Manifestação de memória do assassinato de Alcindo Monteiro Crédito: Stefani Costa, BRASIL JÁ

Manifestação de memória do assassinato de Alcindo Monteiro Crédito: Stefani Costa, BRASIL JÁ

Quase 30 anos depois de Alcindo, racismo ainda não é crime em Portugal

No período, outros assassinatos motivados por ódio racial se acumularam no país

07/06/2024 às 10:05 | 6 min de leitura
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Desde o assassinato de Alcindo Monteiro, em 10 de junho de 1995, um dos casos de maior repercussão em Portugal, pouca coisa mudou. O caso completa 30 anos ano que vem. 

Alcindo tinha 27 anos e foi espancado até a morte por um grupo de neonazistas na Rua Garrett, região do Chiado, em Lisboa. O crime aconteceu na mesma data em que o país celebra o Dia de Portugal. 

Sem que racismo seja considerado crime, os casos e as vítimas de preconceito se somam.

Desde Alcindo, foram vítimas do racismo Luis Giovani dos Santos Rodrigues, morto aos 21 anos ao ser atacado por um grupo de racistas. Também Elson Sanches, o Kuku, morto aos 14 anos após ser baleado na cabeça por um policial. 

Outro caso é de Manuel Antônio Tavares Pereira, o Xuaty, jovem de 24 anos morto ao ser atingido por dois tiros de bala de borracha disparados durante uma intervenção policial. Há ainda Bruno Candé, morto aos 39 anos, com cinco tiros.

Há, ainda, os casos em que não há morte, mas violência física e psicológica, como o de Cláudia Simões.

Bruno Candé, uma das vítimas do racismo Crédito: Filipe Amorim, Lusa (arquivo)

CLAUDIA SIMÕES: 'O retrato do racismo institucional'

A história de Alcindo Monteiro foi esmiuçada pelo antropólogo Miguel Dores em documentário lançado há três anos: 

“O maior desafio foi encarar o caso Alcindo Monteiro na sua extensão e entender todas as determinações estruturais que ele tem, porque a abordagem mais óbvia, e muito comum nas artes e no cinema, é a de close-up na violência e na incapacidade de abordar as determinações estruturais dessa violência. O projeto, na verdade, também é importante pela sua capacidade de se articular com o presente e com uma agenda antirracista e antifascista em Portugal.”

Alcindo Monteiro e todas as outras vítimas de racismo são consequências das cicatrizes deixadas pelo comércio transatlântico de humanos escravizados. 

"Um passado que remonta à questão da escravatura em Portugal e vai ainda mais longe", afirmou a socióloga, professora e militante antirracista Cristina Roldão, reconhecendo o impacto da escravização no racismo estrutural. 

Segundo Roldão, além da escravidão, Portugal tem que lidar com "todo o período colonial que vai até 1974", cuja comemoração de cinquenta anos do fim deste período ocorreu este ano. 

Mesmo após cinco décadas do fim de um regime fascista em Portugal, os desafios atuais permanecem, disse, especialmente "com a entrada da extrema-direita na Assembleia da República com muito mais força do que antes". 

Alcindo Monteiro, quase 30 anos de seu assassinato e ainda não é crime ser racista Crédito: arquivo pessoal

Essa herança da escravatura torna difícil discutir o racismo estrutural e a dívida colonial em Portugal, diz a ativista antirracista Manuela Soares Ferrer, que presta apoio a Cláudia Simões. Segundo ela, uma narrativa distorcida sobre o colonialismo português, transmitida de geração em geração e reforçada nas escolas, é a raiz do problema. 

"Há uma narrativa de que o colonialismo português foi 'fofinho'. Há uma assimilação das pessoas negras com histórias de que elas não eram maltratadas, e isso é contado nas escolas aqui", disse. 

Diz Ferrer que muitas famílias portuguesas desconhecem os massacres e a quantidade de assassinato durante o período colonial e a luta anticolonial.

Se estima que a população indígena no Brasil, em 1500, na chegada de Pedro Álvares Cabral, eram de 3,5 milhões de pessoas. Quatro séculos depois, 80% deles havia sito exterminados. 

