19/06/2024 às 11:57
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Mesmo que a imaginação diga o contrário, a vida real se impõe e Maria não está de férias curtindo um domingo primaveril num camping.
“Eu fico com isso na cabeça, de que estou acampando de férias, porque se eu parar e pensar em tudo que está acontecendo, eu desabo”, contou a piauiense, de 52 anos, à BRASIL JÁ numa manhã de domingo de início de primavera.
A conversa ocorreu enquanto ela arrumava sua barraca na Quinta dos Ingleses.
Há seis meses, ela e o marido estão sem teto. Em outras palavras, vivem um estado de precariedade habitacional. Maria não tem de fato esse nome. Como as demais pessoas nesta reportagem, ela pediu para preservar sua identidade para evitar sofrer com mais constrangimentos em outras áreas de sua vida.
Utilizaremos um nome fictício para a mulher e os outros ouvidos nesta reportagem. Nossa Maria, a exemplo de outras tantas pessoas, passou a viver de maneira improvisada numa área verde com 52 hectares repletos de pinheiros em frente à praia de Carcavelos, em Cascais.
Faltou-lhe dinheiro para alugar uma casa. Embora não haja registros oficiais, os ocupantes mais antigos do lugar dizem haver moradores no local há mais de três anos. À medida que a crise de habitação em Portugal se aprofundava, o camping crescia.
Em meados de 2023, o local acabou ganhando notoriedade —a estimativa dos próprios moradores é de que cinquenta pessoas tenham se mudado para lá.
Todos de maneira irregular, porque o terreno é privado e, no local, está prevista a construção de condomínios e hotéis de luxo.
Para Maria, o mais difícil de sua situação não é a falta de água encanada, do banheiro ou de viver sem eletricidade. “O pior tem sido a falta de humanidade das pessoas”, ela disse, enquanto seus olhos marejavam.
No seu caso, ela se refere à falta de empatia das pessoas diante dos problemas de habitação, cada vez mais graves, e do golpe que sofreram, quando seu marido foi contratado e não o pagaram. Na lista, ela inclui o senhorio [como é chamado o proprietário de imóveis em Portugal], que se recusou a esperar para que regularizassem suas finanças.
Depois de seu marido levar o golpe —ter trabalhado e não ter recebido— o casal atrasou a renda do apartamento. Foram despejados. Sem ter para onde ir, pegaram o pouco dinheiro que ainda lhes restava, compraram uma tenda usada, alguma comida, e se mudaram para a Quinta dos Ingleses, onde, segundo souberam pela internet, havia outros brasileiros acampados.
A primeira noite de Maria no camping foi de alívio. “Ajoelhei e agradeci a Deus por ter um lugar para dormir sem ficar devendo a ninguém”, lembrou-se. Contudo, ela sabe que a “paz” que encontrou está com os dias contados.
As disputas pelo terreno dos pinheiros têm múltiplas frentes. Uma delas passa pelo impacto ambiental da futura construção, que se arrasta desde a década de 1960. O alvará de loteamento para a empresa Alves Ribeiro só saiu em março deste ano.
Registros históricos do terreno datam do século 16 e indicam que a então Quinta de Santo Antônio era uma área de produção de vinho.
No século 19, quando se tornou o ponto de partida para cabos submarinos de telégrafo, passou a ser conhecida como “dos Ingleses” por causa dos funcionários ingleses da companhia de telégrafo que foram morar lá.
Eles plantaram os pinheiros que hoje cobrem grande parte do terreno. No início do século 20, a casa principal foi adaptada para se tornar a escola Saint Julian. Na mesma época, a Associação Saint Julian vendeu parte da Quinta para a construtora Alves Ribeiro.
As primeiras tentativas de fazer grandes obras foram barradas pelo Ministério de Obras Públicas da ditadura de Salazar, na década de 1960. Desde então, vários projetos para a Quinta foram discutidos e recusados.
Em 2014, o Plano de Pormenor do Espaço de Reestruturação Urbanística de Carcavelos Sul foi aprovado na Câmara, numa votação apertada, com dezenove votos a favor e dezoito contra. Na prática, foi aceita a construção de 850 apartamentos em edifícios de sete a nove andares, hoteis e uma zona comercial.
Sem sinal de obras, o espaço recebeu outros usos pela população. Além de ter se tornado um lugar de moradia, a grande mancha verde na cidade é desfrutada como uma área de lazer na natureza pelos moradores da vizinhança e, numa clareira, se tornou estacionamento para quem vai à praia de Carcavelos.
Em abril, a construtora Alves Ribeiro começou a cercar partes do terreno onde não havia muro e distribuiu aos acampados um aviso de que tinham até o último dia trinta para deixar o local. Os moradores da Quinta com os quais a reportagem conversou entendiam que precisavam deixar o local.
Mas, por saberem que vão se mudar para condições piores, preferem esperar o máximo possível, esticando o dinheiro que conseguem guardar e as vantagens de não irem morar apertados e longe do trabalho.
“Quando sair, vamos ter que voltar a arrendar um quarto. Minha preocupação é não passar por um despejo. Quero dignidade. Não somos animais”, disse Márcio, um vendedor ambulante de 37 anos. Ao seu lado, a esposa, de 32 anos, disse que entre viver num quarto ou no acampamento, prefere o segundo.
“Preferia mesmo estar numa casa só nossa, mas não dá”, afirmou ela, que trabalha em um café em Carcavelos e nunca deixou que seus patrões soubessem que mora numa tenda na Quinta —e ela não quis contar por medo de sofrer uma nova forma de discriminação.
