Crédito: António Pedro Santos/Lusa

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O impacto colonial no assédio às brasileiras

Entre julho de 2020 e julho de 2021, projeto reuniu 541 relatos de episódios de assédio em Portugal

17/05/2024 às 09:17 | 7 min de leitura
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*Alerta de gatilho: esta reportagem contém relatos de assédio, importunação sexual e xenofobia

Os depoimentos são muitos e de diferentes mulheres. Todos compartilham sentimentos de repulsa, angústia e medo.

“Fiquei um mês sem conseguir voltar sozinha para casa”. “Eu me senti muito desrespeitada e tive que ir embora”. “Corri até minha casa e cheguei aos prantos”. “Me senti muito vulnerável”. “Não consigo explicar o medo que senti”.

As declarações são de mulheres ouvidas para esta reportagem —todas brasileiras e vítimas de assédio em Portugal.

“Acho que interfere muito o fato de ser brasileira porque eles pensam que têm uma certa liberdade. Eles acham que somos vulgares”, disse Júlia (nome fictício), de 24 anos, contando que, recentemente, na Amadora, enquanto caminhava em direção à estação de trem, foi assediada por três homens: 

“Começaram a mexer comigo e tentaram me cercar. Eu dei um grito e continuei a andar, mesmo assim eles continuaram a gritar coi sas para mim”.

O assédio sofrido por Júlia não a surpreendeu e não é a primeira vez que ela enfrentou situações como a narrada. Por trabalhar em um centro comercial e sair do trabalho à meia-noite, situações como esta são relativamente cotidianas. 

O medo que sente, disse, faz com que evite confrontar os assediadores por “receio de que eles façam alguma coisa mais grave”.

Por decisão editorial, a BRASIL JÁ manterá sob sigilo os nomes verdadeiros das vítimas de assédio ouvidas para esta reportagem. 

Os relatos são carregados de traumas, e ecoam a realidade enfrentada por quem se vê obrigada a lidar com uma experiência amarga em um país que, apesar de sua crescente diversidade cultural, continua a se debater com estereótipos e preconceitos.

Vivendo há sete anos em Portugal, a pesquisadora Camila Lamartine trabalhou na investigação "O ciberespaço como denúncia: assédio e discriminação vinculados à colonialidade", do projeto "Brasileiras não se calam". 

Camila Lamartine é jornalista, investigadora do ICNOVA e doutoranda em Ciências da Comunicação especialização em Estudos Sociais pela Universidade Nova de Lisboa. Segundo ela, é perceptível a intensificação da xenofobia e a reprodução dos diversos tipos de assédio contra as mulheres nascidas no Brasil: “A gente sente o preconceito em todas as camadas, ainda que seja velado”.

Centenas de denúncias

No período de um ano, o projeto contabilizou 541 relatos de assédios contra brasileiras ocorridos em Portugal. Desses, 354 não especificaram a cidade. Das denúncias com locais onde ocorreram, Lisboa apareceu na frente, com 81 casos; seguida do Porto, com 37; e de Coimbra, com treze queixas.

“O projeto foi surpreendente para todas as pessoas que o acompanharam. As denúncias chegavam cada vez mais fortes e com mais pessoas. E são situações que também aconteceram comigo, com meu círculo de amizades e pessoas que conheço”, relatou a pesquisadora, acrescentando a discrepância entre o número de denúncias realizadas em Portugal e o de outros países, onde também foram computadas.

“Para mim, foi alarmante ter mais de quinhentas denúncias em Portugal e, em segundo lugar, os Estados Unidos, com apenas 38”, detalhou. Nos Estados Unidos, há dois milhões de brasileiros, enquanto em Portugal são mais de quatrocentos mil, segundo o Ministério das Relações Exteriores.

Crédito: António Pedro Santos/Lusa

A investigação de Camila Lamartine dividiu as denúncias em três tipos de categoria: “xenofobia”, “assédio sexual” e “desqualificante”. A que mais recebeu relatos foi a de assédio, com histórias de xingamentos como “você é puta” ou “veio aqui roubar maridos”. O segundo é a xenofobia, quase sempre representada com a frase “volte para a sua terra”. E em terceiro o desqualificante, que engloba os relatos de minoração intelectual e contestação curricular/profissional.

“São mulheres com mestrado, doutorado, com currículo profissional de altas e grandes empresas, não só no Brasil, que estavam trabalhando em restaurantes, cozinhas, restauração. Não desmerecendo esses trabalhos, que são fundamentaism nas elas querem de fato trabalhar na área delas e não conseguem. Isso foi uma das coisas que mais me chocou”, relatou a pesquisadora.

Lamartine também chamou atenção para o fato de o assédio afetar não apenas a segurança física, mas a saúde mental das vítimas. Mulheres que buscam realizar sonhos profissionais ou acadêmicos em Portugal se encontram muitas vezes presas a um ciclo de medo e desamparo.

