Editora da Estilo BRASIL JÁ, jornalista especializada em gastronomia
Que o Brasil é um caldeirão cultural todos sabem. Não à toa, a gastronomia brasileira é marcada por influências diretas da miscigenação, tornando os sabores e os saberes um tesouro sensorial, com raízes étnicas das mais variadas.
Para além de ser servido à mesa nos quatro cantos do país, o tesouro gastronômico do Brasil rompe fronteiras, seja pela disseminação de pratos emblemáticos, como a feijoada e a moqueca, seja pela arte dos chefs que fazem sucesso no exterior, com a apresentação de ingredientes, pratos e experiências que vão além das receitas mundialmente conhecidas.
Muitos destes nomes têm seus restaurantes referenciados pelo Michelin, o guia francês que condecora os melhores da alta gastronomia com uma, duas ou três estrelas, a depender da qualidade da comida e dos serviços oferecidos.
O guia também tem uma lista de restaurantes recomendados e a categoria Bib Gourmand, com restaurantes com ótimo custo-benefício. Nesta reportagem, você, leitor, conhece alguns destes brasileiros que estão estrelando pelo mundo
Raphael Rego, Oka e Fogo (Paris)
O carioca radicado em Paris, Raphael Rego, comanda o Oka, restaurante gastronômico com uma estrela Michelin, e o Fogo, com uma pegada mais despretensiosa, com pinta de bistrô. O chef promove o diálogo afinado entre Brasil e França, por meio de uma estreita relação com os produtores franceses e experimentações com ingredientes brasileiros.
“Desde o começo, em 2014, minha ideia era mostrar que a cozinha brasileira vai além da feijoada, da moqueca e do churrasco. O Brasil é uma biblioteca de sabores e queria mostrar isso aos franceses”, disse durante uma visita da BRASIL JÁ. Em uma sobremesa com abóbora, por exemplo, ele conta que as pessoas se surpreendiam porque não sabiam que havia o ingrediente no Brasil.
No começo, porém, apresentar a ideia não foi fácil. Não foram poucos os dias de mesas vazias. O jogo virou em 2017, quando Raphael começou um trabalho de cultivo —ou tentativa de cultivo— de produtos brasileiros no solo francês.
“Nossa cozinha franco-brasileira ficou mais intensa, com o diálogo pelas mãos e pela terra”, disse.
Da união, começaram a surgir produtos como inhame, mandioquinha, jambu, pimenta-biquinho e pimenta-de-cheiro com o toque do terroir francês. O reconhecimento veio na sequência: com apenas seis meses de funcionamento da nova versão do Oka, a casa recebeu a primeira estrela Michelin e uma injeção de ânimo, mostrando que o trabalho segue no caminho certo.
“Quando faço um ravioli de rabada, ou uma terrine de feijoada ou uma mil-folhas de mandioquinha e maçã, tenho força na voz. Trabalhamos para entregar tudo isso sem perder a brasilidade no prato e no acolhimento.”
Alessandra Montagne, Nosso e Projeto Louvre (Paris, França)
Falar em Paris, a Meca da gastronomia, é impossível não falar da chef Alessandra Montagne, que ganhou o noticiário mundial ao ser anunciada como comandante da cozinha em um dos restaurantes do Museu do Louvre. O projeto, que deve ser inaugurado até o final do ano, segue a todo vapor.
“O espaço está em obras e vamos começar o treinamento com a equipe”, disse à BRASIL JÁ. Enquanto isso, a chef segue com o seu Nosso, no 13º Arrondissement, mesmo bairro onde funcionou o seu primeiro restaurante, o Tempero. Foi graças ao trabalho bem executado no espaço que ela conheceu o aclamado Alain Ducasse, que virou admirador da comida da brasileira e uma espécie de padrinho.
Foi o mestre, por sinal, que a indicou para o novo desafio no emblemático Louvre. Nascida no Vidigal, no Rio de Janeiro, e criada pelos avós na pequena Poté, no interior de Minas Gerais, Alessandra teve uma infância difícil e encontrou o seu caminho em Paris, levando na bagagem toda a herança culinária do tempo da roça.
Cursou gastronomia incentivada pelos amigos, foi a melhor da turma e nunca mais parou.
“Dou muito valor e reconheço quando as coisas boas aparecem na minha frente. Agradeço muito, às vezes choro de gratidão, às vezes me belisco. Não imaginei que algo assim pudesse acontecer com uma mulher negra e estrangeira, vinda do Brasil”, emociona-se.
Sempre grata, a carioca ajuda outras chefs e outros chefs sempre que pode. “Faz parte do meu agradecimento pelas coisas que chegam até mim”.
A comida que Alessandra entrega no Nosso e, provavelmente, terá reflexos no Louvre, é pautada na dobradinha sabor e sustentabilidade. Por isso, a maioria dos pratos é produzida com ingredientes locais e da época do ano.
Os 5% de origem brasileira vêm de uma pequena produtora. “Faço com muito carinho e bem-feitinho e vou seguir assim”, afirma, acrescentando que, mais do que nunca, é hora de mostrar que o Brasil não é só futebol e Carnaval, provando que o país tem excelentes chefs e uma cultura gastronômica destacada:
“Quero conseguir levantar bandeira da nossa riqueza gastronômica aqui na Europa e mostrar que a gente pode fazer boa gas - tronomia. Quero valorizar minha cultura e meu país”.
Marcelo Ballardin, Oak (Gent, Bélgica)
Foi em Gent, na Bélgica, que Marcelo Ballardin abriu o seu Oak, cuja maior refe - rência à brasilidade é a cordialidade. “É um restaurante gastronômico, mas descontraído, mais informal”, garante.
