Nonato Viegas

Diretor de Informação e editor-chefe da BRASIL JÁ

Nonato Viegas

O sapo e a panela

Ao olhar para o passado com o repertório de hoje nos parece evidente em que dariam a Alemanha nazista e a Itália fascista

05/03/2024 às 09:27 | 3 min de leitura

Na tumultuada Munique da década de 20 do século 20, um pequeno jornal diário, o Münchener Post, percebeu antes dos demais a ascensão de um "certo senhor chamado Hitler”.

Enquanto as demais publicações não entenderam o que se desenhava, o Post reconheceu o perigo do discurso logo nas suas primeiras aparições e, comportando-se como deve um órgão de imprensa, combateu as ideias do líder nazista.

A batalha se dava pelas letras, contextualizando a notícia, escrutinando os discursos do populista e denunciando as ideias incivilizadas. Pelo trabalho, recebeu do futuro ditador as alcunhas de “cozinha venenosa” e “peste de Munique”.

O pequeno jornal resistiu as ameaças e intimidações por mais de uma década, até que em 1933 sucumbiu e fechou. Sua sede foi incendiada por determinação do recém-nomeado chanceler da Alemanha, Adolf Hitler.

Os jornalistas tiveram de fugir do país para conseguir recomeçar a vida. Uns em outro ofício. Outros, passada a Segunda Guerra Mundial, retornaram e até fundaram novos órgãos de comunicação, como o Süddeutsche Zeitung, que teve como seu fundador o ex-editor de política do Post, Edmund Goldschagg. 

Ao olhar para o passado com o repertório de hoje nos parece evidente em que dariam a Alemanha nazista e a Itália fascista. Difícil é para quem tem a missão de contar a primeira versão da história ter discernimento para dar os devidos pesos e não causar alerde desnecessário.

O feito do Post foi grande.

Entender as entrelinhas, refletir os riscos para a sociedade e denunciar o macabro futuro que se desenhava não era um trabalho trivial, tanto que naquela década, por muitos anos, o pequeno diário andou sozinho.

Penso em como se deu a conversa entre o repórter que cobriu o primeiro discurso de Hitler, ainda nos anos 1920, e seu editor. Era experiente e compreendeu o que testemunhara ou voltou para a Redação certo de que se tratava apenas de um maluco populista e que nunca contaria com a adesão popular?

O que disse seu editor: acreditou e cobrou detalhes, quis saber o que o repórter vira no público, pediu para que o jornal acompanhasse de imediato aquele populista?

No livro A cozinha venenosa — um jornal contra Hitler, da jornalista Silvia Bittencourt, lançado em 2013, há algumas pistas. Sugiro a sua leitura. É atual. E dá um pouco da dimensão sobre como às vezes a humanidade se comporta como sapo na panela sem perceber o aquecimento da água até ser tarde demais. 

Nossa missão é alertar para o aquecimento da água. Por isso, convidei para a edição impressa que circula em março dois jornalistas que cumpriram com excelência seu papel funcional.

Juliana Dal Piva acompanhou nos últimos anos a trajetória do ex-presidente Jair Bolsonaro ao longo de sua ascensão à Presidência da República do Brasil.

Na BRASIL JÁ, Dal Piva conta os movimentos que indicam tendência de queda nesta trajetória do ex-presidente e como ele ainda precisa prestar contas à Justiça.

Na política, a despeito de seus problemas judiciais e éticos, Bolsonaro continua um líder popular. E, apesar de merecer o esquecimento da História, precisa ser acompanhado pela sociedade, porque mantém lastro político, porque em seu passado há questões ainda a ser respondidas, porque deixou um rastro de mortes (mais de 700 mil) por negligência de sua gestão ou porque, demonstram as provas colhidas pela Polícia Federal, pressionou, incitou e tentou dar um golpe de Estado.

O ex-presidente merece o esquecimento, mas não pode ser esquecido.

Também o jornalista André Duchiade acompanhou o governo de Donald Trump nos Estados Unidos e traz nesta edição os temores sobre o futuro da democracia americana caso, como indicam as pesquisas, o republicano volte a ser presidente. 

Há ainda duas reportagens das jornalistas Stefani Costa e Graziele Frederico —a primeira de Lisboa e a segunda de Milão— que contam como estão os movimentos da extrema direita em Portugal e na Itália.

Em comum nas duas matérias, elas alertam para o fervor da água e a certa naturalização dos discursos que, num mundo pós-Segunda Guerra Mundial, deveriam ser completamente rechaçados pela sociedade por meio de suas instituições.

Sobre os radicalismos, convido a leitura do artigo do professor Edson Simões.

Ele nos ajuda a compreender o contexto político e social propício à gestação dos ovos da serpente do fascismo no início do século passado.

Sobre o mesmo tema, o professor Carlos Pereira defende que somente instituições fortes garantem resiliência às democracias a líderes populistas e extremistas.

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