16/09/2024 às 05:00
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"Somos uma mão de obra qualificada." A afirmação em tom de desabafo é do professor brasileiro Daniel Aleixo, de 32 anos.
Docente das línguas portuguesa e espanhola, Aleixo vive há cinco anos em Portugal e, assim como outras centenas de professores no país, sofre com a burocracia que o impede de desempenhar a profissão que escolheu para a vida.
Há algumas semanas, o professor, que está desempregado, decidiu mudar a estratégia no embate com o sistema português de reconhecimento de títulos: ele abriu uma petição online na Assembleia da República para que a voz da categoria seja ouvida.
Até a manhã deste domingo (15), o texto endereçado ao presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, contava com 540 assinaturas.
"Como bem sabemos, Portugal precisa de mão de obra e nós somos uma mão de obra qualificada. E simplesmente estão a cercear esse direito", afirmou Aleixo à BRASIL JÁ.
Aleixo tem razão quando menciona a necessidade de profissionais da área em Portugal. Com a volta do período letivo, a carência por professores ficou mais evidente. As salas de aula portuguesas precisam de pelo menos oitocentos docentes.
Outros números dão a dimensão do problema: nos últimos seis anos, 14 500 professores deixaram a carreira para se aposentar. Com isso, nos cálculos da Federação Nacional de Professores, cerca de 200 mil alunos num universo de 1,4 milhão de estudantes estão sem professor em ao menos uma disciplina.
A mobilização puxada por Aleixo reivindica a criação de uma portaria portuguesa que regulamente e reconheça as qualificações profissionais de professores formados no Brasil. O texto cita a necessidade de se instituírem normas claras para que docentes possam exercer suas atividades em Portugal.
A barreira enfrentada por Daniel e outros professores brasileiros está nas exigências impostas pela Direção-Geral da Administração Escolar. O órgão é responsável por conceder autorizações para que profissionais estrangeiros lecionem.
Para os brasileiros, as exigências em Portugal são as mesmas requeridas na União Europeia, o que representaria uma vantagem. Porém, os sistemas educacionais brasileiro e português são diferentes, especialmente na contagem da carga horária e no currículo dos cursos.
No Brasil, a carga horária dos cursos superiores é contabilizada com base no tempo de aula, ou seja, no tempo que o aluno passa em sala com o professor. Já em Portugal e na maior parte da Europa, além das horas na presença de um professor, são somadas as horas de estudo em casa e trabalho prático.
"A partir daí, já gera uma grande discrepância", disse Aleixo. Segundo o professor, a administração escolar portuguesa também exige que os professores brasileiros apresentem documentos que comprovem essa equivalência de carga horária emitida pelo Ministério da Educação ou por alguma secretaria estadual.
Só que, segundo ele, muitas vezes o documento é impossível de ser obtido no sistema brasileiro.
"É muito claro para Portugal que todo licenciado no Brasil —segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação do Brasil— é formado para dar aula na educação básica. Tão simples quanto isso. Qualquer pessoa que venha do Brasil e tenha um diploma de licenciado, essa pessoa deveria estar autorizada a dar aula", defendeu.
O que consta na petição
Na petição que redigiu e está disponível para assinaturas online, o professor afirma que o curso de pedagogia no Brasil não existe no mesmo formato em Portugal —e esse tem sido um dos principais obstáculos para os profissionais.
São duas realidades diferentes e complexas: no Brasil, uma pessoa com curso de pedagogia pode lecionar, assim como qualquer outra com um grau de licenciatura. Não é o mesmo em Portugal, que exige um mestrado em ensino.
"Muitos não têm o direito de exercer a função docente simplesmente pelo fato de a pedagogia não existir em Portugal, mas tem o mesmo efeito no sentido de formar", segundo explicação no texto do requerimento.
"No sistema de ensino brasileiro, a licenciatura é para ser professor. Nós temos a prática pedagógica. Nós temos os estágios. Nós temos toda a parte didática. Que é justamente para ser professor, que os outros cursos não têm", acrescentou Aleixo.
Preconceito também trava carreira
O docente não duvida de que também há um olhar estereotipado que dificulta a inserção dos professores brasileiros nas salas de aula de Portugal.
"A nível pessoal acredito que há essa questão, infelizmente, de que eles acham que é como se nós estivéssemos a ocupar espaços deles. O que não é verdade. O que nós queremos é o direito de exercer as nossas profissões."
O ano letivo começou na quinta passada, e, segundo noticiou a Lusa, com 60% das escolas abertas e milhares de professores em falta. A carência de professores é um problema que tem sido apontado pela imprensa portuguesa nos últimos anos.
"Estamos aqui disponíveis para suprir as necessidades, seja de forma temporária ou efetiva. Queremos contribuir, somar e fazer parte. Afinal, existe um Tratado de Amizade entre Brasil e Portugal que fala de cooperação e consulta", afirmou Aleixo.
A proposta da petição inclui a criação de uma nova portaria que contemple o reconhecimento automático de diplomas de professores formados no Brasil.
O objetivo é que haja essa convalidação ainda que os profissionais precisem cumprir critérios específicos, como a formação mínima e a possibilidade de estágios de adaptação ou provas de aptidão para garantir a qualificação necessária ao ensino em Portugal.
"Eu pretendo que [o processo] seja transparente, que haja clareza sobre o que é necessário. Que se verifique a realidade do sistema de ensino brasileiro em comparação com o sistema europeu, que trabalha com créditos, enquanto no Brasil usamos a carga horária. Tem que haver uma conferência", disse.
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