"As pessoas não têm conhecimento da ignorância, da pobreza, da miséria dos povos africanos, nomeadamente em Moçambique, onde eu nasci, cresci e testemunhei como os negros viviam", disse.

Casos para debaixo do tapete

Em maio passado, o Ministério Público divulgou dados sobre crimes de ódio no país, indicando um aumento significativo nos últimos anos. O número de inquéritos abertos por crimes com base ou agravante de ódio disparou de 73 em 2019 para 262 em 2023, um crescimento de 258%. 

O órgão português afirma, no entanto, que os dados de 2022 em diante não são diretamente comparáveis com anos anteriores devido à expansão da coleta de dados. Ainda assim, os dados ilustram o que se passa nas ruas. 

No ano passado, por exemplo, foram 214 arquivamentos e somente cinco acusações. Os dados do Ministério Público incluem investigações de tentativas e crimes executados. 

Silvia Rodríguez Maeso, coordenadora do livro “O Estado do Racismo em Portugal”, liderou uma pesquisa no Centro de Estudos Sociais da Universidade de de Coimbra que analisou 106 processos instaurados pela Comissão pela Igualdade e Contra a Discriminação Racial entre 2006 e 2016. No período, 80% dos processos acabaram arquivados.

“Existe uma questão que é histórica em termos de como as legislações têm construído o que é racismo ou não. De forma ainda mais específica no contexto que analisamos, houve um elevado percentual de arquivamento por prescrição. Isso veio a mostrar obviamente uma negligência institucional”, afirmou Maeso.

Elson Sanches, o Kuku, vítima do ódio racial Crédito: reprodução

A condescendência é estampada na lei em forma de impunidade. Em Portugal, o racismo não é crime. Os casos são tratados com base na Lei 93/2017, que fala da “prevenção, da proibição e do combate à discriminação, em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem”. 

Os episódios de racismo são tratados como meras infrações. A advogada Marina Caboclo explica: 

“A maior parte das condutas que no Brasil estão previstas na lei de criminalização do racismo não estão criminalizadas aqui. Por exemplo, impedir o acesso a algum estabelecimento por racismo é crime no Brasil. Em Portugal, está na lei como contraordenação [infração]. É como se fosse uma contravenção. É ilegal, mas não é crime. Como uma infração de trânsito. Não gera registro criminal”.

Sem estar contemplado no Código Penal português —ao contrário do que ocorre no Brasil—, fica sempre a critério do juiz determinar se houve ou não motivação de ódio racial. Segundo Caboclo, a análise da jurisprudência dos tribunais mostra que, na prática, isto nunca acontece. 

Por isso, o movimento negro em Portugal luta há anos para que a legislação atual mude e sejam discutidas falhas que dificultam a responsabilização dos criminosos.

O único artigo que se refere especificamente a condutas discriminatórias é o 240, que, na prática, pune essencialmente a propaganda organizada com objetivo de incitar o ódio e discriminação. “Uma organização racista sair panfletando na rua é crime. Já a discriminação no acesso aos espaços públicos não é crime. O artigo 240 é isso”, acrescentou a jurista. 

Um exemplo de como o racismo acaba sendo tratado de forma branda pela lei em Portugal vem da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR). O órgão aplica multas que podem variar de 509,26 euros a 5 092,60 euros em casos de discriminação. 

E, se a CICDR identificar um crime (por exemplo, uma agressão física), o caso vai ao Ministério Público.

O MP, no entanto, frequentemente arquiva os casos e por vezes a comissão reduz os valores das multas ao analisar a situação econômica dos racistas. O resultado: uma justiça lenta e ineficaz no combate à discriminação. E essa (não) resposta institucional não é inocente, disse Maeso, a pesquisadora da Universidade de Coimbra: 

“O Estado funciona tal como foi desenhado para funcionar. Com uma ordem racial que beneficia principalmente a população identificada no âmbito da branquidade e, portanto, só com a pressão dos movimentos que isso vai funcionar”, acrescentou.

