Nicoli Macedo ainda guarda os desenhos do filho em seu apartamento em Lisboa Crédito: Renato Velasco

Nicoli Macedo ainda guarda os desenhos do filho em seu apartamento em Lisboa Crédito: Renato Velasco

Mães suprimidas

Mulheres sofrem com a distância dos filhos porque Justiça privilegia a paternidade dos homens

06/09/2024 às 14:20 | 8 min de leitura | Edição Impressa

Adriana Botelho, de 50 anos, diz lembrar como se fosse hoje o dia em que sua filha, então com 7 anos, foi retirada de sua casa, em Salvador, pela Polícia Federal em dezembro de 2011, numa ação a pedido do pai da garota. O homem, um português, alegara que a mulher tirara sua filha de Portugal sem o seu consentimento. A primeira instância da Justiça brasileira concordou com os argumentos do progenitor, que recorreu à Convenção de Haia para obter a guarda da filha. A decisão, lembra Adriana, fora expedida às 7h30 e, segundo ela, em menos de três horas, agentes da Polícia Federal estavam na sua porta para buscar a menina e entregá-la ao consulado português. “Entrei na viatura da PF abraçada à minha filha. Chegando lá, tive trinta minutos para entregar minha filha ao cônsul”, narra. Adriana contou que o pai da menina, que a aguardava no endereço, embarcou no mesmo dia com a criança de volta para Portugal. No dia seguinte, a instância imediatamente superior da Justiça brasileira ordenou a permanência da criança no Brasil, mas era tarde para a mãe. Ao contrário da primeira decisão, o juiz levou em consideração os argumentos de Adriana, que disse ter fugido da violência doméstica de que era vítima e, sem amparo, decidiu retornar ao seu país, levando junto a filha. Atualmente com 19 anos, a menina mora em Portugal e não vê a mãe. Para a jovem, disse Adriana, ela fora abandonada pela genitora.

(ATUALIZAÇÃO*: O texto está diferente do que foi publicado na edição impressa. Por erro de edição, algumas informações foram trocadas. Confira o que foi alterado no fim da reportagem.)

  O Brasil é signatário desde 1º de janeiro de 2000 da Convenção de Haia, um documento internacional assinado 20 anos antes por 103 países, com o objetivo de evitar o deslocamento de crianças do país onde habitualmente residem ou a retenção ilegal de menores de 16 anos no exterior. Quando o protocolo fora discutido, nos anos 1980, a maioria dos casos de subtração de crianças era cometida pelos progenitores homens, descontentes com a atribuição da guarda às mães. Não era incomum, à época, que homens raptassem os filhos —ora para punir a ex-mulher ora porque se acreditava movido por algum sentimento de injustiça— e os levavam para o exterior. Quarenta anos depois da concepção do instrumento, são as mulheres, antes protegidas, as principais vítimas de decisões que, não raro, privilegiam a paternidade dos homens em detrimento da segurança das mães e das próprias crianças. Não é que haja uma conspiração global para a retirada de filhos de suas mães, mas a forma como os dois primeiros artigos da convenção fora redigidos —e, como se disse, a urgência de se devolver a criança ao lar— faz com que os juízes, de modo geral, tratem como secundários os motivos que levaram a mulher a abandonar a casa e levar consigo o filho ou a filha. Isso se tornou habitual, por exemplo, em episódios de violência doméstica, como o alegado caso de Adriana, citada no começo da reportagem. O primeiro artigo da Convenção de Haia é categórico ao afirmar que seu objetivo é “assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas” de suas residências; o segundo afirma que os países signatários do documento precisam adotar “procedimentos de urgência”. Ou seja, o documento começa dando à urgência o tom com que as decisões judiciais precisam ser tomadas e os procedimentos que devem ser adotados.