Professor Carlos Pereira lançou o livro 'Porque a Democracia Brasileira não Morreu' Crédito: Divulgação

Professor Carlos Pereira lançou o livro 'Porque a Democracia Brasileira não Morreu' Crédito: Divulgação

'Democracia brasileira é exemplo de resiliência para os Estados Unidos'

Professor de Ciência Política numa das mais tradicionais escolas de ensino superior do Brasil, a Fundação Getúlio Vargas, e na Michigan State, Carlos Pereira lançou o livro “Porque a Democracia Brasileira não Morreu"

14/08/2024 às 19:12 | 8 min de leitura
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Professor de Ciência Política numa das mais tradicionais escolas de ensino superior do Brasil, a Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, e na Michigan State, Carlos Pereira lançou em Portugal durante o mês de julho o livro “Porque a Democracia brasileira não Morreu?”. 

Ele assina a publicação ao lado de outro importante pesquisador Marcus André Melo.

Pereira tem PhD em ciência política pela New School for Social Research e foi professor visitante das universidades de Stanford, Sorbonne, Oxford, Hertie School, USP e Colby College. É pesquisador da Brookings Institution.

Nesta entrevista, Carlos Pereira defende que a democracia brasileira resistiu a um golpe político por força de suas instituições e seu sistema político, com seus pesos e contrapesos, e que, apesar da ascensão da extrema direita pelo planeta, o mundo hoje é mais resistente a tentações autoritárias como jamais esteve.

A principal tese de seu livro “Porque a democracia brasileira não morreu” contraria a narrativa do presidente Lula sobre a "reconstrução da democracia". Como enxerga a resiliência das instituições brasileiras durante o governo Bolsonaro?

A sociedade e as instituições se mostraram muito vigilantes, ativas e com capacidade de ofertar respostas a todas as iniciativas do governo [de Jair Bolsonaro] que pretendiam fragilizar as instituições e, ao mesmo tempo, concentrar poder. Essa é a principal medida de qualidade. 

Não é você evitar que o populista ameace ou faça retóricas autocráticas ou que tome ações nessa direção. O mais importante é ver se as instituições e a sociedade são capazes de resistir a essas ações, porque o cara foi eleito pela maioria da população e ele tem a legitimidade do voto.

Em um artigo publicado em fevereiro na BRASIL JÁ você adianta o argumento do livro e escreve que o ministro da Defesa do Brasil, José Mucio Monteiro, soube ler a conjuntura de que “a esquerda [brasileira] tinha horror dos militares, porque achava que eles queriam o golpe, e a direita tinha mais horror ainda, porque eles [os militares] não deram o golpe”. 

Se tanto a esquerda quanto a direita tinham visões equivocadas sobre a posição dos militares, as Forças Armadas foram importantes na manutenção da democracia brasileira? Haveria golpe se os militares quisessem?

Eu acho que os militares foram fundamentais [para a manutenção da democracia]. Quando foram chamados para essa aventura autoritária, especificamente naquela reunião em que [Jair] Bolsonaro propôs a minuta do golpe, houve o comandante do Exército [o general Marco Antônio Freire Gomes] que ameaçou dar voz de prisão a Bolsonaro se ele insistisse [na conversa]. 

Então, tem testemunha de que o chefe do Exército disse: “presidente, se o senhor continuar com essa conversa, eu vou ser obrigado a dar voz de prisão”. Os militares, nesse sentido, especialmente os do alto comando, foram importantes não enquanto indivíduo, mas enquanto instituição, para estabelecer limites às iniciativas iliberais de Bolsonaro.

Você considera o 8 de janeiro uma tentativa de golpe?

Lógico. Uma tentativa desesperada de gerar um tumulto que pudesse motivar militares resistentes ao golpe. Essas lideranças estavam na frente dos quartéis não aceitando o resultado eleitoral. Eles eram estimulados por Bolsonaro, mas foram se frustrando diante das decisões das organizações de controle que limitavam a possibilidade de que o resultado eleitoral não fosse respeitado. 

Então, o 8 de janeiro foi um ato de desespero. Mas em que pese ter sido muito traumático, a resposta das instituições aos atos foi extremamente eficaz. No dia seguinte, todos os poderes, o Supremo, o Executivo, os governadores, o Legislativo deram as mãos, e marcharam, mostrando unidade e capacidade de resiliência.

Você afirma que não houve instabilidade democrática. Como explica a resiliência das instituições nesse contexto?

A instabilidade ocorreria se as regras do jogo não tivessem sido respeitadas. Obviamente que isso [o 8 de janeiro] gerou muito estresse, as pessoas ficaram tensas vendo aquelas cenas extremamente desagradáveis. Isso gera tensão, mas em nenhum momento houve dúvida das rotinas e procedimentos democráticos. As instituições foram preservadas e não existiu erosão institucional. Existiu erosão de prédios públicos, mas não da democracia.

Quais os principais elementos responsáveis pela resiliência das instituições brasileiras?