Além da comida de primeira linha servida na casa, volta e meia ele participa de programas de televisão. O resultado? É parado por muita gente para tirar fotos nas ruas da cidade.
Para o chef, nascido em Manaus, capital do Amazonas, fazer sucesso em um país tão distante do Brasil como a Bélgica, lhe dá uma mistura de orgulho e gratidão.
“Significa que o meu trabalho está sendo reconhecido além das fronteiras do meu país e isso é incrivelmente gratificante. Além disso, representa uma oportunidade de compartilhar a beleza e a cultura da minha região com pessoas de todo o mundo”, afirmou o chef, que, lá e cá, dá um toque amazônico em seus premiados preparos.
Rafael Cagalli, Da Terra (Londres, Reino Unido)
Empreender no exterior não é fácil. O que dizer, então, conquistar duas estrelas Michelin na multicultural Londres? Nos domínios de onde surgiu o The 50 Best Restaurants, Rafael Cagalli, que comanda o Da Terra, faz bonito. Abriu a casa em 2019 e em apenas oito meses ganhou a primeira estrela Michelin.
A segunda veio no guia de 2021 e o reconhecimento do guia é mantido desde então. Da Terra significa do solo e tem a ver com a ideia de raízes, seja por meio da relação com o solo, seja pelo conhecimento adquiridos no convívio com pessoas e culturas.
No restaurante, que fica no coração do Bethnal Green, o menu instiga os locais —e, também, turistas— com pratos com influências italianas, provenientes das raízes familiares do chef, e uma pegada latino-americana, que flerta com ingredientes brasileiros como azeite de dendê e farinha de mandioca.
Fora as referências da cozinha italiana, Rafael diz que, do Brasil, levou a Londres características que o fazem seguir firme.
“Tive simplicidade e coragem para ir atrás, para lutar. O restaurante ainda é novo, tem apenas cinco anos. E ainda temos muito o que conquistar”, disse, acrescentando: “É especial, pois precisamos quebrar al - gumas barreiras. Comecei a carreira cedo e já em Londres. Mas, mesmo assim, se re - conhecido no exterior, sendo brasileiro, é especial”.
Franco Sampogna, Frevo (Nova York, Estados Unidos)
Inicialmente, é preciso explicar que o chef Franco Sampogna, que ao lado do restauranteur português Bernardo Silva comanda o Frevo, em Nova York, não nasceu em Pernambuco, mas, no Espírito Santo. O nome do restaurante, portanto, não tem a ver com a dança típica pernambucana.
“A origem etimológica do frevo vem de fervo forma, como forma de ferver. Então, foi com esse objetivo de fervor que a gente fez um restaurante parecido com Nova York, onde tudo está em movimento, nunca para, está sempre fervendo”, explica o chef.
Aliás, muito da efervescência do restaurante, no coração do Greenwich Village está no diálogo entre comida e arte. “Tínhamos um espaço enorme e o Bernardo sugeriu que transformássemos em galeria de arte.”
No restaurante, o espaço faz as vezes de antessala e a porta do restaurante é um quadro, que se abre para a degustação de uma comida contemporânea, com toques de brasilidade, lá e cá. “No nosso menu nos temos pequenos toque do Brasil, com ingredientes como palmito, castanha de caju e coco. Mas, ao fim, somos um restaurante bem diferente e super global.”
A receita, ao que parece, tem dado certo. O reconhecimento com a conquista da primeira estrela Michelin em uma cena superconcorrida como a da cosmopolita Nova York é uma conquista e tanto.
“Eu fico muito feliz de estar me destacando em uma cidade tão competitiva, sobretudo sendo brasileiro. Só acho que o trabalho precisa ser mais divulgado, pois que a seria legal se mais brasileiros pudessem ter orgulho do trabalho que os chefs realizam no exterior, como acontece em outros países”.
Ivan Brehm, Nouri (Singapura)
O paulista Ivan Brehm nasceu em uma autêntica família brasileira marcada pela miscigenação, com heranças alemã, russa, árabe, espanhola e italiana. Procurar pontos em comum dentro da nossa família era questão de sobrevivência.
“Hoje, eu credito a essa infância rica em diferentes formas de ver o mesmo mundo ao meu super poder. Enxergo isso em todos e em tudo com que me relaciono”, afirmou à BRASIL JÁ.
Não à toa, foi na multicultural Singapura que o chef encontrou o cenário ideal para o seu Nouri, recentemente agraciado com uma estrela Michelin.
Para Ivan, “a cidade é um exemplo vivo e bem dramático do que chamo de “crossroads”, um entreposto comercial e cultural fincado no meio de muitas tradições, ideias e ingredientes.
“De uma forma acho que o Nouri deve muito da sua existência a essa cidade. Trabalhar aqui inspirou muitos momentos de conexão entre meu brasileirismo e as culturas do Sudeste Asiático, Ásia e Arábia”.
Para o chef, ser brasileiro trouxe o ensinamento da busca pela expressão e criatividade como uma forma de reconsiderar a gastronomia, de tratar o significado como ingrediente.
“Às vezes uso a gastronomia brasileira como ponto de partida para no - vos pratos. Mas, para mim, a qualidade principal que oferecemos é essa criatividade irreverente, crítica e protetora da diversidade, essa coisa que amalgama o jazz com samba e choro, a pizza com nutela e banana, que busca felicidade e humani - dade nas coisas da vida”, finaliza.
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