Thais França

Investigadora integrada do Centro de Investigação e Estudo em Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES-Iscte)

Thais França

Lá vem o Brasil descendo a ladeira

De onde vem o estereótipo das mulheres brasileiras em Portugal?

22/05/2024 às 15:56 | 3 min de leitura

E enquanto a mulata em pleno movimento

Com tanta cadência descia a ladeira

A todos mostrava naquele momento

A força que tem a mulher brasileira (Moraes Moreira)

Conta a história que a inspiração do fundamental Morais Moreira para estes versos surgiu em um fim de noite, virando a madruga, em que ele e o indescritível João Gilberto caminhavam nas ruas do Rio de Janeiro. 

Foi quando João avistou uma mulher descendo a ladeira com uma lata d’água na cabeça. O poeta arriscou o verso e Morais respondeu com um samba sem medo.

Esta imagem também pode facilmente ser transplantada para a capital portuguesa, onde, inevitavelmente, você cruzará em algum ponto com uma mulher brasileira descendo a ladeira (sem lata d’água na cabeça). 

Porém, ao contrário da delicadeza que a “cadência” da mulher brasileira no samba moreiriano exalta, em Portugal esta cadência tende a aprisionar as mulheres brasileiras em uma série de estereótipos, que não raramente se desdobram em agressões simbólicas, verbais e físicas.

E a pergunta que sempre fica é por que em Portugal a imagem da mulher brasileira, em geral, é tão negativa? 

Não existe uma única explicação para uma pergunta que remonta a mais de quinhentos anos de relação, dos quais 322 marcados pelo colonialismo e por todas as hierarquias e assimetrias de poder que este modo de organização econômico, cultural, político e social engendrou. 

Mas é para responder perguntas complexas sobre o funcionamento da sociedade que as ciências sociais existem, então segura na minha mão. 

Apesar de ter sido, sobretudo, a partir dos anos 2000 que as brasileiras começaram a ter mais visibilidade em Portugal, por conta do seu crescimento numérico enquanto imigrantes no país, a imagem e os estereótipos sobre estas mulheres remontam ao período colonial.

Mais do que um simples modo de produção, o colonialismo criou hierarquias sociais que legitimavam o povo branco europeu como superiores aos não europeus, fossem lá quem fossem. 

Neste sentido, as mulheres indígenas e africanas escravizadas que viviam nos territórios colonizados foram construídas como corpos exóticos e sexualizados, inferiores às brancas europeias. 

A começar pela carta de Pero Vaz de Caminha, que em inúmeras passagens descreve a nudez das mulheres nativas a partir dos valores europeus de pudor e vergonha, de narrativas que reproduzem a erotização e exotização do corpo dessas mulheres.

Adiante, a mesma narrativa passou aos corpos das africanas escravizadas. As representações coloniais sobre os corpos das mulheres colonizadas tendiam a demarcar a diferença destes e dos corpos europeus brancos, apontando supostos ex- cessos (erotismo e sexualidade) e ausências (disciplina e autocontrole)1, perpetuando uma concepção erótica, promíscua e primitiva acerca deles.

Constrói-se, assim, a imagem do corpo das mulheres brasileiras como um corpo sem lei, naturalmente disponível para o sexo. Um corpo colonial, tal qual o território da colônia, ao dispor do homem branco europeu. 

A intelectual espanhola Verena Stolke fala que enquanto as mulheres europeias eram representadas como santas (mulheres recatadas, mães e do lar), as mulheres das colônias eram pecadoras (sedutoras e prostitutas). 

Mais recentemente, nos anos 1960, com a proximidade do fim do império português, as ideias do lusotropicalismo de Gilberto Freyre3 foram abraçadas pelo governo português em uma tentativa de dar uma nova roupagem à sua narrativa colonial.

Resumidamente, montou-se um quebra-cabeça de argumentos falaciosos para construir Portugal como “o colonizador benevolente”, dotado de uma aptidão natural para se adaptar aos trópicos, uma vez que os colonizadores portugueses, despidos de qualquer preconceito, “misturaram-se” com as mulheres das colônias, dando origem a uma sociedade multirracial harmônica, o Brasil.

Esta ideia pode ser criticada por inúmeras perspectivas, dentre elas o fato de que a “mistura” com as mulheres indígenas e africanas escravizadas foi sobretudo forçada, apoiada na ideia de que os corpos destas mulheres, assim como as terras bra- sileiras, estavam ali para serem invadidos, explorados, estuprados.

O império português caiu oficialmente em 1974 com a Revolução dos Cravos, mas as ideias lusotropicalistas não. De fato, elas ganharam ainda mais força nessa tentativa de Portugal reconstruir sua imagem entre a posição paradoxal de periferia da Europa e ex-potência colonial. E até hoje continuam a ser reproduzidas em livros escolares, discursos públicos e nos media.

Muitas das imagens e dos discursos inspirados nas ideias lusotropicalistas até os dias de hoje remontam aos imaginários coloniais que, como dito anteriormente, construíram as mulheres indígenas e africanas escravizadas do Brasil como corpos eróticos, sexualizados e disponíveis sexualmente. 

Estas representações são uma forma de violência simbólica que tem a capacidade de transformar-se em violência física, psicológica, moral e sexual. 

Há elementos mais atuais que podem e devem ser considerados quando se analisa as dinâmicas sociais que construíram, legitimaram e ainda sustentam a reprodução dos estereótipos das mulheres brasileiras em Portugal.

Por exemplo, o papel da mídia brasileira e da Embratur, sobretudo nos anos 1980, na construção da “mulata brasileira tipo exportação”; o caso das “mães de Bragança”, em 2003; ou, ainda, o aumento do número de ocorrências de tráficos de pessoas para fins de exploração sexual em Portugal.

Contudo, toda história deve ser contada do começo para assegurar uma compreensão não enviesada de suas nuances, e a história do estereótipo sobre as mulheres brasileiras em Portugal começou muitos séculos atrás. 

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