Essa pergunta é muito legal. A principal fonte de resiliência, normalmente, é institucional. O próprio desenho institucional do sistema político brasileiro é formado por elementos consociativos. Diferentemente, por exemplo, da Inglaterra, a gente tem o sistema político brasileiro em que a grande maioria dos elementos institucionais são majoritários, ou seja, favorecem que a preferência, que ganhou a maioria no legislativo, seja traduzida no governo, e essa maioria consolida um projeto de poder majoritário. 

O sistema político brasileiro é muito fragmentado não só do ponto de vista partidário, com muitos partidos, mas também com várias instituições independentes de controle. Nós temos representação proporcional com lista aberta, multipartidarismo, independência do judiciário, independência do Ministério Público, federalismo, governadores, constituições estaduais, são vários atores políticos com capacidade potencial para vetar iniciativas que não concordem, o que dificulta a vida de qualquer populista. 

Então, se um cara quer aprovar iniciativas democráticas, é difícil, mas se o cara quiser aprovar iniciativas não-democráticas, é ainda mais difícil, porque você tem que construir consensos com atores que não concordam. Então, por um lado, esse sistema não é eficiente, porque ele não gera soluções rápidas, mas ele gera um escudo protetor contra iniciativas que estejam fora do jogo.

Jair Bolsonaro nunca reconheceu a vitória do presidente Lula. Não acha que há impacto na percepção dos eleitores, no sentido de que tenham menos confiança nas instituições democráticas?

De fato, o não reconhecimento explícito do ex-presidente Bolsonaro gera sentimento de descrença, ou mesmo de que ele está se insubordinando ao resultado eleitoral. Mas, ao fim e ao cabo, o que é mais importante para a manutenção da democracia é que o vencedor leva. O reconhecimento gera civilidade democrática. O não reconhecimento prejudica a civilidade, mas não prejudica necessariamente a democracia. 

É ruim que o perdedor não reconheça a vitória do adversário, demonstra falta de civilidade, de educação cívica, de respeito às regras, mas o mais importante é perceber que quem está governando foi quem venceu.

Bolsonaro, então, não tem civilidade democrática?

Ele apresentou uma dificuldade enorme ao não reconhecer prontamente a sua derrota, em que pese o seu partido, o Partido Liberal, reconheceu. Bolsonaro assumiu uma postura, como a gente chama no futebol, de dono da bola. Levou a bola, achando que o jogo iria acabar, mas a democracia brasileira tem muitas bolas. E deixou o Bolsonaro jogando sozinho.

Em 1964, as elites econômicas estiveram ao lado do golpe. Qual o papel das elites econômicas na manutenção da democracia em 2023?

Elas estavam majoritariamente comprometidas com a democracia. Um pequeníssimo grupo de empresários estava seduzido por um projeto não democrático. A economia brasileira é extremamente diversificada, complexa. Não existe nenhum setor dominante. 

A gente tem fortes e diversos setores. Há um grande parque industrial, um forte agronegócio, um pujante segmento de serviços. Outros países, por exemplo, que possuem democracias mais vulneráveis, como a Venezuela, o México, têm a economia depende basicamente de uma commodity específica. Noventa por cento do PIB da Venezuela vem da produção de petróleo. 

No Brasil, não. Isso torna a vida de um populista muito mais difícil, porque ele vai ter que convencer diversos setores sobre os benefícios de seu projeto autoritário.

 Então, a diversificação do mercado brasileiro está a favor da política?

 Está a favor da política e de soluções democráticas, porque é muito mais arriscado para um empresário viver sob as mudanças de humor de um ditador. É muito mais seguro para um empresário contar com mecanismos de proteção das próprias regras democráticas, com um judiciário independente, a que ele possa recorrer quando se sente lesado, com estruturas competitivas do mercado. 

Quer dizer, quanto mais diversificado é o conjunto empresarial, mais comprometido com a democracia ele tende a ser.

 Insisto na comparação com 1964. Naquele ano, os Estados Unidos deram suporte ao golpe no Brasil. Se em 2023 houvesse suporte dos Estados Unidos, o golpe teria ocorrido?

 Não. Nós estamos vivendo em outro contexto. Em 1964, a gente vivia um clima de Guerra Fria, do risco iminente de saídas políticas pelo socialismo. Tinha-se, havia poucos anos, uma revolução em Cuba. Então, havia um risco iminente. Agora nós temos um contexto completamente diferente no mundo. O capitalismo venceu. 

Então não tem cabimento imaginar que a falta de apoio internacional geraria algum risco numa democracia tão sofisticada como é a brasileira. Obviamente que o apoio internacional foi importante, mas não foi determinante.

 Os Estados Unidos enviaram ao Brasil, entre 2021 e 2022, funcionários de alto nível, incluindo os das Forças Armadas, para reforçar que não haveria apoio a movimentos que não respeitassem o resultado das urnas. Foi um movimento especificamente do governo Joe Biden. Fosse Donald Trump o presidente norte-americano, a história poderia ter sido outra?

 Também acho que não. O Brasil é um país importante para o mundo. É a décima economia mundial e independe das suas relações com países como os Estados Unidos. Eu acredito que, mesmo que tivéssemos na presidência dos Estados Unidos Donald Trump ou qualquer outro presidente que fosse simpático a Bolsonaro o impacto de alguma ação seria reduzido.

