Com sorriso largo —sua marca registrada—, ela recebeu a BRASIL JÁ para uma entrevista franca . A pauta: racismo Crédito: Reprodução

Com sorriso largo —sua marca registrada—, ela recebeu a BRASIL JÁ para uma entrevista franca . A pauta: racismo Crédito: Reprodução

Conceição Queiroz: ‘O racismo recreativo é uma realidade’

A jornalista, um dos rostos mais conhecidos de Portugal, diz que o racismo é uma praga no país

21/06/2024 às 15:55 | 5 min de leitura | Edição Impressa
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Conceição Queiroz é um rosto conhecido em Portugal. Jornalista premiada de tevê, atualmente ela está no ar de segunda a sábado, às 14 horas, com TVI em Cima da Hora.

Com sorriso largo —sua marca registrada—, ela recebeu a BRASIL JÁ para uma entrevista franca pouco antes de uma apresentação do cantor Djodje, ainda em maio, um dos mais aclamados cantores de Kizomba Afropop da atualidade. A pauta: racismo.

Nascida em Moçambique, ela chegou a Portugal aos 12 anos e é autora do livro "Racismo, Meio Século de Força". Também é uma das combatentes na luta antirracista em Portugal, sempre com muita elegância. "É uma praga o racismo. Então, a partir do momento em que ele for reconhecido, penso que será um primeiro o passo para tratá-lo aqui em Portugal", afirma.

Com 50 anos, a geminiana tem uma rotina cheia de compromissos e, ainda assim, consegue tempo para dançar música africana, que é seu hobby. 

“É uma espécie de fuga da rotina”, diz. Neste 2024 ela comemora 30 anos de jornalismo. Falamos sobre carreira, infância, família, Brasil, Portugal e claro, racismo.

A seguir, trechos da entrevista:

Por que escreveu "Meio Século de Força"?

Não foi uma decisão que eu tenha tomado e dito: eu vou escrever sobre racismo. Eu recebi o convite de uma editora para escrever sobre racismo. Duas semanas depois, me ligaram dizendo que não queriam mais, porque o livro não iria vender. Então eu disse: muito bem, vou continuar a escrever, alguém vai querer. 

E eu continuei. Depois, o livro foi rejeitado mais duas vezes, ou seja, três editoras rejeitaram este livro. E só na quarta tentativa eu consegui uma editora que, por acaso, também trabalha com o Brasil. E esta editora lançou o livro em Portugal.

Como que você acha que Portugal trata o tema do racismo?

Não é tratado. Enquanto o Estado português não assumir que nós temos um racismo estrutural, dificilmente vamos combater este flagelo. O racismo é uma praga. Então, a partir do momento em que ele for reconhecido, será um primeiro passo para se criarem mecanismos de combate. Enquanto continuarem a achar que não existe déficit de proteção em relação às pessoas que estão expostas —como nós, as pessoas negras, estamos— será muito difícil. 

Porque existe, de fato, um déficit de proteção que já justifica que o racismo, por exemplo, seja criminalizado. Como é que se explica que o racismo não seja crime em Portugal? A nossa realidade é diferente da realidade do Brasil. No Brasil, o processo está mais avançado. Tem uma lei incrível, que é uma das mais pesadas do mundo. Nós, aqui, não temos nada.

Admite-se a existência do bullying, mas não a do racismo.

Sim, eu acho estranho isso. Porque o racismo é algo muito sério e muito particular. Eu não gosto que se confunda com o bullying. Não deixa de ser bullying também, mas o racismo é racismo e nós estamos olhando para isso como uma estrutura de poder. Um sistema de poder que tem as desigualdades na base acima de tudo. Então, eu acho que tem de ser criminalizado. 

Que tipo de reconhecimento do passado é necessário?

Assumir publicamente que há racismo em Portugal. O pior é que ainda há aqui vários episódios do passado que continuam a ser recriados no dia a dia.

Como assim?

Quando as pessoas dizem que é mimimi, esquecem a realidade do racismo, não falam do racismo [como algo presente], mas como se fossem episódios do passado, como se não vivenciássemos no dia a dia ainda hoje.

Torna-se urgente nos posicionarmos.

Sim. Nós não temos de mendigar e pedir para viver. É quase obrigatório usarmos a nossa voz. Está nas nossas mãos fazer alguma coisa. Mas isso passa pela união, por um trabalho sério dentro da própria comunidade. Mas já se deram grandes passos, muitos graças aos movimentos negros, não se pode esquecer.

Se posicionar é um imperativo ético, né?

É muito evidente, não? É demasiado evidente. E nós não podemos ter medo de tocar na ferida. Não podemos ter medo de dizer: sim, o racismo estrutural é uma realidade; o racismo estético é uma realidade; o racismo intelectual é uma realidade; o racismo recreativo é uma realidade; o racismo institucional é uma realidade. 

