Papa al Pomodoro do restaurante San Michele, no hotel Belmond Villa San Michele. Foto: Gisele Rech
O desperdício zero nem sempre foi moda, era necessidade
De feijoadas a pudins, entenda como a gastronomia transforma ingredientes simples em pratos culturais, passando por Itália, Portugal, Estados Unidos e, claro, Brasil
O diálogo cultural da gastronomia atravessa fronteiras e cria, vez por outra, versões adaptadas de vários pratos. Muitos deles frutos dos períodos de vacas magras, quando o aproveitamento máximo dos alimentos se fazia presente bem antes do tema virar moda.
É o caso, por exemplo, da feijoada, que surgiu em Portugal em várias versões, a depender dos ingredientes de cada região, levando sempre o ingrediente-base, o feijão, e os embutidos, preparados a partir de partes do porco não consumidas frescas.
Tal como varia de região para região em Portugal, o prato foi adaptado aos ingredientes brasileiros quando os portugueses chegaram por lá. Sim, leitores, sinto em decepcionar quem ainda acredita na história de que a nossa amada feijoada, que ficou mundialmente conhecida, teria surgido por meio dos africanos escravizados, com o aproveitamento dos ingredientes do porco que eram descartados pela Casa Grande.
Recentemente, na Toscana, tive a oportunidade de provar a Papa al Pomodoro, que, ao contrário do que possa parecer, não é feita de batatas. O prato é feito, basicamente, por pão amanhecido embebido em água e molho de tomate fresco, afinal, estamos na Itália —o contrário, seria quase que um sacrilégio.
Comi a versão do restaurante San Michele, no hotel Belmond Villa San Michele, construído onde outrora foi um convento no coração de Florença. Por lá, o prato ganha um upgrade pelas mãos do chef Alessandro Cozzolino, do restaurante gastronômico do hotel, o La Loggia Villa San Michele. O toque especial fica por conta dos croutons com toque de azeite, que trazem aquele contraste de texturas tão importante para um prato.
É importante reforçar, como os ingredientes denunciam, que a Papa al Pomodoro é um prato que remete à cozinha mais simples, do desperdício zero. Afinal, o pão amanhecido que iria ao lixo vira a amálgama que sacia a fome e desperta os sentidos.
A partir do pão amanhecido, não há como não lembrar da Açorda, uma marca do Alentejo, centro-sul de Portugal. A grande diferença, no caso, é que o prato português não leva tomate. É o azeite, o alho e as ervas aromáticas, como o coentro, que trazem o sabor ao preparo. O prato também pode ser acrescido de ovo, bacalhau ou marisco.
Nessa seara da Mesa Compartilhada, na qual Itália e Portugal dialogam com seus pratos salgados de pão amanhecido, mais reminiscências gastronômicas: quem aí nunca comeu uma boa rabanada feita com o ingrediente vencido, leite, açúcar e canela? No Brasil, o doce ganha as mesas especialmente na época do Natal.
Já em Portugal, onde também pode ser encontrada com o nome de fatia dourada, é mais constante nas vitrines das pastelarias, para a alegria dos amantes do doce, que também faz sucesso na Espanha.
Na França, a sobremesa feita com pão amanhecido, leite e açúcar é batizada de Pain Perdu —ou, pão perdido: nada mais apropriado.
E na onda dos doces feitos com o pão que já passou do ponto de receber manteiga e ser saboreado fresquinho, a gente passa rapidamente pelo Reino Unido e faz uma conexão no Brasil —minha mãe fazia um pudim de pão que era puro afeto— e desembarca no Sul dos Estados Unidos: é por lá que o pudim de pão reina absoluto na lista de sobremesas e é feito de um modo bem raiz: em um tabuleiro!
No ano passado, tive a oportunidade de aprender a receita em uma aula na New Orleans School of Cooking, com o chef Eric Perkins, em uma versão que leva chocolate branco.
Aliás, ele explicou que o toque a mais pode ser dado com toda a sorte de ingredientes, incluindo as temidas passas (que eu, particularmente, amo) ou as não menos polêmicas frutas cristalizadas.
Um desvio premeditado
Ao compartilhar as referências às receitas com pão amanhecido, veio à lembrança outro ingrediente partilhado em mesas nos quatro cantos do mundo. Lá no sul dos Estados Unidos, tive contato estreito com outro ingrediente: o quiabo! Por lá, o produto é apresentado especialmente na versão empanada e frita por imersão. É, a cozinha por lá não é, digamos, muito light.
O ingrediente também pode, a depender da região, entrar no preparo do Gumbo, um guisado super suculento feito com carne de porco ou marisco, cujo caldo pode ser engrossado com roux (a clássica mistura de farinha de trigo e manteiga) ou com quiabo, famoso por sua característica viscosa (ou baba, como muitos costumam dizer).
Tal como no Brasil, o ingrediente foi levado pelos povos escravizados e se enraizou como importante elemento cultural. Em terras brasileiras, o quiabo é estrela de pratos como o frango com quiabo, um dos tesouros da gastronomia mineira. O quiabo também é elemento essencial do caruru, um dos ícones do receituário baiano.
Sinto em deixar o leitor com água na boca, mas esse papo sobre o quiabo ainda tem muito a render dada a riqueza do ingrediente. Por isso, vamos deixar para uma próxima Mesa Compartilhada. Nossa reserva para o próximo mês já está feita aqui, na BRASIL JÁ, nosso ponto de encontro a partir de agora.
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