 Você não acredita que a pressão dos Estados Unidos contra o golpe foi importante?

 Eu acho que a pressão ajudou, como a da França, como a da Inglaterra, como a da Argentina. Todos esses elementos foram importantes. Mas o que eu enfatizo aqui com você é que os elementos institucionais do próprio desenho político brasileiro eram suficientes para que não prevalecessem alternativas não democráticas. Eu não estou tentando dizer que esses outros elementos internacionais não importaram. Eu estou dizendo é que existem outros pontos mais relevantes.

 Quais são as expectativas para a democracia brasileira nos próximos anos?

 Eu acho que tem retornado ao business as usual, à rotina democrática. Quando a sociedade brasileira e suas instituições perceberem que Jair Bolsonaro é carta fora do baralho vão se preocupar menos com questões da manutenção da democracia e começarão a alocar mais energia em outras questões.

 Bolsonaro está inelegível para 2026, mas sua influência política é carta fora do baralho?

 Ele ainda é muito popular. Ele conseguiu se conectar com uma parcela importante do eleitorado brasileiro. Bolsonaro deu orgulho de novo para essa direita [saudosa da ditadura]. Mas as instituições estão sendo capazes de impor limites. Ele foi banido do jogo eleitoral por oito anos e, muito provavelmente, ele enfrentará problemas judiciais sérios. Ele provavelmente vai enfrentar condenações [criminais]. 

Há cada vez mais evidências do envolvimento direto do ex-presidente na preparação do 8 de janeiro. Eu acho que Bolsonaro dificilmente escapará de uma punição. Mas é importante que seja dado o direito de defesa e que o processo siga a sua normalidade, sem açodamento.

Mas outras pessoas do mesmo campo ideológico, a extrema direita, permanecem no jogo. Não há o que se preocupar em relação a democracia?

Essas pessoas fazem parte do jogo democrático. Se elas quiserem concorrer, e se a sociedade brasileira assim preferir, elas vão tomar o poder. Faz parte. A democracia nem sempre seleciona as minhas preferências. E nem sempre as minhas preferências são as melhores. O jogo democrático pressupõe incerteza, pressupõe que vencedores não necessariamente pensem como eu, pensem de acordo com a minha visão de mundo. 

E não é porque alguém ou alguma alternativa compartilhe dos valores conservadores ou mesmo retrógrados do ex-presidente Jair Bolsonaro que essa pessoa não tenha legitimidade, se ela vier a ser eleita. Então, se qualquer político do campo político dele for eleito, a democracia brasileira vai lidar com isso da melhor forma possível.

A sua visão sobre a democracia brasileira não correr riscos é muito otimista.

Não tenho a mínima dúvida. Não só eu venho dizendo isso. Autores que até bem pouco tempo eram muito pessimistas com relação à democracia brasileira reviram suas opiniões. O Steve Levitsky, autor do livro “Como as Democracias Morrem” escreveu em seu último artigo no Journal of Democracy que exagerou. 

Ele cita textualmente o Brasil como um exemplo virtuoso de lidar com conflitos extremos. Inclusive, ele diz que o Brasil estaria mais bem capacitado para lidar com esse problema que os Estados Unidos.

Como você vê a ascensão da extrema direita na Europa e em Portugal, especificamente?

Brasil e Portugal são sistemas políticos diferentes. Portugal é um sistema semipresidencialista, em que, normalmente, é muito difícil que um partido sozinho consiga a maioria de cadeiras no parlamento. O governo de coalizão obriga, necessariamente, o primeiro-ministro, que vai ser o chefe do governo, a fazer concessões a outras forças políticas. Isso, por definição, já minora o risco. 

Então, por mais que a extrema direita tenha se tornado, ou venha a se tornando mais competitiva em Portugal e, em alguma medida, em outros países europeus, é importante perceber que tem havido alternância de poder. O caso português é um bom exemplo.

O Chega, que foi considerado um dos vitoriosos para o parlamento português, não teve a mesma performance para o parlamento europeu, o que mostra que a sociedade portuguesa está atenta.

Vê como duradoura a onda extremista e nacionalista na Europa?

Esse crescimento não é uniforme em todos os países. Tem países em que a direita perdeu. Agora, inclusive, na Inglaterra. Os trabalhistas voltaram para o poder. A gente não pode interpretar esse jogo como linear, como se a gente estivesse inexoravelmente caminhando a uma direção. A democracia no mundo está muito fortalecida. Na realidade, os pouquíssimos casos de retrocesso democrático ocorreram em situações muito específicas. 

A democracia tem sido resiliente em todo o mundo. Os analistas têm tendido a superestimar alguns exemplos como Turquia, Hungria, Polônia, Venezuela, Nicarágua, Bolívia. São sempre os mesmos exemplos. São países que não têm uma tradição longa de regimes democráticos. São países que, na sua grande maioria, se redemocratizaram muito recentemente e que foram ditaduras por muitos anos.

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