Cláudia Simões recebeu a nossa reportagem em sua casa, na Amadora. Crédito: Manuela Ferrer, BRASIL JÁ

Cláudia Simões recebeu a nossa reportagem em sua casa, na Amadora. Crédito: Manuela Ferrer, BRASIL JÁ

Cláudia Simões e o racismo: 'Eu estava lutando pela minha vida'

Cozinheira agredida por policial é julgada por ter mordido agente

18/06/2024 às 17:14 | 7 min de leitura
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O sol brilhava com esforço no dia em que a BRASIL JÁ se encontrou com Cláudia Simões, de 46 anos, em meados de maio. Nesta quarta (19), a cozinheira terá que ir a novamente a uma sessão do julgamento em que é considerada vítima e ré. 

Cláudia Simões é julgada por ter mordido um policial enquanto era agredida no chão. Ela foi espancada depois que sua filha esquecera o passe do ônibus (entenda logo abaixo).

Em maio, antes de chegar à casa dela, num local afastado da grande Lisboa, foi preciso ligar para Cláudia pois nenhum dos aplicativos de navegação era capaz de encontrar o caminho certo para Amadora. 

“Se você for até o Parque da Turma da Mônica, vai ser fácil”, respondeu Cláudia na chamada. Algumas voltas de carro depois, a reportagem chegou ao prédio de seis andares onde ela vive com o companheiro e dois de seus quatro filhos. A recepção foi com um sorriso tímido e um abraço. 

“Só Deus sabe como foi que eu não perdi a minha vida”, desabafou ela, enquanto acionava os interruptores da casa. Passaram-se quatro anos desde que Cláudia foi espancada por um policial da PSP na parada de ônibus perto da rua onde mora. Desde então, não dorme direito. 

Cláudia havia saído com a filha de 8 anos e ela esquecera o bilhete do ônibus — um contratempo a que qualquer um que dependa de transporte público está sujeito. 

A sequência de espancamento a que ela fora submetida naquele 19 de janeiro de 2020, porém, é destinada a poucas pessoas, normalmente negras, imigrantes e pobres. 

Quase 30 anos depois de Alcindo, racismo ainda não é crime em Portugal

Parte das feridas de Cláudia curaram — enquanto outras ainda doem na mulher, como a lembrança da forma como sua filha, que testemunhou as agressões, se sentia. A menina pedia desculpas por ter esquecido o bilhete, como se o que sua mãe sofrera fosse culpa sua. Não era. 

“Uma vez a encontramos pendurada na janela, querendo se matar”, contou a cozinheira: “Eu passei por situações de racismo, vamos dizer assim, mais leves, mas não ligava muito para isso. Só depois do que aconteceu comecei a ver a volta que a minha vida deu”. 

Além de vítima, Cláudia é acusada de agressão. Diz a ação a que responde na Justiça que ela mordeu um dos agentes. A cozinheira não nega, mas afirma que foi uma tentativa desesperada de sobrevivência, porque no momento da mordida era sufocada pelo agente. 

A sua reação ocorreu num dos momentos é que o braço do homem deixou o pescoço e alcançou seu rosto. Usar os dentes foi a forma que encontrou para se desvencilhar da imobilização. 

“Eu estava lutando pela minha vida, no chão, e ninguém encostava nele porque ele estava armado. As pessoas tinham medo e eu precisava lutar”, resumiu. 

Cláudia Simões e o agente da PSP Carlos Canha são tratados pela Justiça como vítimas e réus no processo aberto sobre o caso. Canha é acusado de três crimes de ofensa à integridade física qualificada, outros três por sequestro, um por abuso de poder e outro por injúria contra Cláudia e outras duas vítimas. 

O policial afirma ser inocente e sua defesa tem refutado todas as acusações. Por outro lado, Cláudia se senta no banco dos réus por ter mordido Canha e é enquadrada no crime de ofensa à integridade física. 

Os outros dois agentes, Fernando Luís Pereira Rodrigues e João Carlos Cardoso Neto Gouveia, são acusados pelo Ministério Público de abuso de poder e por não terem agido para evitar que a mulher fosse agredida. As defesas dos agentes têm sustentado que eles são inocentes. 

