Indígenas visitam manto Tupinambá no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Crédito: Lucas Landau, Ministério dos Povos Indígenas

Indígenas visitam manto Tupinambá no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Crédito: Lucas Landau, Ministério dos Povos Indígenas

Exclusivo

Os bastidores da volta do manto tupinambá

Telegramas obtidos pela BRASIL JÁ revelam preocupação com possível alvoroço na sociedade dinamarquesa

03/11/2024 às 12:00 | 5 min de leitura
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Uma torre de fumaça e fuligem se ergueu centenas de metros acima do chão em direção ao céu da Zona Norte do Rio de Janeiro. Era 4 de setembro de 2018. 

Naquele dia, ardera em chamas o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, e, com ele, o acervo de mais de 20 milhões de peças históricas de valor incalculável. 

Tudo fora reduzido a cinzas num incêndio de grandes proporções causado por um curto-circuito num ar-condicionado. Definir o desastre como negligência ou ato criminoso é pouco diante do que se perdeu da história do Brasil dentro da instituição, fundada em 6 de junho de 1818 por dom João 6º. 

A pretexto de ajudar na reconstrução de seu acervo, o embaixador do Brasil em Copenhague, Rodrigo de Azeredo Santos, obteve uma vitória sobre a negociação que se desenrolava havia 24 anos: a devolução de um dos poucos mantos tupinambás existentes no mundo e que até julho estavam todos espalhados pela Europa. 

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A dor da perda de parte de itens históricos do museu ao menos serviu para reaver o item histórico, segundo revela a troca de telegramas a que a BRASIL JÁ teve acesso por meio da Lei de Acesso à Informação e conta os bastidores do que na Dinamarca se chama de doação, mas que, aqui, chamaremos de devolução do artefato sagrado. 

O manto tupinambá é um artefato religioso do século 16 e tem 1,8 metro de comprimento. É feito em malha vegetal, costurada e coberta por 4 mil penas de guará —uma das aves mais belas e raras da fauna brasileira. 

Era usado por sacerdotes durante cerimônias especiais de um grupo indígena cuja população chegava a 1 milhão de indivíduos espalhados pela costa brasileira. 

Foram saqueados e mortos quase todos da etnia ao longo do processo de colonização do território brasileiro. Para os tupinambás, quem veste o manto se transmuta em pássaro num sinal de divindade. 

Indígena reza durante visita no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Crédito: Lucas Landau, Ministério dos Povos Indígenas

Segundo a Universidade Federal do Rio de Janeiro, iguais ao manto que foi devolvido há outros três. Mas há registros de outros sete espalhados pelo mundo —e, em vez de mundo, o leitor pode entender Europa. 

Itália, Suíça, Bélgica e França, além da Dinamarca, são onde permanecem outros exemplares do objeto. Há algumas teorias sobre como foi parar na Dinamarca o manto devolvido este ano ao Brasil. 

A mais forte delas, narram os telegramas obtidos pela reportagem e endossado pelo Museu Nacional em Copenhague, é de que, ao encerrar o período de dominação de territórios no Nordeste do Brasil, Maurício de Nassau, colonizador holandês que temporariamente tomou dos portugueses o controle da região, retornou à Europa com o artefato e presenteara seu primo, o rei dinamarquês Frederico 3º. 

Antes de ser devolvido ao Brasil, a peça estava em exibição no salão de artes produzidas na missão artística que compusera a comitiva de Nassau. Entre os bens exibidos com o manto, estavam os óleos em tela de autoria de Albert Eckhout “Mulher Tupinambá”, de 1641, e “Homem Tupinambá”, de 1643. 

As pinturas, sim, produzidas pelos holandeses; o manto, não. Segundo os telegramas, poucos meses depois de chegar à Dinamarca, ainda em 2021, Azeredo Santos visitou o Museu Nacional em Copenhague, onde são exibidos de maneira permanente artefatos históricos brasileiros. 

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Foi lá que ele viu o manto tupinambá. Sua ideia foi conversar com o diretor do museu, Rane Willerslev, para, nas palavras do diplomata, “testar a ideia de retorno da peça ao Brasil”. Partiu de Azeredo Santos a sugestão de devolver o manto como forma de “doação” ao Museu Nacional do Brasil. 

Ele queria evitar melindres europeus quanto ao seu passado colonial. Escreveu o embaixador em um dos telegramas: “Embora a Dinamarca tenha histórico positivo no tema da repatriação [...], [a] participação dinamarquesa em atividades coloniais ainda é sensível para a sociedade local; de modo, para a concretização da transferência do manto tupinambá para o Brasil, foi importante evitar termos que pudessem despertar sensibilidades”. 

Depois disso, o embaixador apresentou a Willerslev o diretor do Museu Nacional brasileiro, o professor Alexandre Kellner. Sob o argumento do bom ato de doação ao Brasil, o acordo foi selado com um comunicado à imprensa dinamarquesa em 26 de junho, um dia antes de a informação ser compartilhada com as embaixadas do Brasil e o Ministério das Relações Exteriores. 

