Protesto em favor do povo palestino. Crédito: Ian Hitchinson, Unsplash

Protesto em favor do povo palestino. Crédito: Ian Hitchinson, Unsplash

A culpa alemã e a memória sob discórdia

Como os países lidam com seu passado autoritário é um tema em debate

03/07/2024 às 11:09 | 8 min de leitura
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 O que significa “nunca mais”? Desde abril de 1945, quando sobreviventes libertos do campo de concentração de Buchenwald escreveram a frase, o slogan ilustra memoriais do Holocausto para dizer que a humanidade aprendeu a lição e que atrocidade semelhante não se repetirá. 

Setenta e nove anos depois, surgem questionamentos sobre a quem a expressão se dirige —se só à comunidade judaica, vítima do nazismo, ou a qualquer um. No centro do debate está a campanha militar israelense deflagrada em Gaza após o atentado terrorista do Hamas no último dia 7 de outubro. 

A despeito do discurso do direito à autodefesa, há cada vez mais vozes apontando para um massacre na região, incluindo entre os que denunciam estar em curso um genocídio governos, com o da África do Sul, que formalmente acusou Israel nas Nações Unidas,  do Holocausto. 

Em nenhum outro lugar, as dificuldades para definir quais são as responsabilidades para o passado ficam tão nítidas quanto na Alemanha. 

O país contou uma história gloriosa sobre si: a de uma estudantes progressistas em universidades americanas e estudiosos democracia vibrante que, após escrever as páginas mais sombrias entre todas, assumiu a sua culpa histórica e se reinventou, tornando-se um campeão contra o antissemitismo. 

Mudança de imagem

Uma imagem bem diferente da que pintam seus críticos atualmente: a de um Estado que cancela palestras e homenagens a artistas e intelectuais críticos a Israel, inibe manifestações e aliena a sua população muçulmana, enquanto autoriza a venda de armas para a morte de inocentes. 

“O aparato de Estado está muito preventivamente repressivo, paranoico e disposto a violar ou mudar a lei”, disse à BRASIL JÁ Emily Dische-Becker, diretora em Berlin da Diaspora Alliance, uma organização internacional destinada a combater o antissemitismo e sua instrumentalização. 

“Embora as pessoas não estejam sendo assassinadas ou torturadas, houve uma rápida deriva em direção a medidas autoritárias para penalizar discursos e atos de dissidência”, acrescentou. 

A escritora americana-alemã Deborah Feldman fez grande sucesso na Alemanha com a sua autobiografia Unorthodox, que narra como ela fugiu de uma comunidade ultrarreligiosa judaica em Nova Iorque e encontrou a liberdade em Berlim. 

“Talvez Deborah Feldman seja a judia mais famosa do mundo depois de Anne Frank”, escreveu o jornal alemão Der Freitag, numa resenha de seu novo livro “Fetiche Judaico”, lançado em agosto de 2023, sobre a obsessão de alemães com judeus. Então, algo mudou. 

Os ataques a Feldman

Após o ataque do Hamas, Feldman escreveu textos críticos à resposta de Israel e ao apoio do Ocidente ao país. Em pouco tempo, seu nome começou a sofrer ataques em jornais. Amigos da esquerda diziam estar pessoalmente traídos. Em um post na internet, um escritor disse que fantasiava com ela sendo refém do Hamas. 

"É incrivelmente doloroso escutar de alemães que, se não cumprir as suas estreitas expectativas de identidade judaica, não tenho direito legítimo a ter voz nesta discussão. É a pior forma de antissemitismo que já encontrei em toda a minha vida. E se há algo que meus ancestrais me transmitiram, é a determinação de lutar contra essa desumanização dos judeus em caricaturas simplistas”, afirmou Feldman. 

Nos Estados Unidos, onde a comunidade judaica é muito maior, o discurso, embora tenso às vezes, “era muito menos inibido, muito menos estreito”, disse Feldman. Segundo ela, no país “era possível aceitar a realidade do pluralismo judaico, e ter uma discussão na qual uma diversidade de opiniões tivesse legitimidade”. 

O caso da filósofa americana Nancy Fraser, que é judia, ilustra o argumento de Feldman. 

Em abril, a Universidade de Colônia cancelou um convite para uma prestigiosa cátedra feito a Fraser por causa de sua subscrição em novembro, ao lado de centenas de outros professores, de uma carta crítica à ação Israelense em Gaza. 

Em entrevista ao jornal Die Zeit, Fraser afirmou ser vítima de “McCarthyismo filossemita” —uma perseguição por não judeus em suposta defesa de judeus. Ela ressaltou que acredita na responsabilidade especial alemã em relação aos judeus, mas com uma ressalva. 

“Aos meus olhos, isso não significa dar passe livre ao governo israelense. O que está acontecendo em Gaza não deveria estar acontecendo —e certamente não em meu nome”. Há numerosos outros casos de cancelamentos de judeus críticos a Israel. 