Os dois estão há um ano em Portugal e vieram de São Tomé e Príncipe. Para alguns, é especialmente triste deixar o lugar onde moram para dar espaço à construção de casas nas quais só terão acesso se for para prestar serviços.
“A gente não está com medo de sair, porque sabia que um dia ia acontecer. Mas vai desmatar tudo isso para fazer condomínio de luxo, hotel de luxo. Isso não dá. Podia virar um parque”, lamentava Miriam, uma carioca de 44 anos, que trabalha como faxineira e cozinheira.
Em vez de ir novamente para um quarto, ela pretende achar um terreno onde possa viver em sua caravana recém-adquirida.
No domingo em que a reportagem foi ao local, Murilo, um motorista paulista de 26 anos, estava arrumado com gel no cabelo, uma camisa muito branca e bem passada, tênis novos. Durante a semana, ele almoça a marmita que sua mãe prepara.
Mas, no final de semana, aproveita a pausa na correria para curtir o espaço. É quando as dificuldades também se impõem. “Temos uma tenda-cozinha. Só falta mesmo a geladeira, por isso temos que comprar a mistura [proteína] todos os dias”, ele relatou: “As roupas, são lavadas numa lavanderia; os banhos são tomados no local de trabalho ou no ginásio.”
Murilo e a mãe se mudaram de Santos, litoral de São Paulo, para Portugal há um ano e, no início, arrendavam um quarto. Mas depois de pagar o aluguel não sobrava dinheiro para alcançar o sonho que mãe e filho mantêm juntos: construir uma casa para eles no Brasil.
Desde que se mudaram para o camping, todos os meses conseguem mandar dinheiro ao país. Nos planos de saída da Quinta, a mãe vai voltar para São Paulo. Ele procura um quarto para arrendar.
Imigrantes e portugueses na Quinta
Embora os imigrantes sejam maioria no local, há também portugueses. Marcelo é um deles. Com 58 anos, o português é cardíaco e passou por um despejo há cerca de seis meses.
O contrato estava em nome da sua tia; quando ela morreu, além de perder sua última familiar, ele teve que sair da casa onde morou por cinquenta anos.
Como tem problemas de saúde, não pode trabalhar e recebe uma pensão de menos trezentos euros. Não reclama das condições do camping, mas tem passado mal pelo medo de ser “escorraçado” de novo.
“Já tinha feito pedido para uma habitação social, mas perderam meu processo. Não tenho conseguido dormir”, afirmou.
Marcelo conta com a ajuda de uma amiga, que lava suas roupas e carrega seus power banks, assim como do centro comunitário de Carcavelos, onde pode tomar banhos e ganha refeições quentes. Para seu problema sobre onde morar, contudo, ninguém parece ajudar efetivamente.
Vizinhos se opõem à urbanização
Mesmo entre os vizinhos da Quinta, pessoas que têm suas casas de alvenaria na região, há quem discorde da construção.
“A urbanização só agrava [o problema da falta de habitação], porque é uma construção de luxo, que vai aumentar os valores no entorno e afugentar as camadas trabalhadoras, que são as pessoas que realmente trazem riqueza para cá”, disse à BRASIL JÁ Manuel Valadas Preto, do movimento SOS Quinta dos Ingleses.
O argumento mais forte para ele se opor à construção é o ambiental.
“A impermeabilização do solo vai fazer com que a praia desapareça, vai aumentar o calor e a poluição na região. Com o que sabemos hoje, a urbanização não seria aprovada pela Câmara. Se temos mais informação do que antes, precisamos melhorar nossas escolhas”, afirmou.
Seu movimento solicitou à Justiça a revogação da autorização para construção no local. Estudos encomendados pela associação indicam que a erosão do terreno leva partículas para a praia, o que contribui para manter a extensão da faixa de areia de Carcavelos e conter a subida do mar na localidade.
Ainda de acordo com o mesmo documento, os prédios altos vão mudar os ventos e podem acabar com as boas ondas para o surf na praia. Por mais que se sintam numa luta contra Golias, alguns dos vizinhos do terreno prometem não desistir enquanto os prédios não estiverem erguidos.
“Ainda tenho esperança. Há muitos anos, quando eu era pequena, vi o pai de uma amiga se amarrar a uma árvore em protesto”, recordou Teresa Marques, moradora de Carcavelos desde 1969, durante um protesto em abril contra a urbanização da área. Sua crítica à Câmara de Cascais não é de hoje.
“Há uns anos houve uma assembleia da junta de Freguesia, em que o povo votou contra o projeto, mas a presidente da junta, Zilda Costa e Silva, votou a favor”.
O evento a que se refere ocorreu em 2014, quando a Assembleia Municipal de Cascais aprovou com apenas um voto de diferença o plano urbanístico para o terreno. Representantes da SOS Quinta dos Ingleses não se dão por vencidos.
Entraram na Justiça em novembro de 2023 contra a construção e prometem para breve solicitar “uma providência cautelar com vista a impedir a destruição da mata da Quinta até à decisão final". Procurada pela reportagem, a construtora Alves Ribeiro não quis se pronunciar sobre o empreendimento.
A Câmara de Cascais informou que não é viável tornar toda a área um parque porque “há direitos adquiridos” e indenização é calculada em mais de 360 milhões de euros, “o que é impossível para uma autarquia como a de Cascais”.
Segundo o órgão, porém, uma área de dez hectares será destinada à criação de um parque público e outros onze hectares serão de áreas verdes dispersas, como jardins. Para os acampados na Quinta, porém, não há proposta de solução.
“Não nos é possível arranjar alojamento porque, além de não ser competência da autarquia dado que não são munícipes, temos uma longa lista de famílias cascalenses em lista de espera para habitação pública”, informou a mensagem enviada à BRASIL JÁ.
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