Não é necessário estar no palco de uma guerra, como a da Ucrânia, para sofrer as suas consequências. Há aqueles que são os protagonistas, porque estão no terreno e sofrem o trauma do choque, e há os que assistem diariamente pela televisão às atrocidades cometidas nas guerras e, com isso, podem desenvolver um trauma secundário. As pessoas deste segundo grupo não estão no campo de batalha, mas conseguem ter a percepção do conflito e ser empáticos o suficiente para se colocarem ao lado dos que lutam.
Quando um paciente vem ao meu consultório com uma queixa, habitualmente tem a ver com a sua história de vida; mas quando muitos pacientes entram no consultório falando do quanto estão estressados, angustiados ou tristes com a violência no mundo, já não é um problema particular —é um problema coletivo. E assim caminha o mundo. Ainda mal refeitos dos anos da Covid-19, da consequente insegurança pessoal, das perdas e da tristeza que a pandemia causou, tendo de enfrentar a posterior crise socioeconômica, somos agora confrontados com duas guerras simultâneas, milhões de refugiados, milhares de mortos e a ameaça de uma guerra em escala planetária. Se a Europa pôde respirar aliviada com o fim da Segunda Guerra Mundial, o continente agora segura o ar por conta do fantasma de um conflito em nível planetário.
Podemos até aconselhar que as pessoas toquem suas vidas normalmente e se alheiem do noticiário mais pesado, mas não podemos ignorar que as consequências dos conflitos nos atingem direta ou indiretamente. Quanto mais crescem os sentimentos de incerteza, mais difícil é gerir o medo. Este trauma de continuidade —porque as guerras têm se prolongado no tempo mais do que poderíamos supor — pode aumentar a nossa percepção de que o mundo não é um lugar seguro, e esta ideia mais cedo ou mais tarde vai prejudicar a nossa saúde física e mental. Entre os promotores da saúde há uma certa unanimidade nos conselhos que dão para combater o estresse: evitar ver demasiadas notícias, especialmente as que vêm acompanhadas de imagens.
O conflito na Ucrânia é a primeira guerra transmitida quase em tempo real pelas redes sociais. Nem a mídia dá conta da demanda nem os telespectadores estão preparados para distinguir a veracidade das informações e identificar a contrainformação, ou fake news, com que somos bombardeados a todo o momento. E mais problemático será o que advém do trauma, que é o que fica nas pessoas do que elas consomem. São marcas que as guerras deixam em todos nós, não importa de que lado estamos. A estas sequelas chamamos transtorno de estresse pós-traumático, sintomas que surgem após vivenciar ou testemunhar situações psicologicamente perturbadoras.
O estresse pós-traumático se revela de muitas formas, seja como insônia, irritabilidade, mudanças de humor súbitas ou medo de realizar tarefas que antes eram seguras e prazerosas. Será o que viverão muitos sobreviventes, órfãos, refugiados, combatentes e testemunhas das guerras nos próximos anos —e quando falo em próximos anos, falo de várias gerações de famílias afetadas. Os traumas provocados pelas guerras são transgeracionais, deixando as suas marcas tanto no corpo quanto na psiquê mesmo dos que não as vivenciaram pessoalmente.
Um estudo apresentado em 2019 por Ivan Rektor, pesquisador de neurociência, mostra que passar por uma situação traumática pode, além de comprometer a saúde mental, causar danos biológicos. Rektor e a sua equipe analisaram a estrutura cerebral de sobreviventes do Holocausto e constataram que o estresse e o sofrimento levaram a uma redução significativa da massa cinzenta dessas pessoas. Rachel Yehuda, professora de psiquiatria e neurociência, acrescentou que as pessoas com estresse pós-traumático revivem constantemente sensações e sentimentos associados ao trauma, apesar de ele ter ocorrido no passado. Os sintomas incluem dormência, depressão, ansiedade, pensamentos negativos e facilidade em ficar sobressaltado ou nervoso.