Negação de genocídio

Em novembro, a escritora não binária Masha Gessen teve a outorga do Prêmio Hanna Arendt de Pensamento Político cancelada após dizer que há um genocídio em Gaza —após a repercussão negativa, a direção da premiação a ofereceu uma homenagem reduzida. Uma exposição da artista sul-africana Candice Breitz não ocorreu pelo mesmo motivo. 

Yuval Abraham, o codiretor israelense do filme “Zona de Interesse”, alegou ter sofrido ameaças de morte e ouviu uma chuva de críticas após se manifestar. Como se forjou a aliança entre Israel e a Alemanha democrática do pós-guerra é o principal assunto do livro “Germany and Israel: Whitewashing and Statebuilding”, de 2020, de Daniel Marwecki. 

Segundo o historiador, políticos alemães tinham motivos cínicos para apoiar o fortalecimento do Estado judaico. “Se você olhar para a sociedade alemã pós-guerra, especificamen te a Ocidental, ela estava cheia de nazistas. 

Muitas pessoas lucraram com o regime anterior, mas apenas a elite dos nazistas foi julgada em Nuremberg”, disse Marwecki. A Alemanha Ocidental era necessária na Guerra Fria contra a União Soviética e precisava ser integrada rapidamente ao Ocidente. 

Ainda havia trabalho de reputação a fazer, e é aí que entra o acordo de reparações —quantias vultosas pagas a Israel que, embora não fossem muito custosas para a Alemanha, eram salvadoras para Israel, disse Marwecki. 

“Isso é uma lavagem de imagem. Os Estados Unidos, Israel, o Ocidente e a sociedade alemã fecharam o olho para a continuidade nazista na Alemanha Ocidental, e isso resultou em uma absolvição precoce. Para a classe política alemã, estar próximo a Israel significava distância do passado”, afirmou o historiador. 

Cultura da memória

Este processo se acentuou após a reunificação da Alemanha e recebeu o nome de “cultura da memória”. Com o tempo, o modo de arrependimento e reparação do país em relação ao seu passado autoritário passou a ser visto em muitos outros lugares como “o padrão ouro” de um país em relação ao seu passado autoritário. 

“Então quando chegamos a 2000, havia esse novo sentido na Alemanha de que tínhamos feito o trabalho. Pagamos todo aquele dinheiro a Israel, fizemos esses grandes monumentos, e agora vamos em frente. Vamos nos sentir normais, e usar nossas bandeiras na Copa do Mundo”, disse a antropóloga de Cambridge Esra Özyürek. 

Nas palavras dela, “os ombros dos alemães ficaram mais leves”, mas não se achava que tudo estava perfeito. Ganhou força a ideia de que havia um grupo a ser instruído sobre o Holocausto e o antissemitismo: os muçulmanos, comunidade que também queria se sentir parte desse processo de restauração do passado. 

“A ideia era que a culpa poderia ser subcontratada, os alemães não precisavam assumi-la totalmente. Os muçulmanos queriam se sentir parte dessas atividades contra o racismo e o antissemitismo. E, assim, assumiram voluntarimente parte desta culpa. Mas seus direitos eram limitados e condicionais. Eles nunca se comparam aos dos alemães originais”, disse Özyürek.

Atualmente, parlamentares alemães discutem se cidadãos naturalizados considerados antissemitas devem perder sua cidadania. No bairro berlinense de Neukölln, conhecido por sua forte comunidade palestina, a polícia fez operações na casa de manifestantes. 

“Apesar dos registros policiais mostrarem que mais de 90% dos crimes antissemitas na Alemanha são cometidos por ativistas de extrema direita, que são predominantemente brancos, desde os anos 2000, o antissemitismo tem sido erroneamente enquadrado como um problema muçulmano”, disse Özyürek. Os extremistas de direita, no entanto, não são todos iguais. 

O partido Alternativa para a Alemanha (AfD), a principal força ultraconservadora no país, é atualmente um grande defensor de Israel. Para isso, com frequência o partido diz que os migrantes são a principal ameaça aos judeus. 

“A extrema direita conseguiu com sucesso canalizar sua política anti-imigrante para o centro da política, usando acusações de antissemitismo. O governo e os partidos centristas adotam a agenda da extrema direita para evitar serem vistos como fracos em relação ao antissemitismo", disse Emily Dische-Becker

Debate no Brasil

A forma como os países lidam com seu passado autoritário é um tema de debate presente também em outros lugares. No Brasil, no aniversário de 60 anos do golpe militar de 1964 em 31 de março, o governo federal cancelou sua programação oficial por receio de incomodar as Forças Armadas. 

“A principal característica no Brasil é uma desmemória, em vez da memória. Há pouco cuidado com período por parte do Estado e da sociedade. Uma das implicações do fato de a ditadura ter terminado com um acordo foi que os governos se propuseram a silenciar sobre ela. O acordo implicava em esquecimento dos cometidos, em não tocar no assunto para evitar punições”, afirmou Rodrigo Patto Sá Motta, professor de História da Universidade Federal de Minas Gerais. 

O historiador ressaltou que, embora os governos de Fernando Henrique Cardoso e os do PT tenham ensaiado políticas de memória, esse é um processo que nunca foi concluído. 

