12/11/2024 às 03:58
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O Nordeste brasileiro sempre desempenhou um papel central na história do Brasil, desde os primeiros registros de colonização, quando a Coroa portuguesa encontrou no "ouro branco" da cana-de-açúcar sua primeira fonte de riqueza. Essa prosperidade, no entanto, nunca foi compartilhada com a população local, um cenário que se repetiu no tempo.
Neste momento, as atenções do Brasil e do mundo se voltam para o Nordeste. De novo. O solo vasto, a abundância de ventos e o sol o ano inteiro reúnem as condições para a chamada transição energética, atraindo os olhares de empresas e investidores.
A questão é se, a exemplo dos 500 anos anteriores, mais uma vez poucos ganharão enquanto perde a maioria não mais silenciosa. É um falso dilema. Sustentabilidade e desenvolvimento social não precisam ser antagonistas.
“Precisamos de um planejamento nacionalizado dos parques de energia eólica e solar. Isso permitiria que o desenvolvimento fosse mais equilibrado e direcionado para os interesses das comunidades”, afirma o professor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, Fernando Joaquim.
A BRASIL JÁ decidiu começar a contar esta história pelo olhar de Roselita Vitor, moradora do assentamento de Queimadas, em Remígio, na Paraíba, um dos nove estados nordestinos.
“A forma como essas empresas de energia têm chegado aqui é extremamente violenta e arbitrária”, ela relata, com calma e eloquente voz de quem coordena o Polo da Borborema, um coletivo que envolve treze municípios e 150 associações comunitárias no semiárido brasileiro.
A região abrange oito estados do nordeste e entra pelo Norte de Minas Gerais e é justamente o de maior interesse das empresas de energia eólica e solar que veem no Brasil um filão de investimento.
Roselita é enfática ao dizer que é necessário se “pensar numa transição energética que polua menos e que viole menos os direitos das pessoas”. O Brasil tem um expressivo consumo de fontes renováveis de energia, ainda que o percentual maior ainda seja de fontes não-renováveis, como petróleo e gás natural.
Segundo estudos de 2023 do Energy Institute, quase metade da energia consumida (49%) é oriunda de fontes renováveis. Comparado a outros países, o Brasil aparece muito bem-posicionado para liderar as discussões a respeito.
Ao longo de 2021, o último com dados, o total de emissões antrópicas de carbono associadas à matriz energética para cada brasileiro foi o equivalente a 14,5% do que emitiu um norte-americano, ou 36% do que produziu um cidadão europeu da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE, e, ainda, 26,2% do que um cidadão chinês lançou para atmosfera. Os dados são da Agência Internacional de Energia, IEA em inglês.
Quando se leva em consideração o impacto da economia na emissão de carbono, ainda segundo dados da IEA, o que o país mandou para a atmosfera equivale a 34% do que mandou a economia chinesa, 66% do que poluiu a economia americana e praticamente o mesmo nível da economia dos países europeus da OCDE.
É com essa credencial que o Brasil receberá seus pares para a Conferência do Clima, a COP30, em 2025 em Belém, no Pará.
Roselita e seus vizinhos do semiárido, embora saibam da importância da transição energética para garantir a vida no planeta, por outro lado se preocupam porque entendem que falta transparência ao processo de investimento e exploração do local onde vivem.
"Em várias comunidades onde os grandes empreendimentos de energia [eólica e solar] estão instalados há dez ou 18 anos, as famílias estão adoecendo. Comunidades inteiras estão com problemas de saúde, com depressão, causados pelo ruído constante dos aerogeradores”
Ela chama a atenção para os impactos ambientais, como o aumento do desmatamento da caatinga, bioma típico da região —uma contradição: quer-se preservar o clima do planeta destruindo um bioma com impacto no planeta.
No ano passado, foi registrado ao menos um episódio de desmatamento em 1 047 (87%) municípios dos 1 209 que integram o semiárido, de acordo com o MapBiomas. Mais de 4 302 hectares foram desmatados para empreendimentos de, pasme!, energia renovável (eólica e solar).