Ainda não há um consenso científico para explicar por que algumas pessoas são mais propensas ao estresse pós-traumático do que outras. Algumas hipóteses incluem fatores genéticos, questões hormonais e a habilidade de cada um em lidar com situações de estresse — o que chamamos de resiliência. Isso explica por que uma mesma situação vivenciada por diferentes pessoas pode impactar muito algumas e outras não. No entanto, mesmo aqueles aparentemente estáveis e com uma boa condição de vida (moram num lugar seguro, têm recursos e vínculos afetivos saudáveis etc.) não são imunes ao trauma. Todos temos um certo grau de sensibilidade e muitas pessoas não estão conscientes de que o seu nível de estresse vai aumentar —não têm essa consciência porque nem sempre os problemas são expressos pela psiquê. O nosso corpo fala, expressa emoções e pode somatizar o que sentimos por meio de dores de cabeça e de estômago, palpitações, infecções etc., até porque o estresse ataca o sistema imunitário.
Como combater o estresse pós-traumático?
Atualmente há tratamentos dos mais conservadores aos mais alternativos para cuidar do estresse pós-traumático e minorar os danos associados à vivência dos conflitos, direta ou indiretamente. As abordagens multidisciplinares têm revelado resultados positivos por meio de terapias especializadas, terapia de grupo e apoio social para ajudar as pessoas a reconstruírem suas vidas. Mas vínculos seguros serão sempre o principal preditor de saúde mental entre humanos, visto que fomos feitos para viver em comunidade.
Uma pessoa deprimida, com muita dor, precisa de laços seguros, solidariedade, amor e compreensão; precisa ser ouvida para poder dissolver a armadura em que se encarcerou e voltar a confiar na vida. Em consultório, a pessoa traumatizada precisa de apoio e empatia, de uma relação terapêutica verdadeira, de generosidade. Quando tentamos dissolver o trauma num ambiente seguro, podemos ajudar as pessoas a fazer uma pendulação entre o seu lado mais saudável e o seu lado adoecido e, assim, vão se libertando do trauma e restabelecendo o equilíbrio.
O psicanalista Alexander Lowen defende a integração entre o corpo e a mente, proporcionando maior contato com a realidade e incentivando as pessoas a lidarem com as suas emoções, permitindo a descarga das tensões e estabelecendo um fluxo energético saudável no organismo. Como precisamos de segurança e equilíbrio quando temos demasiada carga energética negativa, o nosso corpo se rebela através da produção de sintomas. Após a abordagem de Lowen, foram sendo criadas as perspectivas corpo-mente, como a Brainspotting, a Somatic Experiencing ou o EMDR. Elas permitem uma remissão dos sintomas, uma vez que incidem sobre a raiz dos traumas, alcançando o que os medicamentos não conseguem: as memórias instaladas no sistema nervoso.
Tal como ocorrerá agora, após a Segunda Guerra Mundial muitas crianças ficaram órfãs. Na época, o psiquiatra John Bowlby foi convidado pela Organização das Nações Unidas a refletir sobre o tema. O resultado do trabalho foi a famosa Teoria do Apego, segundo a qual os bebês se apegam a adultos que os tratam bem. Essas pessoas são a sua base segura para confiarem e poderem ir explorar a vida. A Teoria do Apego tem formado a base de novas terapias e esclarecido as já existentes, e seus conceitos têm sido usados na formulação de políticas sociais e de amparo de crianças. Ela passou a ser usada também no tratamento de adultos para identificar e cuidar do tipo de relações amorosas que cada um de nós é capaz de desenvolver. Vínculos seguros podem restaurar a dor vivida e dar um novo sentido a quem, depois do choque, quer começar de novo.
Há um ditado popular que diz que “o que não nos mata nos torna mais fortes”. Quem desenvolve a resiliência para sair do desconforto e do desequilíbrio ganha uma força de viver quase imbatível. “O trauma não está no evento, mas do que posteriormente pensamos dele” — esta frase é de um dos mais reputados biofísicos e psicólogos, Peter Levine, que desenvolveu o método naturalista de lidar com o trauma, o Somatic Experiencing. Criar memórias pode ajudar no processo de recuperação, mas primeiro é necessário desbloquear os sentimentos, porque resistir ao que nos causa dor atrapalha o nosso processo de cura. Não resistir à dor, fazer o luto dela e dar um novo sentido à vida, só isso nos pode levar à libertação.