“Eu simplesmente falava com alguém no telefone, mas o motorista achou que eu estava a falar com ele. E em nenhum momento ele se dirigiu a mim. Quando perguntou do passe [de ônibus], a minha filha explicou a situação e eu disse que ligaria ao meu filho para que ele levasse o cartão do transporte até a parada. Mesmo assim, o motorista desceu, viu o policial dentro de um café e foi até lá chamá-lo. Eu nem me dei conta. Quando saltei do ônibus, o policial veio pelas costas e me puxou. Desde então, percebi que sou mulher negra”, afirmou Cláudia à reportagem. 

Por vários dias, disse, evitou sair à rua por causa da repercussão do caso. Por onde passava, era apontada e repetiam que ela era “a puta que tinha fodido com a vida do bófia” —bófia é um modo informal de se referir a um policial em Portugal. 

A primeira vez que precisou ir ao supermercado não conseguiu entrar porque estavam dois policiais à porta. “Eu tremia toda, começava a chorar e não conseguia entrar. Pensei em tirar a minha vida várias vezes, mas o meu marido me acalmava”, narrou.

No dia do encontro com a reportagem da BRASIL JÁ, era visível o esforço que ela fazia para contar o que lhe aconteceu enquanto era espancada na viatura da PSP. Segundo ela, o agente Carlos Canha pedira aos outros dois colegas que fechassem os vidros e aumentassem a música. 

Era, disse Cláudia, uma forma de abafar seus gritos e os barulhos que fazia a quem estava do lado de fora. 

“Ele repetia que a puta podia gritar que não daria em nada. Falava que era só mais uma prostituta preta que estava apanhando. E que a palavra de um branco tinha mais peso do que mil de um negro. Aquilo me marcou muito”, relatou. 

Mas ela lembra que desde então tem recebido o apoio da sociedade civil e dos movimentos sociais: 

“Quando vejo as pessoas ao meu lado, fico feliz, fico bem, me sinto mais segura. Durante o percurso [quando vai às audiências na Justiça], eu começo a tremer. A [socióloga] Cristina Roldão e a [docente aposentada] Isabel Louçã, por exemplo, sempre me ligam. Além disso, os policiais estão sempre lá. Todas as vezes que eu tenho que me sentar ao lado deles, meu coração fica batendo fora do normal. Tem que ter coragem”. 

Cláudia contou que sentiu que precisava sair da sala de audiência numa das sessões do julgamento. 

“A juíza me chamou e ralhou comigo [a repreendeu], mas eu tive que sair porque perdi as forças, pois a pessoa que estava a falar de mim era a mesma que havia pisado no meu peito com a bota enquanto eu estava no chão”, acrescentou. 

“Ele [o policial] afirmava que usava as mãos para tentar ver se eu tinha pulsação, se eu continuava viva, mas fazia isso com o pé. Pisava no meu peito com muita força, por isso eu tinha muitas dores nessa região. Vê-lo aparecer ali no tribunal fingindo ser um bom policial, dizendo que também era bombeiro, me custava. A minha mãe, às vezes, acorda para orar e agradecer a Deus por Ele ter poupado a minha vida”, disse, com a voz embargada: 

“Desejo a todos que passaram por violência policial que tenham força na luta para que os culpados sejam punidos. Se eu não conseguir aqui, vou resolver de outra maneira, nem que eu tenha que ir ao Tribunal Internacional. Vou lutar até o fim”, acrescentou.

Em maio, o julgamento foi adiado para 19 de junho, esta quarta (20). Na audiência do último dia 22, acompanhada pela BRASIL JÁ, o Ministério Público pediu à Justiça a absolvição dos policiais Carlos Canha, João Gouveia e Fernando Rodrigues. 

O argumento foi o de que os policiais agiram em conformidade com suas funções e que não existem provas suficientes para condená-los pela agressão. 

No entanto, o Ministério Público pediu a condenação de Carlos Canha por agredir duas testemunhas —Ricardo Botelho e Quintino Gomes. Os dois testemunharam a ação do agente contra Cláudia Simões. A defesa dela pediu a condenação de todos os agentes envolvidos e uma indenização de duzentos mil euros por danos físicos e morais, além de 450 euros por danos patrimoniais. 

