Kamala Harris, candidata à Presidência dos EUA. Crédito: Campanha Kamala Harris, Divulgação

Kamala Harris, candidata à Presidência dos EUA. Crédito: Campanha Kamala Harris, Divulgação

Kamala Harris, o novo rosto da política americana

Candidatura de Harris à Presidência dos Estados Unidos confunde estereótipos raciais e de gênero e deixa claro o desconforto conservador sobre a verdadeira identidade americana

15/10/2024 às 09:27 | 8 min de leitura
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Em sua autobiografia “The Truths We Hold”, Kamala Harris assim escreveu: “Meu nome significa ‘flor de lótus’, um símbolo de muito significado na cultura indiana. Um lótus cresce debaixo d’água, com sua flor subindo acima da superfície enquanto suas raízes ficam plantadas firmemente no fundo do rio”. 

Como a flor de seu nome, a candidatura de Harris à Casa Branca se firma em raízes profundas e ocultas à primeira vista. Muitas predecessoras e predecessores prepararam o terreno para que uma mulher negra, filha de imigrantes vindos da Índia e da Jamaica pudesse concorrer ao cargo mais poderoso do mundo com chances reais de ganhar. 

Lançada às pressas após a fragilidade do presidente Joe Biden ficar exposta em um debate desastroso, a candidatura de Harris divide os Estados Unidos. 

De um lado, reúnem-se aqueles para quem é perfeitamente natural e bem-vinda a perspectiva de uma mulher que não é branca vir a presidir o país, sendo a própria Harris e suas origens diversas um retrato de uma nação multicultural que sempre foi. 

Em contraposição, fantasmas persistentes dão as caras. Donald Trump e aliados têm usado ataques racistas e misóginos contra Harris, acusando-a desde não ser inteligente e bonita, até de supostamente não ser americana, em uma reedição das injúrias lançadas também contra Barack Obama. 

No cerne desta cisão, uma questão fundamental subjaz: quem é verdadeiramente americano? Americanos são aqueles de todas as raças, gêneros e origens, independentemente de onde suas famílias tenham vindo, unidos por uma história nacional e um território em comum? Ou essa identidade está reservada apenas para os brancos, preferencialmente cujas famílias estão nos Estados Unidos há várias gerações? 

“Não existe um símbolo único para Kamala, assim como não existe um só símbolo para raça. É fascinante que as pessoas possam projetar o que quiser sobre ela. Isso permite que racistas imponham seus estereótipos problemáticos. Ao mesmo tempo, outros podem se identificar com diferentes aspectos de sua identidade —seja sua negritude, sua herança sul-asiática ou simplesmente por ser uma mulher miscigenada", afirmou à BRASIL JÁ Ralina Josep diretora do Centro de Comunicação, Diferença e Equidade (CCDE) da Universidade de Washington, em Seattle. 

'A personificação das nossas histórias' 

Realizada entre os dias 19 e 21 de agosto em Chicago, a Convenção do Partido Democrata, que oficializou a candidatura de Harris às eleições de 5 novembro, buscou mostrar uma ideia de país tolerante e acolhedor dos mais vulneráveis. O discurso de Michelle Obama foi recebido como um dos mais inspiradores. 

A ex-primeira-dama descreveu a candidatura de Harris como um exemplo do sonho americano: 

“É um tributo à mãe dela, à minha mãe, e à sua mãe, também. É a personificação das histórias que contamos a nós mesmos sobre este país. A história dela é a sua história. É a minha história. É a história da grande maioria dos americanos que estão tentando construir uma vida melhor.” 

A história real da família de Harris ilustra mesmo a busca por uma vida melhor, como é a história de muitos imigrantes, não apenas nos Estados Unidos. 

Poderia ser a história de qualquer imigrante, inclusive em Portugal. Sua mãe, Shyamala Gopalan, tinha 19 anos quando, sozinha, deixou a Índia em 1958 para, recém-graduada na Universidade de Délhi, ir à Universidade de Berkeley, na Califórnia, atrás de um mestrado e depois de um doutorado, concluído em 1964. 

