da exploração de outra classe”. É uma condição em que uma pessoa, o escravizado, é propriedade de outra, o denominador senhor, dono do seu corpo e do produto do seu labor. Considerado uma mercadoria para compra e venda, doação, aluguel, herança, hipoteca e até sequestro judicial. A escravidão sempre fortaleceu as elites dominantes. Transformou-se num objeto mercantil.
Na Antiguidade, as tribos europeias escravizavam os prisioneiros de guerra. A escravidão ocorreu na Babilônia, Egito, Grécia, Fenícia, Roma, Índia, China, Japão, Camboja e com os hebreus. Foram escravizados diversos povos: eslavos, búlgaros, judeus, gregos, muçulmanos, africanos etc. Por sinal, a palavra escravo deriva do termo slave em inglês. Mas a escravidão como pilar impulsionador de um sistema colonialista é característica do capitalismo mercantil surgido a partir do século 15 e teve Portugal como pioneiro.
A revolução de 1383 a 1385 contra a Espanha ajudou nesse processo, pois gerou o afastamento da velha nobreza (aliada da Espanha) e a substituição por elementos enobrecidos da burguesia, como os burgueses rurais e mercantis, que se tornaram mais influentes ao se aliarem à Coroa. Já que não podiam se expandir em direção ao interior do continente europeu, dedicaram-se à expansão oceânica para África e Ásia.
Não obstante a força da burguesia mercantil portuguesa, não havia uma sociedade urbana e estruturalmente capitalista em Portugal. Segundo Magalhães Coutinho, a população urbana era de 12,7%. ("Recenseamento”, de 1527-1531).
Mesmo com a grande expansão comercial, Portugal não conseguiu se beneficiar economicamente com a implantação de indústrias, como ocorreu com a Inglaterra. Houve uma tentativa com o conde de Ericeira (final do século 17). Outra tentativa ocorreu com o marquês de Pombal na segunda metade do século 18, com o fomento estatal-mercantilista da indústria portuguesa, mas tardiamente e com poucos resultados substanciais.
Nesse período, predominou o triunfo dos interesses agrários opostos à industrialização e a trava do setor secundário português por conta do Tratado de Methuen (1703) com a Inglaterra. Como consequência, Portugal acabou se transformando em especialista no “comércio de intermediação internacional”, no carring trade, descrito por Adam Smith, que retirava o apoio do trabalho produtivo no país e o desviava para o estímulo à produção industrial de outros países.
A partir do século 15 se iniciou o escravismo negro com a vanguarda portuguesa no comércio de escravizados africanos para Espanha e Itália, onde eram explorados na agricultura das Ilhas Mediterrâneas. Concomitantemente, os negros foram trazidos para o serviço doméstico em Portugal. Um décimo da população de Lisboa era composto por pessoas negras. A perda populacional causada pela migração ultramar foi compensada por negros e asiáticos.
A partir de 1515, cresceu a exploração mercantil do tráfico de escravizados. A Coroa portuguesa participava dos lucros do tráfico de pessoas da África assim como a Ordem de Cristo. No início, os portugueses assaltavam as aldeias e faziam as capturas. Depois transferiram para os africanos, pagos por artigos europeus e armas de fogo, a submissão de seus vizinhos. As tribos e os sólidos estados litorâneos, como Daomé, no século 17, transformaram a “caça do homem” em prioridade em troca de panos, sal, ferragens, cavalos, trigo, armas e munições.
Portugal desejava ouro, pimenta, canela, gengibre e tecidos (seda e índigo). Os lucros começaram a chegar à Lisboa com os escravizados, além da pimenta, do marfim e da goma arábica. No século 15, mais de 100 mil escravizados negros estavam na Península Ibérica. Os europeus achavam “natural” a escravidão em suas colônias. Na Inglaterra, até o pensador católico Thomas Morus a admitia.
O mesmo procedimento escravista passou a ser aplicado ao Brasil que no século 18 alcançou a marca de 6,2 milhões de escravizados. Todos os portos portugueses eram cobiçados por holandeses, ingleses e franceses.
