Cigarro de maconha. Crédito: Divulgação

Cigarro de maconha. Crédito: Divulgação

Descriminalização da maconha e a experiência portuguesa

Ministro da Justiça brasileiro veio a Lisboa ver como funciona o programa lusitano

22/07/2024 às 05:34 | 4 min de leitura
Publicidade Banner do empreendimento - Maraey

A retomada do debate sobre a descriminalização da maconha no Brasil, puxada pela decisão do Supremo Tribunal Federal de fixar o peso de quarenta gramas para marcar a diferença entre usuário e traficante, fez o governo brasileiro vir a Portugal analisar a experiência antidrogas do país. 

Aqui, é possível a aquisição, posse e consumo de pequenas quantidades de substâncias e, em caso de abordagem policial, o registro é de uma infração administrativa.

Em Portugal, são permitidos 25 gramas de maconha; cinco, de haxixe; dois, de cocaína; ou um grama de heroína ou anfetaminas. 

Funciona assim: em vez de enfrentar processos criminais, o usuário é encaminhado para uma Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência, que avalia cada caso e podem recomendar tratamento, serviço social ou outros tipos de apoio.

A estratégia portuguesa foi adotada após a grave epidemia de heroína ocorrida no final dos anos de 1990, quando se contou cerca de 100 mil dependentes, dos quais metade usava a droga por meio de injeção, contribuindo para a disseminação do HIV e da hepatite C.

A gravidade da situação levou o governo a formar uma equipe de profissionais de saúde para desenvolver um plano nacional de combate ao problema. O resultado foi a recomendação de descriminalizar o consumo de todas as drogas.

A sugestão foi transformada em um projeto de lei, aprovado pela Assembleia da República nos anos 2000 e implementado a partir de 2001. Ao longo dos anos, essa política mostrou resultados significativos.

Um relatório do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (Sicad) de janeiro deste ano revelou que o número de usuários de heroína caiu para cerca de 15 mil, uma redução de 85% desde 2001.

Além disso, a política é elogiada por sua eficácia na redução de overdoses, infecções por HIV e crimes relacionados às drogas.

“Portugal tem um programa exemplar no sentido da descriminalização das drogas e do tratamento dos usuários. Faz uma distinção clara entre traficante, que é objeto de persecução penal, e usuário, que recebe tratamento e assistência social”, afirmou à BRASIL JÁ o ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil, Ricardo Lewandowski, que esteve em Lisboa no início de julho.

Ricardo Lewandowski Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil. Crédito: Jamile Ferraris / MJSP

A declaração foi feita após uma reunião com o médico João Augusto Castel-Branco Goulão, considerado um dos principais idealizadores do modelo português. Lewandowski elogiou o programa, destacando a abordagem humanitária e centrada na saúde.

“Uma política pública que diminuiu, por exemplo, os crimes relacionados ao uso de drogas e as doenças ligadas ao seu uso, como hepatite, tuberculose, outras doenças e overdose. Me parece que é um programa que talvez possa, eventualmente, inspirar outros países e especialmente o Brasil, que está neste momento discutindo a questão”, acrescentou.

No mesmo dia da reunião, do outro lado do Oceano Atlântico, o STF enviava —como cumprimento de formalidades— ao Congresso Nacional a decisão que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal, estabelecendo um limite de quarenta gramas para diferenciar usuários de traficantes.

A decisão significa que, a partir de agora, não é mais considerado crime adquirir, guardar, transportar ou ter a quantidade discriminada de maconha para consumo pessoal no Brasil. Continua proibido fumar a droga em locais públicos, mas as sanções agora são de natureza administrativa, não criminal —como em Portugal.

O julgamento focou na constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que prevê penas alternativas como serviços à comunidade, advertência e curso educativo para usuários. Antes dessa decisão, os usuários enfrentavam inquéritos policiais e processos judiciais que buscavam condenações penais.

A decisão não impede abordagens policiais ou apreensões, mas não permite prisão em flagrante para usuários até a quantidade máxima estabelecida.

Atualmente, João Goulão é presidente do Conselho Diretivo do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências, órgão que recebe usuários flagrados com pequenas quantidades de substâncias. Goulão afirmou à reportagem que o ex-ministro do STF discutiu em detalhes a política de drogas do país.

