Encontrei a J. no meio da estrada, visivelmente alterada, e ladeada por dois homens. A madrugada de sábado misturava-se já com a manhã de domingo, quando a cena fez parar o trânsito que, naquele horário, deveria fluir sem maiores perturbações.
Ninguém poderia avançar enquanto a miúda continuasse por ali a cirandar desgovernada, e sem qualquer intenção de seguir viagem com o senhor que, desesperado, tentava convencê-la a entrar no carro.
Sem mais informações, para além da minha observação, num primeiro momento, pensei que estaria diante de uma pessoa alucinada, precisando de ajuda para não se machucar. Depois, a presença de duas figuras masculinas, tentando dominar os movimentos de uma mulher, ativou em mim receios de uma possível agressão.
Em qualquer dos casos, seguir caminho como se nada fosse não me pareceu opção. Já de porta aberta, ofereci-me para ajudar, numa negociação que se revelou mais fácil do que todo aquele impasse parecia antecipar.
A rapidez com que a J. entrou no Uber em que eu seguia, quebrando a resistência que até ali não desarmava, fez-me reforçar a ideia de que talvez houvesse mesmo um sentimento de insegurança em relação àqueles homens. Fosse como fosse, do meu lado estava uma desconhecida, claramente incapacitada, e eu me ofereci para lhe dar boleia até em casa.
Foi então, que, finalmente, entendi a situação. O senhor que não a largava estava a transportá-la no seu Uber, quando, aproveitando-se de uma parada num sinal, a J. abriu a porta e saiu desorientada. Toda a agitação a que assisti correspondia, afinal, aos seus esforços de reencaminhá-la para o carro.
Contou-me que o serviço tinha sido solicitado pela polícia e enquanto procurava a morada da cliente em fuga, partilhou tudo o que sabia.
Explicou que os agentes responderam a uma queixa sobre uma mulher tresloucada, que andava na rua arranjando confusão com tudo e com todos, e, no local, resolveram despachá-la de Uber.
“Mulher negra raivosa”. Questionei-me sobre o possível enquadramento daquela ação policial, e, entre preocupações com a segurança da J. —que se tinha transformado na minha prioridade— não consegui deixar de pensar no que me poderia ter acontecido naquela mesma situação.
Infelizmente, a minha vivência aliada à consciência racial, indica-me que a história seria radicalmente diferente. Ao contrário da J. sou uma mulher negra, e afirmo, sem hesitar, que se estivesse a provocar desacatos na rua, descontrolada, ao ponto de haver necessidade de intervenção policial, não acabaria no banco traseiro de um Uber, a caminho de casa.
Seria automaticamente rotulada de selvagem e perigosa, vista como uma “mulher negra raivosa”, e, imediatamente algemada, e conduzida à esquadra mais próxima, para uma lição de ‘civilização’. Ainda bem que não foi isso que aconteceu à J. Ainda mal que tenha sucedido a Cláudia Simões, mulher negra violentamente agredida por um agente, e condenada em tribunal por se ter defendido.
Escrevo e escreverei sempre contra isso, e digo ao que venho, sem pedir licença.
Procuro fazê-lo respeitando um princípio de que raras vezes me beneficio: o da presunção de inocência. Culpada até prova em contrário, habituei-me, desde cedo, a preparar a minha defesa de vida com o máximo de conhecimento, e o mínimo de comprometimento.
Escrito de outro modo, estudei para me ilibarem da condenação de menoridade intelectual, e me especializei em disfarçar dores, suportando-as calada, e até certo ponto resignada.
Deixei de o conseguir fazer quando percebi que o meu silêncio estava pesando sobre os meus sobrinhos, mais de três décadas depois de ter vivido a minha infância.
Se hoje falo de racismo é sobretudo para que as gerações que me procedem não sofram os mesmos condicionamentos, e, mais do que isso, para que consigam quebrar velhos padrões de encolhimento. Ao mesmo tempo, faço por honrar os combates de quem me precedeu, e demasiadas vezes pagou com a própria vida o que agora reconhecemos como um direito.
As minhas palavras, tal como os nossos passos, vêm de longe, e é com elas que luto, a partir de agora também por aqui.