A partir do século 16, o monopólio português foi sendo perdido com a concorrência dos Países Baixos. Os holandeses usaram o forte Nassau, em Gana, a partir de 1611. Na década seguinte, eles criaram a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais e exploraram a costa ocidental africana durante 24 anos. Na ocasião, Portugal, sob controle espanhol, vendia os direitos para o tráfico ocorrer por tonelagem (!) de negros para as colônias da América. A Companhia Portuguesa da Guiné se obrigava a fornecer 10 mil toneladas de negros por ano para as colônias.
Em 1648, após a Restauração Portuguesa, os holandeses perderam Angola, São Tomé e Pernambuco no Brasil (dominado de 1630 a 1654).
A coroa inglesa, também, deu privilégios para os traficantes. Os ingleses, com a Royal African Company, dominaram a Costa da Guiné, e 70% de Gana a Daomé, durante o século 18, e levaram escravizados para as Antilhas e a América do Norte.
Competindo com a Inglaterra, os franceses dominaram a Ilha Goreia (Costa do Marfim) e Daomé.
Neste corrida, os países ibéricos, que primeiro exploraram a África e as Américas, foram suplantados no comércio por falta de navios. Não conseguiram desenvolver indústrias, principalmente a naval. Na realidade, “tiraram castanhas do fogo para os outros”, segundo um ditado da época.
Escreveu o historiador Joseph Ki-Zerbo: “O preto era uma moeda corrente, um valor à ordem que podia ser trocado, uma letra com que se pagava uma dívida. Numa palavra, a carne humana é o padrão dos valores. Como se vê, o ‘ouro negro’ foi extraído, separado, vendido, transportado e entregue como qualquer mercadoria. Quantos pretos foram assim vendidos? É difícil estimar a amplidão deste tráfico, porque ele continuou assim durante séculos, a uma cadência acelerada, pois era medonha a mortalidade nas plantações da América.” (in: História da África Negra, v. 1 p. 277).
O tráfico perdurou do século 15 ao século 19. Divergem os números sobre os negros escravizados. Para W. E. Dubois, foram vendidos 15 milhões de pessoas pretas. Para cada escravo que chegava às Américas morriam quatro durante a viagem. Portanto, 60 milhões foram traficados. O padre Monens calculou que aproximadamente 10 milhões de negros foram mortos durante o tráfico (Ducasei). Sintetizando, houve milhões de escravizados dos séculos 15 até o 19.
Entre 1450 e 1869, cerca de 12 milhões de negros foram levados pelos portugueses para as Américas e as ilhas do Atlântico.
O presidente Marcelo afirmou: “É preciso saber o patrimônio trazido, mas que a reparação não tem de passar por ‘pagar uma indenização’”. Portanto, podemos concluir que as reparações pelos crimes do passado podem apresentar diversas formas, inclusive porque a exploração das colônias entre 1500 e 1800 representava quase 20% dos rendimentos de Portugal.
A jurista e ex-ministra da Justiça de Portugal Francisca Van Dunem, uma mulher preta, diante da polêmica, afirmou ao Diário de Notícias: “Não há melhor reparação do que o avanço em termos de respeito para os direitos fundamentais das comunidades oriundas dos países onde se foram praticadas essas ações [o tráfico de escravizados]. Acho que, de fato, estas comunidades não têm tido o tratamento que merecem. Persiste em termos culturais na sociedade portuguesa um enorme preconceito que atinge as populações afrodescendentes, desvalorizando-as. Há atos de barbárie que foram praticados e que não têm reparação do ponto de vista monetário”.
Com as suas afirmações oportunas, o presidente Marcelo merece todo o respeito porque abordou um assunto tabu. Afirmar “que nada temos com o passado é tão absurdo como afirmar que somos os herdeiros responsáveis por todo o passado”, afirmou o filósofo José Gil. Portugal não é o primeiro na reflexão sobre as colônias e a escravidão. França, Alemanha, Países Baixos e até Suíça passaram das ideias a ações, como devolver artefatos históricos e culturais, além de financiar o levantamento de objetos de suas ex-colônias em seus museus. Em vez de criar polêmica, a política portuguesa deveria seguir pelo mesmo caminho.