As instituições reproduzem o racismo. A própria escola faz isso todos os dias. É muito fácil tirar a autoestima de uma criança negra. Não é justo.

Você viveu isso?

Eu sempre fui uma guerreira desde miúda. Se alguém me provocasse na escola, eu reagia. Não encontro outra palavra, sinceramente. Eu reagia. E diziam: tens o cabelo de repolho, tens o nariz de batata, és feia. Crescemos ouvindo estas coisas e isso afeta a autoestima. 

E depois, na hipocrisia, se diz: as crianças negras são muito acanhadas, tímidas. É preciso ir à origem de tudo isto. Não é normal tu cresceres ouvindo tantos insultos, sendo desprezado, desumanizado. Em que adulto vão se tornar estas crianças que hoje estão menosprezadas? 

Há pessoas negras que acham que em Portugal não tem racismo por viverem num recorte social privilegiado.

[Risos] É, eu lamento por essas pessoas. E aqui dou muita razão a Malcolm X [ativista antirracista e uma das maiores influências do movimento Black Power no Estados Unidos. Foi assassinado em 1965]. Na altura, ele dizia que eram os pretos de casa. E falava destas pessoas com algum desprezo. Eu costumo dizer muitas vezes que um caniche [cão pequeno] pode andar a vida inteira ao lado de um rottweiler. Ele será sempre um caniche. 

Então, as pessoas negras de espírito servil, que ainda não compreenderam isso, deveriam repensar a sua posição na estrutura social. Porque é muito chato quando tu tens duas pessoas negras, uma questiona e a outra tem esse espírito servil. O negro de espírito servil prejudica muitas vezes o negro que se posiciona. Porque as pessoas brancas racistas vão usar sempre como exemplo o negro de servil que não se posiciona, porque tu, que se posicionas, passas a ser um problema.

Os racistas se sentem insultados com o seu sucesso.

[Risos] As pessoas racistas lidam muito mal com o negro bem sucedido. Lidam muito mal com uma pessoa negra que não precisa de validação para se movimentar. Acho que somos as pessoas mais temidas. Malcolm X também dizia isso. As pessoas mais temidas, os negros mais temidos, são os que não precisam dessa validação das pessoas brancas. É assustador quando um negro atinge o mesmo patamar que uma pessoa branca. 

Quando se senta na mesma cadeira, faz exatamente o mesmo trabalho. És, de fato, um alvo a abater. Então, estas pessoas, por serem fracas intelectualmente, vão preferir um negro que na cabeça delas não lhes faz frente, que não seja uma ameaça. Porque um negro intelectual é uma ameaça, sobretudo se o trabalho tiver visibilidade. Então, tu vives com uma espada sobre a cabeça. Eu me recuso a viver assim. 

Mas, mesmo assim, dificilmente desistem desse processo de te tirarem a paz, de te subestimarem, de te descredibilizarem, de te fazer desacreditar, fazer com que te ponhas em causa. É muito grave isto. As pessoas negras muitas vezes precisam de ajuda, precisam de apoio. É um processo altamente solitário.

Diga mais sobre isto da solidão.

Eu falo por mim: é um processo muito solitário. Não é algo que eu possa dividir com alguém, com qualquer pessoa. Não é qualquer um que entende. Lembro que estava com uma amiga e uma vez fui receber um prêmio de jornalismo no Casino de Estoril. Venci nos prêmios de lusofonia na categoria de comunicação social. 

Antes de ir ao palco, ela que é negra como eu, virou e me disse: “Não vais ao palco falar do racismo”. Imagina! Como não? É uma oportunidade, meu Deus! Fui ao palco e ainda pensei em seguir o conselho da minha amiga, mas eu não consegui. Quando há uma oportunidade, tu vais falar, vais pôr o dedo na ferida. E foi o que eu fiz.

Racismo estrutural se combate com reflexão mesmo.

Muitas vezes pensamos que pelo fato de uma multinacional, uma grande empresa, ter duas ou três pessoas negras significa que não existe racismo. Existem contratações que são armadilhadas. Imagina uma empresa que vai contratar duas ou três pessoas negras para dizer que aqui existem pessoas negras. Mas em que condições é que aquelas pessoas negras estão lá? Há equidade salarial, de cargo? Estão em cargo de liderança? Há vários fatores. 

Sem falar das sutilezas nos insultos diários, o racismo recreativo, que é muito propenso no local de trabalho. É algo muito sério o racismo porque custa a vida de muita gente. E há muita gente destruída emocionalmente pelo racismo. Estou aqui [porque tenho] sangue frio. 

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