“Gostaria de ressaltar o interesse e o saber que o ministro evidenciou. Ele tinha perguntas muito bem direcionadas, de quem realmente quer aprender com a experiência de outros. Ficamos contentes em compartilhar o que fizemos”, disse Goulão.

João Goulão é presidente do Conselho Diretivo do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências. Crédito: Divulgação

A política de antidrogas de Portugal não se limita à descriminalização, como ainda tem sido feito no Brasil. Ela integra um pacote abrangente de políticas que incluem tratamento, prevenção, redução de danos e reinserção social.

“Gostaria muito de ver essa experiência replicada em outros países, nomeadamente em um país irmão como o Brasil”, afirmou Goulão.

Ele enfatizou que a descriminalização, por si só, não tem o mesmo impacto sem o suporte de políticas abrangentes que abordem todos os aspectos do problema das drogas.

Ao enviar para os congressistas brasileiros a decisão tomada sobre a descriminalização da maconha, o STF sugeriu ao Executivo a criação de campanhas de prevenção ao uso de drogas e a aplicação de medidas de apoio a usuários.

Em entrevista à BRASIL JÁ em Lisboa, Lewandowski afirmou que o foco do governo brasileiro é realizar ações do ponto de vista educacional, além do desenvolvimento de um programa nacional de prevenção às drogas nas escolas.

A percepção de Lewandowski sobre a xenofobia em Portugal: 'Continuamos muito bem-vindos'

“No poder Executivo, estamos desenvolvendo um programa nacional de prevenção às drogas nas escolas”, afirmou, acrescentando: “Neste momento, estamos em Portugal, aprendemos muito com esse grande especialista que é o doutor João Goulão, respeitado no mundo todo, uma autoridade, para estudarmos a experiência de Portugal, que foi muito exitosa e está sendo adotada, copiada por outras nações no mundo.”

No mês passado, o ministro da Justiça e Segurança Pública assinou os primeiros acordos de cooperação do chamado Programa Cria, que, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz, quer prevenir o uso de drogas por crianças e adolescentes e o aliciamento de comunidades por organizações criminosas.

Escolas públicas dos estados do Ceará e do Piauí e as cidades paulistas de Araraquara, Cordeirópolis, além da capital paulista, serão os primeiros locais onde o programa será implementado. A meta, segundo o ministro, é que, até 2026, o projeto esteja em 163 municípios prioritários.

Entre as estratégias do Programa Cria, segundo a pasta, estão o desenvolvimento de habilidades artística, esportiva e profissional, o fortalecimento de vínculos sociais e novos parâmetros de acolhimento dos estudantes das escolas públicas dos estados e municípios que aderirem à iniciativa.

Por enquanto, o ministro não aponta outras medidas para atuarem em conjunto, a exemplo do que faz Portugal, que serve de exemplo de como a descriminalização, combinada a programas de saúde pública abrangentes, pode resultar em benefícios significativos para a sociedade.

“É uma experiência que podemos considerar globalmente bem-sucedida, uma vez que respondeu a uma diminuição da importância dos problemas relacionados com as drogas na sociedade portuguesa”, afirmou Goulão.

Jornalismo verdadeiramente brasileiro dedicado aos brasileiros mundo afora


Os assinantes e os leitores da BRASIL JÁ são a força que mantém vivo o único veículo brasileiro de jornalismo profissional na Europa, feito por brasileiros para brasileiros e demais falantes de língua portuguesa.


Em tempos de desinformação e crescimento da xenofobia no continente europeu, a BRASIL JÁ se mantém firme, contribuindo para as democracias, o fortalecimento dos direitos humanos e para a promoção da diversidade cultural e de opinião.


Seja você um financiador do nosso trabalho. Assine a BRASIL JÁ.


Ao apoiar a BRASIL JÁ, você contribui para que vozes silenciadas sejam ouvidas, imigrantes tenham acesso pleno à cidadania e diferentes visões de mundo sejam evidenciadas.


Além disso, o assinante da BRASIL JÁ recebe a revista todo mês no conforto de sua casa em Portugal, tem acesso a conteúdos exclusivos no site e convites para eventos, além de outros mimos e presentes.


A entrega da edição impressa é exclusiva para moradas em Portugal, mas o conteúdo digital está disponível em todo o mundo e em língua portuguesa.


Apoie a BRASIL JÁ

Últimas Postagens