“A população brasileira em geral conhece pouco do tema, tem pouca memória e pouca informação. O fato de não ter havido enfrentamento contribuiu para a presença dos militares no cenário público no Brasil hoje”, afirmou. 

Em Portugal, o processo foi diferente: como a ruptura com o Estado Novo veio por meio de uma revolução, houve um confronto direto com o regime anterior. ção, isso também significou uma punição a antigos agentes da repressão. 

Ao contrário do Brasil, grandes lideranças do salazarismo, como Marcelo Caetano e Rui Patrício, partiram para o exílio. Também houve a construção de marcos da memória, como o Museu do Aljube, onde era a sede da Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a Pide. 

“Essa memória dá grande importância à resistência portuguesa, mas ao mesmo tempo secundariza um pouco o apoio de parte da sociedade ao regime. Ela ataca personagens importantes, mas constrói uma narrativa segundo a qual o grosso da sociedade portuguesa fez oposição à ditadura do Estado Novo, o que está longe de ser verdade”, afirmou o historiador da Universidade de São Paulo Francisco Martinho.

Apesar das críticas, nem todos acreditam que a atmosfera do debate alemão esteja tão tóxica. A pesquisadora Noa Swisa, que acaba de concluir doutorado na Universidade Hebraica de Jerusalém, enfatizou que não considera o apoio incondicional. 

Segundo ela, o rechaço se dirige somente a críticas injustas. De acordo com a pesquisadora, estas críticas ilegítimas incluem a acusação de apartheid, feita pelas organizações de direitos humanos Anistia Internacional e Human Rights Watch, e de genocídio, feita pelo governo da África do Sul e por vários estudiosos de direito internacional. 

“São coisas que, se você olhar para o arcabouço legal, não se justificam. A Alemanha não aceitará isso, e é muito crítica em relação a quem não reconhece o direito de Israel existir. A Alemanha é mais sutil em sua abordagem. Eu não concordo com a chamada de cultura do cancelamento em geral, mas muitas vezes essa é a maneira de lidar com situações em que a crítica a Israel é injustificada ou não equilibrada", afirmou.

Nuances

Pesquisas de opinião mostram nuances. De acordo com as mais recentes, do final de março, cerca de 69% dos alemães afirmaram acreditar que as ações militares de Israel em Gaza são injustificadas porque causaram muitas mortes de civis. 

Apenas 18% expressaram apoio à ofensiva militar contínua de Israel. Isso mostrou uma lacuna significativa entre a opinião da maioria da população e a política do governo. Uma das principais demandas dos críticos ainda não foi atendida: a Alemanha não suspendeu a venda de armas para Israel. 

Companhias alemãs venderam em 2023 300 milhões de euros em armamentos para o Estado de Israel, o equivalente a 30% das armas das Forças Armadas. Esse fornecimento de armas rendeu um processo do governo da Nicarágua contra o Estado alemão na Corte Internacional de Justiça.

No final de maio, a aliança esteve sob um teste após o procurador do Tribunal Penal Internacional pedir a prisão do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu. O pedido gerou um impasse: se o tribunal emitir os mandados, a Alemanha, tal como outros membros da corte, terá a obrigação legal de prender Netanyahu se ele entrar no país. 

Primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Crédito: Kobi Gideon, GPO

Diante da sinuca, houve cautela: um porta-voz alemão disse que “as acusações do procurador-chefe são graves e precisam ser fundamentadas”, o que analistas consideraram uma posição levemente crítica a Netanyahu. 

A reação foi imediata, e veio em um comunicado do embaixador israelense na Alemanha, Ron Prosor. “Isso é um ultraje! O compromisso de Estado alemão está agora a ser posto à prova – sem ‘se’ ou ‘mas’”, ele afirmou. “A Alemanha tem a responsabilidade de reajustar esta bússola. 

Esta vergonhosa campanha política poderá tornar-se um prego no caixão para o Ocidente e as suas instituições. Não deixem chegar a esse ponto!”. A crítica veemente anuncia tensões no horizonte.

No final de maio, a aliança esteve sob um teste após o procurador do Tribunal Penal Internacional pedir a prisão do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu. O pedido gerou um impasse: se o tribunal emitir os mandados, a Alemanha, tal como outros membros da corte, terá a obrigação legal de prender Netanyahu se ele entrar no país. 

Diante da sinuca, houve cautela: um porta-voz alemão disse que “as acusações do procurador-chefe são graves e precisam ser fundamentadas”, o que analistas consideraram uma posição levemente crítica a Netanyahu. A reação foi imediata, e veio em um comunicado do embaixador israelense na Alemanha, Ron Prosor. “Isso é um ultraje! O compromisso de Estado alemão está agora a ser posto à prova – sem ‘se’ ou ‘mas’”, ele afirmou. 

“A Alemanha tem a responsabilidade de reajustar esta bússola. Esta vergonhosa campanha política poderá tornar-se um prego no caixão para o Ocidente e as suas instituições. Não deixem chegar a esse ponto!”. A crítica veemente anuncia tensões no horizonte.

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