Durante a audiência, os agentes da PSP Carlos Canha, João Gouveia e Fernando Rodrigues disseram à reportagem que não fariam qualquer declaração à imprensa até o fim do processo. A PSP também não respondeu se a instituição dá algum tipo de treinamento para abordagem de mulheres e em especial mulheres negras.

Manifestação contra o racismo e a violência policial em Portugal. Crédito: Filipe Amorim, Lusa

Herança da escravatura

Casos de racismo como o que viveu Cláudia Simões não são exceções no país. Há situações, no entanto, que as vítimas não sobreviveram para contar suas histórias. Foi o que ocorreu, por exemplo, com Luis Giovani dos Santos Rodrigues, morto aos 21 anos ao ser atacado por um grupo de racistas. 

Ou também Elson Sanches, o Kuku, morto aos 14 anos após ser baleado na cabeça por um policial. Também foi morto Manuel Antônio Tavares Pereira, o Xuaty, jovem de 24 anos atingido por dois tiros de bala de borracha disparados durante uma intervenção policial. 

Há ainda Bruno Candé, morto aos 39 anos, com cinco tiros. E um dos casos de maior repercussão completa trinta anos em 2025: Alcindo Monteiro, de 27 anos, espancado até a morte por um grupo de neonazistas na Rua Garrett, região do Chiado, em Lisboa. 

O crime aconteceu na noite do dia 10 de junho de 1995, mesma data em que o país celebra o Dia de Portugal. A história foi esmiuçada pelo antropólogo Miguel Dores em documentário lançado há três anos. 

“O maior desafio foi encarar o caso Alcindo Monteiro na sua extensão e entender todas as determinações estruturais que ele tem, porque a abordagem mais óbvia, e muito comum nas artes e no cinema, é a de close-up na violência e na incapacidade de abordar as determinações estruturais dessa violência. O projeto, na verdade, também é importante pela sua capacidade de se articular com o presente e com uma agenda antirracista e antifascista em Portugal.” 

Alcindo Monteiro e todas as outras vítimas de racismo são consequências das cicatrizes deixadas pelo comércio transatlântico de humanos escravizados. 

"Um passado que remonta à questão da escravatura em Portugal e vai ainda mais longe", afirmou a socióloga, professora e militante antirracista Cristina Roldão, reconhecendo o impacto da escravização no racismo estrutural. 

Segundo Roldão, além da escravidão, Portugal tem que lidar com "todo o período colonial que vai até 1974", cuja comemoração de cinquenta anos do fim deste período ocorreu este ano. 

Mesmo após cinco décadas do fim de um regime fascista em Portugal, os desafios atuais permanecem, disse, especialmente "com a entrada da extrema-direita na Assembleia da República com muito mais força do que antes". 

Essa herança da escravatura torna difícil discutir o racismo estrutural e a dívida colonial em Portugal, diz a ativista antirracista Manuela Soares Ferrer, que presta apoio a Cláudia Simões. 

Segundo ela, uma narrativa distorcida sobre o colonialismo português, transmitida de geração em geração e reforçada nas escolas, é a raiz do problema. 

"Há uma narrativa de que o colonialismo português foi 'fofinho'. Há uma assimilação das pessoas negras com histórias de que elas não eram maltratadas, e isso é contado nas escolas aqui", disse. 

Ela ressaltou que muitas famílias portuguesas desconhecem os massacres e a quantidade de assassinato durante o período colonial e a luta anticolonial. Se estima que a população indígena no Brasil, em 1500, na chegada de Pedro Álvares Cabral, eram de 3,5 milhões de pessoas. 

Quatro séculos depois, 80% deles havia sito exterminados. "As pessoas não têm conhecimento da ignorância, da pobreza, da miséria dos povos africanos, nomeadamente em Moçambique, onde eu nasci, cresci e testemunhei como os negros viviam", disse.

Como denunciar

O cenário é desanimador, mas alguns caminhos para apresentar denúncias de racismo: a queixa pode ser feita oralmente ou por escrito em qualquer posto policial ou departamento do Ministério Público. A denúncia pode ser anônima e as autoridades têm o dever de investigar os fatos. 

O MP recomenda que a vítima “conserve ou preserve tudo o que possa ser considerado prova de crime (seja em papel ou em suporte digital), elementos esses que podem vir a ser necessários numa futura investigação”, respondeu o órgão à BRASIL JÁ.

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