Ovos rotos servidos na Adega Santo Antônio. Crédito: Gisele Rech, BRASIL JÁ

Ovos rotos servidos na Adega Santo Antônio. Crédito: Gisele Rech, BRASIL JÁ

Mesa Compartilhada: Tasca ou boteco? Eis a questão

No quesito comida boa e barata, Portugal faz bonito na cena mundial

06/08/2024 às 18:47 | 4 min de leitura
Gisele Rech
Gisele Rech
redacao@brasilja.pt

Jornalista de gastronomia

Logo após a primeira Gala Michelin realizada exclusivamente em Portugal, em março deste ano, ficou a constatação da excelência portuguesa no guia mais badalado da gastronomia mundial. 

E apesar de Portugal ainda não ter alcançado as almejadas três estrelas —o Brasil também não tem esse feito—, Lisboa é considerada a terceira cidade europeia com mais restaurantes Michelin per capita. 

Mas, aqui entre nós, categorias à parte, no quesito comida boa e barata, Portugal faz bonito na cena mundial. E muito em função das amadas tascas, os restaurantes de valores mais acessíveis e frequentados massivamente pelos locais. 

Grosso modo, e com a corroboração de Maria Alexandre Lousada, em seu artigo Da Taberna ao Restaurante, as tascas —que alguns chamam de baiucas— são a versão portuguesa da taberna, com vinho vendido a copo, petiscos de toda a sorte e pratos do dia com porções generosas e em conta. 

Mas, atenção: em um mundo onde as estratégias de marketing gritam pelos quatro cantos, há muita apropriação indevida do conceito. 

Para reconhecer uma boa tasca, é preciso colocar em ação todos os sentidos, a começar pelo visual. De antemão, a decoração é simples e pontuada pelas indefectíveis toalhas de papel descartáveis, que cobrem a toalha de pano. 

As paredes costumam ser recobertas ora por quadros e souvenirs que remetem as memórias da casa, ora com posteres alusivos a times de futebol. Veio à sua mente a lembrança dos botecos brasileiros? Logo falaremos mais sobre isso. 

Para entrar mais a fundo nesse universo que, para mim e para muitos, simboliza a alma da cozinha portuguesa, troquei uma ideia com o gastrônomo Virgilio Nogueiro  Gomes, autor, entre outros, do Tratado do Petisco e das Grandes Maravilhas a Cozinha Nacional, e frequentador assíduo dessa cena. 

“Há coisas básicas em uma autêntica tasca, a começar pelo pão tradicional português, geralmente comprado de uma padaria nas proximidades. Também não pode faltar o vinho da casa, servido em copo ou em jarras”, ensinou. 

No quesito menu, uma tasca sempre tem uma variação de pratos ao longo da semana, além do menu fixo, sempre com produtos locais, o que permite explorar sabores diferentes a cada dia. 

“Sempre haverá pelo menos uma receita com bacalhau, desfiado ou não”, acrescentou Nogueiro.

Independentemente da oferta da casa, outro requisito é o preço: as tascas costumam oferecer pratos que não ultrapassam os 15 euros para uma porção super bem servida (que eu costumo dividir!). 

Outro diferencial da tasca é um serviço extremamente cordial. Muitas casas são negócios familiares, onde toda a família trabalha junto, o que colabora para o clima afetuoso. Há, ainda, clientela assídua, que costuma ser formada por quem vive ou trabalha perto. 

No meu caso, virei habitué da Tascardoso, no Príncipe Real, ao lado de casa. Fica a dica! O arroz de cabidela, a propósito, é qualquer coisa! À essa altura, você deve ter identificado muitos pontos em comum entre as tascas e botecos brasileiros. 

Tascardoso. Crédito: Gisele Rech, BRASIL JÁ

Apesar dos nossos botequins serem ainda mais afeitos aos “bebes” do que aos “comes”, os petiscos —ou tira-gostos— e pratos-feitos (os famosos PFs) também estão por lá. Nem precisamos falar da cordialidade e da turma que não arreda o pé. 

Por isso, não causou muita surpresa quando fiquei sabendo que a ideia do Comida di Buteco, que há quase 25 anos elege o melhor botequim em cidades de Norte a Sul do Brasil, cruzou o oceano para homenagear o universo das tascas. 

A ideia é a mesma: valorizar os pequenos negócios e fortalecer as tradições. Por lá, fui jurada por alguns anos em Curitiba. Por aqui, tive a chance de ir ao Porto para provar a comida da Adega São Pedro, em Campanhã, que ficou no topo do ranking na primeira edição do concurso Tascando. 

O certame teve a participação de 39 tascas do Porto e de Lisboa, avaliadas não apenas pela qualidade da comida, como também pelo ambiente e o serviço oferecido aos comensais. 

Ao chegar, por volta do horário do almoço, testemunhei a azáfama da dupla dinâmica João Manuel Teixeira Maia Dias e Maria Celeste Pereira da Costa, que comanda a casa e um time de dez funcionários. 

Do lado da frente, na esplanada, como os portugueses chamam o espaço com mesinhas à frente do estabelecimento, a grelha estala com carnes e pescados, como o famoso rodavalho, um dos pratos favoritos do senhor Filipe Martins, que almoça e janta por ali todos os dias. 

“A comida é excelente, bem-feita e com muito sabor. O serviço também é especial. A gente se sente em casa”, garante o aposentado e bom de papo. 

Tive a chance de sentir o mesmo acolhimento, tanto dos proprietários quanto da atendente de mesa Daniela Mendes, que me trouxe uma dose generosa de ovos rotos, o petisco que levou a Adega São Pedro ao primeiro lugar do pódio. 

Adega Santo Antônio. Crédito: Gisele Rech, BRASIL JÁ

Sim, o vencedor foi um prato com sotaque espanhol, que faz muito sucesso entre a clientela. Afinal, a receita é o que o os portugueses chamam de gulosa: leva batatas-fritas (fresquinhas, visivelmente fritas na hora), ovos, presunto defumado (cortado bem fininho) e azeitonas. 

“Diferente de alguns pratos, os ovos rotos são servidos por cá todos os dias. Além disso, os clientes sempre elogiam e dizem que tem um sabor especial, diferente de outros que há por todos os lados”, disse João. 

Aqui entre nós, o destaque da versão da receita talvez seja o carinho com que a comida é feita pela cozinheira Sónia Santos. “O segredo da boa comida de tasca é o tempo de preparação e o carinho e a boa vontade para fazer as coisas com sabor, com gosto”, finalizou o tasqueiro. 

Mais uma vez, qualquer semelhança com nossos amados botecos não é mera coincidência. Aliás, há muitos guias sobre as tascas que valem muito a pena uma olhadela. Deixo aqui três sugestões: “As 100 melhores Tascas de Portugal”, de António Catarino e Rui Cardoso, “Roteiro de Tascas do Porto”, de Rui Simões Pinto e “As 50 Melhores Tascas de Lisboa”, da editora Zest. 

Mas, se preferir, também vale o método mais antiquado dos bons de garfo como eu: ao caminhar pela sua cidade, olhe ao seu redor. 

E quando encontrar um restaurante com ementa do dia pregada à entrada, casa cheia ao almoço, vaivém de pratos exalando cheiro de comida caseira e pessoas animadas —as conversas entremeadas com o tilintar dos pratos—, há uma grande chance de estar diante desse símbolo da gastronomia portuguesa. 

E você? Conta aí: qual sua tasca favorita?  

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