A notícia cruzou o Atlântico e, no dia seguinte, a repatriação repercutiu na imprensa brasileira. O antropólogo e então curador do Museu Nacional, João Pacheco de Oliveira, em declaração à Agência Brasil, disse à época que “nunca houve uma repatriação de um objeto etnográfico dos indígenas brasileiros dessa importância”. “O povo [tupinambá] não faz essa peça há muitos séculos”, avaliou. 

Manto Tupinambá é de malha vegetal, costurada e coberta por 4 mil penas de guará. Crédito: Lucas Landau, Ministério dos Povos Indígenas

Ela só aparece nas primeiras imagens dos cronistas do século 16. Depois desse período, teve todo um processo de guerra do governo português contra os tupinambás. Muitos morreram e povoados foram destruídos. Os que sobreviveram foram obrigados a abandonar a língua e os hábitos culturais”. 

Apesar do anúncio feito em junho de 2023, o artefato só chegou ao Brasil em julho de 2024, dois meses antes do evento com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para exaltar a repatriação da peça. No dia 12 de setembro, finalmente, após séculos de separação forçada por colonizadores, o artefato histórico e religioso voltou ao seu território —mas ainda não a seu povo. 

A cerimônia de recepção foi pomposa. Teve a presença de Lula, que celebrou o retorno ao Brasil. O Museu Nacional, anunciou o presidente, não será seu destino, porém. 

A relíquia retornará em breve à Bahia, de onde foi retirada e onde estão os remanescentes (e sobreviventes) tupinambás de quem os europeus o tomaram. As mensagens trocadas pela diplomacia brasileira revelam uma missão nada fácil para a sua devolução. 

Lula participa da celebração do retorno do Manto Tupinambá ao Brasil, na Quinta da Boa Vista, onde fica o Museu Nacional. Crédito: Fernando Frazão, Agência Brasil

Foram anos de conversas, cartas e argumentações até que o acordo fosse firmado. E embora a Embaixada do Brasil em Copenhague tenha entrado nas negociações em 2021, os indígenas tentam recuperar seu objeto sagrado desde há mais de duas décadas, quando, na Mostra do Redescobrimento, em São Paulo, a peça fora exposta no Parque Ibirapuera. 

À época, o grupo indígena realizou uma campanha, ignorada pelos governos brasileiro e dinamarquês, para que o bem fosse devolvido. 

Desta vez, além da gestão da diplomacia para a devolução do objeto, houve a carta de Kellner, que é diretor do Museu Nacional, e outras duas missivas dos povos tupinambás, assinadas pelos caciques Rosivaldo Ferreira da Silva, o cacique Babau, e Maria Valdelice Amaral de Jesus, conhecida como Amotara, encantada na visão tupinambá. 

Também houve a ida para Copenhague da artesã Glicéria Tupinambá, reconhecida e respeitada na Europa. Um dos mantos confeccionados por ela ganhou exibição na Bienal de Veneza, na instalação “Ka’a Pûera: nós somos pássaros que andam”. 

Na ocasião de sua ida à Dinamarca, ela falou da importância religiosa e espiritual do manto. Sua emoção diante do objeto sagrado comoveu os presentes. 

Em 27 de junho de 2023, após o acordo de devolução, uma mensagem do Ministério das Relações Exteriores do Brasil cumprimenta o embaixador: “[A doação] Reveste-se de importância histórica, porquanto é o único dos poucos mantos sagrados tupinambás ainda existentes no mundo que retorna ao Brasil.” 

Dias depois, em 11 de julho, numa tréplica, Azeredo Santos comemora o tom positivo à devolução da peça na opinião pública da Dinamarca. “Todos os principais jornais locais [...] publicaram matérias a respeito da doação [e] ressaltaram que a ação contribuirá para a reconstrução do Museu Nacional-UFRJ, após o trágico incêndio de 2018”, escreveu o embaixador. 

Azeredo Santos transpareceu alívio pela operação ter um desfecho positivo. Afirmou o embaixador que a repercussão demonstrava que o diálogo diplomático foi “bem-sucedido em sua finalidade de evitar questionamentos à entrega do manto, em razão de debates sensíveis sobre a repatriação de artigos de povos originários de outros países". 

Nos anos 2000, na primeira reivindicação para que o manto sagrado ficasse, Amotara, uma das autoras das cartas, gritou ao mundo a existência dos tupinambás, tidos até então como totalmente exterminados. 

Suas lágrimas correram pelo rosto quando viu o manto pela primeira vez. Narrou assim, à época, à Folha de S.Paulo: 

“As lágrimas corriam dos meus olhos sem eu sentir, e eu disse: É esse! E botei a mão no vidro. E o jornalista me disse: ‘A senhora tem certeza?’ E eu disse ‘tenho certeza que é este manto!’ Quando desapareceu o manto, a aldeia se acabou, porque o manto era sagrado”. 

O jornal estampou em 1º de junho daquele ano a declaração da cacica: “Somos tupinambás. Queremos o manto de volta.” Vinte e quatro anos depois, um deles foi conseguido pelo povo tupinambá. Restam outros igualmente sagrados pela Europa. Mas não se fala em devolvê-los.

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