“Há uma contradição evidente nesse debate. Embora essas energias sejam consideradas renováveis, elas não são limpas quando violam os direitos das pessoas. As empresas, em grande parte estrangeiras, chegam com muita força e respaldo do governo. As famílias cedem suas propriedades para a produção de energia, mas o que fica para elas é a pobreza”, descreve Roselita, que também lamenta o fato de que “famílias agricultoras estão sendo forçadas a deixar o campo porque os parques e as usinas desorganizam totalmente o equilíbrio ambiental nos territórios”.
Um dos impactos é justamente a remoção da caatinga. Para a instalação desses empreendimentos, o solo precisa estar completamente sem vegetação. Além disso, se aplica um veneno para que o solo permaneça nu.
No contexto de aumento de temperaturas globais, a remoção dessa área verde agrava a transformação do semiárido em deserto.
Direitos de energia
Fernando Joaquim, da Universidade Federal da Paraíba e que abre a reportagem, é integrante do projeto Dom Quixote. Ele estuda direitos de energia e, segundo diz, a maioria dos documentos firmados com essas empresas são de longo prazo, variando entre trinta e 40 anos, sendo também extensíveis aos herdeiros.
O que aparentemente poderia parecer um negócio vantajoso, como uma espécie de fundo extra ou aposentadoria para os proprietários, esbarra no problema da baixa remuneração.
Esses contratos são celebrados “com cláusulas de irrevogabilidade e acompanhados de pagamentos módicos, como 0,85%, às vezes 1% ou 1,5% sobre a aferição dos lucros dos aerogeradores”, aponta o professor.
“Na verdade, essas empresas, com contratos de prazos longos e extensivos aos herdeiros, praticamente controlam os direitos de exploração da terra”. Como tem sido feito, o impacto na vida dos trabalhadores do campo ocorre em vários níveis.
Para instalação de aerogeradores e placas solares é necessário, por exemplo, uma distância segura para a manutenção da energia gerada.
Isso tem efeitos no entorno, já que grande parte da propriedade arrendada pode ficar comprometida, tirando o sustento e característica daqueles que vivem da atividade rural. Mais: o barulho das turbinas dos parques eólicos afeta a saúde dos vizinhos e dos animais locais.
“Em Pernambuco, a distância entre os aerogeradores e as residências está sendo aumentada para algo entre quatrocentos e quinhentos metros, mas estudos, como os realizados pela Universidade de Coimbra, apontam que a distância ideal seria de um a dois quilômetros. Isso leva a uma percepção dos produtores rurais de queda na produtividade, já que os animais são expostos constantemente a esses barulhos, o que pode reduzir sua produtividade”, avalia Joaquim.
O pontapé inicial para o grupo de pesquisa que o professor integra, conta ele, foi o trabalho da também professora Mariana Traldi. Em sua tese, ela investiga como os contratos entre produtores rurais e as empresas de energia eólica e solar são assinados.
Seu trabalho dá detalhes sobre as cláusulas contratuais, conseguidas com dificuldade, uma vez que são protegidas por sigilo.
Aqueles poucos que escolhem não assinar disponibilizaram as minutas de contrato para o material da professora. A BRASIL JÁ leu alguns deles. “A falta de uma legislação prévia permitiu que as empresas agissem de maneira indiscriminada, o que trouxe grandes prejuízos. Algumas famílias relatam que é como conviver com o som de uma turbina de avião que nunca desliga”, explicou a pesquisadora.
“O Brasil não possui uma legislação específica para a produção de energia eólica, então a legislação vigente é aplicada por analogia. Diferente das grandes hidrelétricas, para as quais o Estado desapropria terras, no caso da energia eólica, não há desapropriação, mas sim uma relação entre privados.”
Segundo Traldi, os representantes das empresas dizem que as famílias continuarão podendo produzir e circular em suas propriedades, mas não explicam claramente as restrições antes da assinatura dos contratos. Entre elas, o fato de o produtor rural não poder plantar em áreas por onde passa cabeamento subterrâneo. No fim, quem avalia o que pode e o que não pode é a própria empresa.