Em Berkeley, Shyamala conheceu Donald Harris, um estudante de economia oriundo de Brown’s Town, um vilarejo de menos de 7 mil habitantes na Jamaica, e a 24 quilômetros de Nine Mile, onde nasceu Bob Marley. 

A cientista e o economista se casaram em 1963, e juntos tiveram duas filhas —Kamala e Maya Harris, dois anos mais nova. Durante a infância das meninas, toda a família viajou para os países de origem dos dois pais. 

A hoje candidata a presidente dos Estados Unidos seguiu um caminho diferente ao dos progenitores acadêmicos. Shyamala, que morreu em 2009, conduziu pesquisas importantes sobre o câncer de mama. Já Donald Harris —sobre quem a filha fala pouco em público, e que hoje tem 85 anos— tem uma obra influente sobre economia do desenvolvimento, com ênfase nos países menos desenvolvidos. 

Ele foi o primeiro professor negro do Departamento de Economia de Stanford, e escreveu sobre distribuição de renda, políticas de desenvolvimento e os impactos do colonialismo e do imperialismo. Kamala Harris, no entanto, nem trilhou a via da pesquisa nem a da crítica dura ao capitalismo, mas sim a da prática e da atuação dentro das instituições do Estado. 

Ela primeiro estudou Ciência Política e Economia na Universidade Howard, uma instituição de ensino superior historicamente negra na capital americana. Lá, integrou a Alpha Kappa Alpha (AKA), a primeira sororidade fundada por universitárias negras, em 1908. 

Essas organizações não só proporcionam uma rede de apoio social, mas também têm uma longa tradição de oferecer apoio a mulheres negras em carreiras políticas. Elas disponibilizam serviços como redes de apoio, mobilização de eleitores e auxílio em angariação de fundos, entre outros, para integrantes que querem se candidatar. 

“As sororidades negras têm sido uma parte essencial de coalizões de mulheres negras e vêm fazendo a diferença e promovendo candidatas desde pelo menos a década de 1920. Kamala Harris não é a primeira e não será a última candidata negra a ter uma sala decorada com as cores de sua sororidade, que no caso dela são verde e rosa. Elas sempre estiveram presentes como parte de uma infraestrutura para mulheres negras com ambições políticas”, afirmou a historiadora especializada em temas raciais Martha Jones, da Universidade John Hopkins. 

Após se formar na faculdade, Harris voltou para a Califórnia para seguir estudos em Direito, e de lá partiu para uma carreira como procuradora no mesmo estado. Em 2003, foi eleita procuradora de São Francisco, seu primeiro cargo de maior visibilidade, com um mandato conhecido como de linha dura contra o crime.

Em 2010, ela se elegeu procuradora-geral da Califórnia, cargo que manteve até 2016, quando se elegeu ao Senado dos Estados Unidos. Na vida pessoal, em 2014, ela se casou com Doug Emhoff, também advogado, de origem judia.

Uma vice apagada

No Senado, Kamala Harris foi logo considerada uma das principais candidatas à nomeação democrata para concorrer contra Trump nas eleições de 2020. Ela deu sinais desta ambição quando, por exemplo, lançou em 2018 a sua autobiografia. O anúncio oficial da candidatura à Casa Branca aconteceu em janeiro de 2019, rapidamente arrecadando fundos para a campanha das primárias. 

Sua plataforma defendia ações contra a violência armada, a legalização da maconha, o aumento do salário-mínimo e um sistema de saúde universal. Em dezembro de 2019, alegando dificuldades financeiras e queda nas pesquisas, ela desistiu de concorrer. Sua posição, no entanto, já estava marcada. 

Em 11 de agosto de 2020, o então presidenciável Joe Biden anunciou a escolha de Harris como candidata a vice-presidente. 

Quando era procuradora da Califórnia, ela tinha trabalhado com o filho de Biden falecido em 2015, Beau, a quem descreveu como “meu querido amigo” em seu discurso da vitória contra Donald Trump em novembro de 2020. 

