Editora da Estilo BRASIL JÁ, jornalista especializada em gastronomia
Uma coisa fascinante compartilhada entre Brasil e Portugal é a paixão pelo queijo. Portugal tem nada menos do que treze queijos com denominação de origem produzida, ou seja, produtos exclusivos de determinada região e cercados por tradição no modo de fazer. Um dos mais famosos é o queijo São Jorge, produzido na ilha de mesmo nome no arquipélago dos Açores.
No Brasil, há o premiadíssimo Queijo da Canastra, patrimônio cultural e imaterial brasileiro, título concedido pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico da Humanidade. O produto também tem selo de indicação de procedência, que garante que os cerca de oitocentos produtores dos sete municípios da região mantêm as características e qualidades que o tornam tão especial.
Nessa nossa coluna, a gente fala sobre o parentesco entre esses dois queijos curados, de sabor intenso e único. Foi a partir das conversas com pessoas ligadas ao queijo mineiro que descobri a descendência portuguesa: o modo de produção, a partir de leite cru de vaca, é o mesmo, guardadas as diferenças no tempo de cura.
Há mais de 300 anos, os açorianos chegaram à região da serra mineira cortada pelo Rio São Francisco e, como acontece com muitas receitas e hábitos alimentares, reconheceram na geografia semelhanças com a terra natal. E se fez o queijo da Canastra.
Por geografia, destacam-se o relevo acidentado, o clima que permite a manutenção de águas cristalinas e a vegetação natural, trazendo um alimento de qualidade às vacas, cujo leite é usado para a produção. Tanto nos Açores, quando em Minas Gerais, a natureza contribui diretamente para a qualidade das pastagens, o que consequentemente resulta em animais saudáveis e um leite excepcional.
Num bom dedo de prosa, o José Baltazar da Silva, o Zé Mário, um dos produtores de queijo da Canastra mais antigos da região, confirma a tradição do processo produtivo, que, na família dele, está há três gerações e é o que dita a regra. No mais, são os detalhes.
“É o animal feliz, criado solto com as crias, alimentados com bom capim e água de qualidade que desce da serra. Com o leite de qualidade, o queijo sai bem”, contou.
Curiosa —e investigadora que sou—, fui logo querendo provar os queijos assim que cheguei a Portugal. O queijo São Jorge foi um dos primeiros que comi. As lembranças arquivadas no repertório do produto da Canastra me deram parâmetro suficiente para constatar que, sim, são igualmente deliciosos e de características muito próximas: sabor intenso, que puxa para o picante, cor amarelada (mais intensa quanto maior for o tempo de cura) e textura firme.
Em conversa com o António Azevedo, presidente da Confraria do Queijo São Jorge e diretor da Uniqueijo, da Ilha de São Jorge, fui ao cerne da questão: de onde surgiu a tradição deste queijo de leite cru de vaca na versão portuguesa, que, depois, dispersou suas raízes em solo mineiro? Curiosamente, o queijo São Jorge tem herança holandesa, apesar da cultura queijeira estar presente no território português desde os tempos dos romanos.
“Foram os flamengos (holandeses) que introduziram o modo de produção, na época das navegações, quando a produção de leite”, disse, referindo-se aos holandeses que fizeram parte da ocupação da região dos Açores. Ao longo dos anos, as técnicas holandesas tiveram influências inglesas, incluindo o chamado processo de “cheddarização”, que tem a ver com a fermentação da massa do queijo por um período relativamente curto, algo semelhante ao que acontece na produção do cheddar, um dos queijos curados mais populares no Reino Unido.
Na ilha, encontraram uma ótima vegetação e altitude para a criação do gado leiteiro, que tem um papel fundamental na produção do queijo. Qualquer semelhança com a geografia serrana mineira não é mera coincidência para o resultado do queijo.
Como a maioria dos produtos gastronômicos, a matéria-prima —neste caso, o leite cru, sem aditivos, das vacas— tem um papel fundamental para o resultado final: um queijo curado, com leve picância, feito de leite, soro e empenho de quem o fabrica, já que o processo inclui viradas estratégicas para que a cura seja uniforme.
Ora, ora. Não é tal e qual o nosso amado queijo da Canastra? A pequena diferença está no uso do sal. No método de produção Made in Brazil, o sal (grosso, no caso) envolve a massa do queijo. No caso do São Jorge, o sal é incorporado à massa. Mas, alto lá! Na minha conversa com António, ele revelou que sua mãe usava esse método super mineiro. “Fazia parte da produção mais caseira.”
Se no método de produção São Jorge e Canastra têm um diálogo estreito, o tempo de cura difere e, é claro, interfere diretamente no sabor e na consistência dos queijos. No Brasil, a cura mínima é de apenas doze dias, enquanto o São Jorge precisa de pelo menos quatro meses para ser comercializado, de acordo com o caderno de normas.
“Temos versões de sete, doze, 24 e quarenta meses de cura, que é o queijo São Jorge mais diferenciado, com pequenos cristais que dão ao produto um sabor especial”, explica António.
De acordo com a Associação de Produtores de Queijo da Serra da Canastra, no lado de lá do oceano, alguns produtores já experimentam produzir queijo da Canastra extra maturado, com mais de um ano de cura e o resultado foi especial.
Ainda na comparação, em termos de quantidade, devido à extensão da área de produção, o Brasil leva a melhor, já que são oitocentos produtores e uma soma de 3 mil toneladas ao ano. Já o queijo São Jorge chega a 2,1 toneladas ao ano. “Temos duzentos produtores de leite e três fábricas na ilha, que concentram a produção”, diz António. Dessa quantidade, só 35% recebem o selo de DOP, que exige a produção do queijo com o leite cru, sem interferências. “Alguns mercados, como o dos Estados Unidos, exigem que o queijo seja feito com leite pasteurizado, o que foge ao caderno de normas”.
Aliás, aqui há um ponto importante. Tanto o Canastra, quanto o São Jorge em sua forma original, encontram barreiras alfandegárias, resultado do controle de produtos de origem animal nas fronteiras. Muito em função disso, o queijo São Jorge ainda não chega ao Brasil, apesar de ser exportado para os cinco continentes e mais de quarenta países, majoritariamente em sua versão modificada, com leite pasteurizado.
De acordo com o diretor-executivo da associação dos produtores de queijo lá no Brasil, Higor Freitas, houve uma tentativa de produção do queijo Canastra com leite pasteurizado, mas ficou muito diferente do produto original. “Por ora, ainda não tivemos evolução na exportação de lácteos de leite cru do Brasil. Mas seguimos no processo”, disse.
Ou seja, por enquanto, para saborear o queijo da Canastra, só mesmo em território brasileiro. Mas, aqui entre nós, vale muito a viagem. Como opção, para quem está em Portugal, fica o convite para provar o queijo São Jorge.
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