O que dizem os governos
A BRASIL JÁ quis saber dos governos locais como acompanham a ocupação do solo, a exploração da energia em seus territórios e as negociações das empresas e os produtores rurais.
O governo da Paraíba, único que respondeu até o fechamento da edição, afirmou que mantém “diálogo constante com a população, movimentos sociais, órgãos como o Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, Defensoria Pública da União, e principalmente com as empresas, exigindo soluções para os problemas identificados e mais investimentos sociais nas comunidades”.
A administração citou projetos de preservação ambiental da caatinga no estado, contradizendo os dados divulgados no MapBiomas.
“O projeto Paraíba Rural Sustentável, com um investimento de 80 milhões de dólares, visa melhorar o acesso à água, investir em práticas sustentáveis, como sistemas agroflorestais que protegem o solo e a biodiversidade, além de reduzir os impactos das mudanças climáticas e abrir novos mercados para os produtos da agricultura familiar”, afirmou o governo da Paraíba.
Outro projeto mencionado na nota é o Procase 2, que segundo o governo “contará com um investimento de 105 milhões de dólares e beneficiará cinquenta mil famílias nos 223 municípios da Paraíba”. Para isso, o Executivo local quer, entre outras medidas, aperfeiçoar e adaptar sistemas produtivos da agricultura familiar, além de fortalecer sistemas de oferta e uso da água para produção agrícola e não agrícola.
Ainda segundo o governo, em breve, sem dizer quando, será iniciado o projeto Sertão Vivo, que pretende beneficiar “38 mil famílias de 145 municípios com políticas de regularização ambiental, recuperação de áreas degradadas, implantação de sistemas agroflorestais, construção de cisternas, fomento à economia solidária e ao Programa de Aquisições de Alimentos.
O investimento será de 150 milhões de reais [cerca de 25, provenientes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida)]”.
A Superintendência de Administração do Meio Ambiente informou à reportagem que acompanha a crescente presença destes empreendimentos de energia de fontes renováveis na Paraíba. “Foi notável a intensificação desta atividade a partir de 2021, quando aconteceu aumento na demanda por este tipo de licenciamento.”
Neste momento, segundo o órgão, para a instalação de um novo empreendimento é exigida “a apresentação de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental”.
Na Paraíba, a apreciação deste estudo passa obrigatoriamente por uma etapa de audiência pública realizada no município que receberá o empreendimento. A partir do que for apresentado no estudo de impacto ambiental e daquilo que for observado nas vistorias, o Conselho Estadual de Política Ambiental decide a concessão ou não da licença.
Partindo do consenso de que uma transição energética é necessária, a pergunta é: como fazer isso de forma justa? Na avaliação do professor Fernando Joaquim, é necessário primeiro mudar o marco regulatório energético.
“Precisamos de um planejamento nacionalizado dos parques de energia eólica e solar. Isso significa permitir a presença de empresas estrangeiras, mas sob um planejamento estatal de zoneamento energético, além do controle comunitário ou, pelo menos, da participação social das comunidades. Isso permitiria que o desenvolvimento fosse mais equilibrado e direcionado para os interesses das comunidades”, observa ele.
Roselita, a personagem cuja visão abre a reportagem, aponta para a força dos movimentos populares como meio de pressão sobre órgãos competentes.
Foi nesse contexto que no fim de agosto foi aprovada pelo Conselho Nacional de Políticas Energéticas, ligado ao Ministério de Minas e Energia, a resolução número cinco, instituindo a Política Nacional de Transição Energética com o objetivo de orientar os esforços nacionais para a transformação da matriz energética brasileira em uma estrutura de baixa emissão de carbono, contribuindo para o alcance da neutralidade das emissões líquidas de gases de efeito estufa.
São os dois instrumentos para execução da política nacional: o Plano Nacional de Transição Energética e o Fórum Nacional de Transição Energética, composto por representantes governamentais, da sociedade civil e do setor produtivo.
São os primeiros passos, talvez, para a mudança de método na exploração dos recursos nordestinos, colocando o Brasil no papel central deste debate ao mesmo tempo em que se compartilha a riqueza entre todos.
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