Kamala Harris discursa. Crédito: Mike Segar, EPA, Lusa

Embora tenha feito história por se tornar a primeira pessoa não branca e a primeira mulher a ocupar a vice-presidência americana, Harris não foi popular no cargo. Um ano depois de assumir, uma pesquisa do jornal USA Today constatou que só 28% dos americanos aprovavam o seu desempenho. 

Na maior parte do tempo, a percepção mais comum foi a de uma pessoa pouco carismática e receosa de decepcionar o mandatário. Uma reportagem do New York Times de fevereiro de 2023 assim resumiu as opiniões dentro do Partido Democrata sobre Harris: 

“Dezenas de democratas na Casa Branca, no Capitólio e em todo o país disseram que ela não esteve à altura do desafio de provar que pode ser uma futura líder do partido, muito menos do país. Até mesmo alguns democratas que os próprios assessores de Harris indicaram aos repórteres confidenciaram em privado que perderam a esperança nela. Ao longo do outono, uma preocupação silenciosa se instalou entre os principais democratas sobre o que aconteceria se o presidente Biden optasse por não concorrer a um segundo mandato.” 

A ideia de que Harris seria uma candidata fraca e impopular foi considerada um dos motivos para Biden, que fará 82 anos em novembro, demorar tanto a desistir da candidatura. Por regras partidárias, seria difícil que outra pessoa além de Harris assumisse a cabeça de chapa, e a ideia de que ela teria sido rifada poderia afastar parte do eleitorado. 

Por fim, o presidente só aceitou desistir do pleito quando, após muita pressão da mídia, de aliados e de doadores, se convenceu de que Harris poderia vencer.

Uma estrela em ascensão

Desde então, um clima de entusiasmo se instaurou na campanha democrata. No seu primeiro mês, o partido arrecadou mais de 500 milhões de dólares em doações, entrando no mês de agosto com muito mais recursos do que Trump. Movimentos de base negros se mobilizaram rapidamente para apoiar Harris. 

No dia 21 de julho, horas após Biden anunciar a desistência da reeleição, 44 mil pessoas se reuniram em uma chamada de vídeo convocada pelo movimento Win With Black Women, fundado em 2018 para impulsionar candidaturas negras, com o intuito discutir como poderiam ajudar a candidatura de Harris. 

Uma das organizadoras foi Adrianne Shropshire, diretora-executiva do BlackPAC, organização independente liderada por negros e trabalha para engajar eleitores negros. 

"Agora, as pessoas sentem que têm algo pelo qual votar, e não apenas contra. Teremos a oportunidade nos próximos dias e semanas de começar a destacar a vice-presidente, sua história e sua visão para os Estados Unidos. Temos a oportunidade de aproveitar a natureza histórica de sua candidatura", afirmou Shropshire. 

O clima positivo se refletiu em pesquisas. Enquanto Biden aparecia atrás de Trump há meses, Harris passou à frente do ex-presidente em favoritismo. 

A animação se explica por vários fatores. Em parte, a agenda de Kamala Harris não é muito diferente da de Biden, e ela tem sido discreta a respeito das políticas que pretende adotar. De certa forma, o seu principal tema de campanha, tal como era com Biden, continua a ser o fato de não ser Trump, nem extremista. 

No entanto, em um país onde a Suprema Corte retirou o direito ao aborto após quase 50 anos de instituto, o fato de ser mulher pesa muito. 

"A questão da política de gênero não pode ser ignorada. Somos uma das poucas democracias que nunca teve uma mulher na cabeça de chapa e venceu. Muitas mulheres, especialmente com os ataques à justiça reprodutiva e ao direito de escolha, perceberem quantos direitos já lhes foram retirados, e o quanto os republicanos estão preparados para lhes tirar ainda mais. Isso energizou muita gente”, afirmou a cientista política especializada em temas raciais Christina Greer, da Universidade Fordham, em Nova York. 

Michelle Obama manifesta apoio a Kamala Harris. Crédito: Will Oliver, EPA, Lusa

A vagueza das propostas, no entanto, pode pesar contra. Antes de Harris virar a candidata, pesquisas indicavam que Trump poderia ter um bom desempenho com eleitores negros. Para garantir esse eleitorado, Harris precisa de uma agenda robusta. 