Luís Giovani dos Santos Rodrigues, vítima do racismo Crédito: arquivo pessoal

A pesquisadora afirma não haver uma agenda antirracista em termos de políticas públicas em Portugal e comparou o país com o Brasil. “Não há produção de um pensamento jurídico. O Brasil está muito à frente nessa discussão”, afirmou.

Como adiantou BRASIL no início do último mês, um estudo inédito sobre o racismo, organizado pelo SOS Racismo, mostrou o entranhamento do preconceito na sociedade portuguesa. A entidade de luta antirracista recebeu 106 relatos de discriminação ao longo de 2023. 

Após análise detalhada de 85 casos, o estudo indicou que a maioria (66%) das denúncias estão atribuídas a agressões racistas praticadas por pessoas próximas às vítimas e pela polícia.

SOS RACISMO: Comunidade e polícia concentram violência racista

Segundo Nuno Silva, dirigente da plataforma SOS Racismo, o número de denúncias recebidas pela organização não reflete a realidade do país. A percepção do representante da entidade é de que existe subnotificação das situações. 

"Os dados representam uma minoria dos casos de racismo efetivos que acontecem em Portugal. A maior parte das pessoas vítimas de racismo e xenofobia não apresenta queixa. Isso se deve, primeiro, à falta de informação. Muita gente não sabe a quem apresentar queixa", disse.

Diante disso, Nuno incentiva que as vítimas façam o registro dos crimes. "É preciso dizer isso: as pessoas têm que apresentar queixa nas entidades responsáveis, que são o Ministério Público e a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial. Não é obrigatório registrar queixa à SOS Racismo, mas sim às entidades responsáveis", acrescentou. 

Entretanto, apresentar denúncias é um processo complexo em Portugal. A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial indica existir uma “Linha de Apoio ao Migrante” que na prática não funciona. 

A reportagem tentou, sem sucesso, entrar em contato com os telefones indicados. Um dos números, o 217 115 000, na verdade, é o telefone da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (Aima) —que vive uma crise administrativa, atrasando a vida de centenas de milhares de estrangeiros.

No site da comissão, também está disponibilizado o email cicdr@acm.gov.pt. Nos dias 6 e 10 de maio, enviamos mensagem também ao cicdr.secretariado@acm.gov. pt. Novamente, sem qualquer retorno até o fechamento desta edição.

À BRASIL JÁ, Anizabela Amaral, jurista e ativista antirracista explicou que a comissão não tem poder para conduzir uma investigação própria. 

“Por um lado, não é um órgão de polícia criminal, e por outro lado também não é uma entidade independente, que possa ter a sua própria estrutura para fiscalização e investigação das denúncias que surgem.”

A jurista disse que há anos movimentos sociais cobravam mais independência para a comissão. No apagar das luzes do último governo, no início deste ano, a autonomia do órgão foi aprovada pela Assembleia da República. 

Entretanto, Anizabela disse que a regulação do órgão ficou pendente. E na atual conjuntura, com uma Assembleia mais resistente a questões sociais, ativistas antirracismo e antixenofobia estão pessimistas com a independência da comissão. 

“O problema é que a composição parlamentar é completamente diferente daquela que aprovou a independência da comissão. O partido Chega, que neste momento tem cinquenta deputados, pode bloquear determinadas decisões com muita facilidade. A comissão era uma inutilidade para o Chega. Diziam eles, inclusive, que os custos de manter essa comissão não eram necessários”, afirmou a jurista.

Como denunciar

O cenário é desanimador, mas alguns caminhos para apresentar denúncias de racismo: a queixa pode ser feita oralmente ou por escrito em qualquer posto policial ou departamento do Ministério Público. 

A denúncia pode ser anônima e as autoridades têm o dever de investigar os fatos. 

O MP recomenda que a vítima “conserve ou preserve tudo o que possa ser considerado prova de crime (seja em papel ou em suporte digital), elementos esses que podem vir a ser necessários numa futura investigação”, respondeu o órgão à BRASIL JÁ

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