Segundo Christina Greer, as propostas econômicas são a melhor estratégia a seguir. Harris precisa mostrar os impactos diferentes que a sua agenda e a de Trump terão na vida cotidiana das pessoas, desde temas tradicionais de economia, até propostas de outras áreas. 

"Sabemos que todas as pessoas, não apenas os negros, votam com base em questões econômicas. Então, é necessário [se discutir] algumas questões políticas realmente importantes como questões econômicas que irão impactar diretamente os negros e as famílias negras. O aborto e o direito de uma mulher escolher e a justiça reprodutiva são questões econômicas. A mudança climática também, pois são os negros que sofrem mais com elas”, disse Greer. 

Uma campanha desorientada

Desde que Kamala Harris se tornou a candidata dos democratas, Donald Trump sem sucesso tentou atribuir um apelido a ela: “Kamala Risonha (“Laffin’ Kamala”), “Kamala Loroteira” (“Lyin’ Kamala”) e “Camarada Kamala” (“Comrade Kamala”) foram algumas das tentativas. 

Durante um comício em Asheboro, na Carolina do Norte, no dia 21 de agosto, Trump se queixou de que nenhum desses apelidos de fato pegou. “Eu realmente não encontrei um com ela”, afirmou Trump. “Vocês conhecem todos os apelidos que eu ponho. Todos eles funcionaram, todos eles foram bem-sucedidos”. 

A dificuldade de colar um rótulo depreciativo não é a única que Trump enfrenta com a identidade de sua adversária. O ex-presidente inicialmente ensaiou uma estratégia de dizer que Kamala Harris não se identificava como uma pessoa negra até recentemente. 

No dia 31 de julho, em uma entrevista à Associação Nacional de Jornalistas Negros em Chicago, Trump afirmou falsamente que a vice-presidente até pouco tempo atrás só enfatizava sua herança asiático-americana. "Eu não sabia que ela era negra até alguns anos atrás, quando ela, por acaso, se tornou negra e agora quer ser conhecida como negra," disse Trump. 

"Então eu não sei —ela é indiana? Ou ela é negra?" Há diversas declarações registradas de Harris se identificando como uma mulher negra há décadas, de modo que esta mentira de Trump não pode ir muito longe para quem se der ao trabalho de  pesquisar. 

Ao lado dessa acusação, Trump faz outras mais explicitamente racistas, como dizer que Harris “tem o QI baixo”. Diante desses ataques, assim como aqueles baseados em gênero, Harris têm resistido sem ceder a provocações. Martha Jones interpreta isso como a noção da candidata de que há uma crescente intolerância do eleitorado a esse tipo de discurso. 

Segundo a historiadora, Harris sabe que representa uma visão mais honesta e complexa da identidade americana, onde as raízes multirraciais são cada vez mais comuns e aceitas. 

“Os Estados Unidos são um país que reconhece quantos milhões e milhões de nós vêm de famílias e heranças complicadas e chamadas de mistas. Eu sou filha de um chamado casamento interracial dos anos 1950. Nos anos 1950, isso era chocante para as pessoas; isso não é mais chocante para os americanos”, disse Jones. 

Resta ver se, em novembro, quando o eleitor for às urnas, vai predominar quem se recusa a aceitar esta realidade, e quais podem ser as consequências disso. Por ora, na campanha eleitoral, Harris busca usar sua história como uma pequena versão de um país mais complexo e transformado, longe de estereótipos. 

Assim ela o fez no último dia da Convenção Democrata, quando sua candidatura se tornou oficial: 

“Em nome do povo, em nome de cada americano, independentemente de partido, raça, gênero ou da língua que sua avó fala; em nome da minha mãe e de todos que já partiram em sua própria jornada improvável; em nome de americanos como as pessoas com quem cresci —pessoas que trabalham duro, perseguem seus sonhos e cuidam umas das outras—; em nome de todos cuja história só poderia ser escrita na maior nação da Terra; eu aceito sua nomeação para presidente dos Estados Unidos da América.” 

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