“Há um questionamento: ‘Quando que eu vou ser ou não suficiente?’. E aí isso atrapalha demais a imigração das mulheres brasileiras, que se sentem um objeto sexual, depois se sentem cada vez mais incapazes, e depois vão para a linha dos serviços. De uma forma geral, a linha da colonização volta”, analisa a investigadora.

Para Lamartine, este é um critério que a comove inclusive a nível pessoal e acadêmico: “Enquanto professora, eu digo que você tem todo o direito do mundo de estudar. Mas não importa, ser brasileiro irá implicar um questionamento”.

A colonização como um agravante

O assédio não é apenas um problema individual, mas um reflexo de estruturas sociais mais amplas que remontam à história dos dois países. Entre o século 16 e o início do 19, o Brasil foi parte das colônias de Portugal, com destaque para a exploração mineral e a escravização. 

Com isso, as nações compartilham laços históricos, que não são neutros. A mestre em Estudos Africanos Livia Cassemiro Sampaio, doutoranda na Universidade Autônoma de Lisboa, lembra que a colonização de Portugal na África terminou muito recentemente:

Uma das formas de domínio era a violência sexual. Isso já foi denunciado em muitos trabalhos acadêmicos, principalmente em Moçambique e Angola. Isso ainda existe aqui em Portugal. Essas mulheres ainda são muito importunadas”.

De acordo com a pesquisadora, a representação da mulher negra ainda remonta ao século 19 e é profundamente enraizada no colonialismo, caracterizada pela hipersexualização e pela perpetuação do colorismo —discriminação baseada em tonalidades de pele.

“[Durante as guerras coloniais] Enviavam postais para soldados portugueses com fotos de mulheres negras seminuas. A hipersexualização da mulher africana ainda é muito viva”, lembrou Sampaio, acrescentando que as mulheres africanas continuam a ser objetificadas:

“O machismo e a xenofobia trazem essa questão de olhar a mulher negra, africana, enquanto objeto sexual fácil. De estar sempre disponível. Como se seu corpo na rua, em casa, ou no ambiente de trabalho, estivesse disponível para o homem branco”.

Imigração feminina no auge

Os últimos dados divulgados pelo Observatório das Migrações, em dezembro de 2023, mostram que os brasileiros representam 31% dos estrangeiros residentes em Portugal. As mulheres são a maioria entre os imigrantes. Em 2022, elas representavam 54% dos residentes saídos do Brasil. Também de Angola e Cabo Verde é maior o número de mulheres recém-chegadas a Portugal.

A análise da instituição afirma que “a imigração feminina deixou de estar associada, como no passado, a um percurso e projeto familiar no qual primeiro emigrava o homem e, posteriormente, a mulher e os filhos, através do reagrupamento familiar”.

O relatório reforça que, principalmente a partir do final do século passado, aumentou o número de mulheres que escolhem migrar por decisão própria e autônoma. É o caso da estudante Gabriela, de 23 anos. A jovem decidiu se mudar para Lisboa assim que se formou no Brasil. O propósito de fazer o mestrado tem dado certo, mas a liberdade de andar nas ruas está ameaçada após um episódio de assédio sexual, relata:

“Eu estava voltando da academia por volta das 21h. Na porta de casa, percebi que tinha um homem atrás de mim, pensei que ele também era morador do prédio e iria entrar. Quando eu olhei, ele estava com o pênis para fora se masturbando. Minha reação na hora foi sair correndo. Não consegui falar nada. Fiquei muito triste. Chorei. Tive muita crise de ansiedade."

A advogada e mestranda Aline, de 26 anos, contou à reportagem que três homens portugueses a abordaram na rua dizendo “vê esta rapariga, uma putinha brasileira”. Ela perguntou se era com ela, e um deles respondeu que sim: “Estás a achar ruim, sua vadia? Cale a boca, vá pro caralho”.

A história piora. Em dado momento, um dos agressores disse que ela é “uma brasileira qualquer” e que se não estiver satisfeita que “volte à tua terra”.

“Eu nunca tinha respondido nem enfrentado, não sei o que me deu, mas naquele momento a única coisa que podia fazer era tentar revidar os xingamentos para que eles não se sentissem tão superiores como eles achavam ser. Me senti muito vulnerável. Eu estava sozinha e revidar não sei se foi o melhor, pois poderia ter havido violência maior contra mim”, disse.

Crédito: Tiago Petinga/Lusa

Estereótipo de mulheres como objeto sexual

Um episódio gravado no imaginário português sobre as mulheres brasileiras foi o que ficou conhecido como o das “Mães de Bragança”, ocorrido em 2003. Um movimento de mulheres portuguesas da cidade de Bragança, no Norte de Portugal, tentou expulsar brasileiras que trabalhavam com sexo. O movimento reforçou a generalização da imagem das brasileiras de que estariam no país para “roubar marido”.

A pesquisadora Camila Lamartine acrescenta ao problema o estereótipo da mulher latina, vinculado à sexualização:

“Na literatura também vemos que tudo que é latino tem o adjetivo spice, que em inglês é picante, ousado, tendendo a essa linha da sexualidade”.

Além disso, Lamartine lembra que o próprio governo brasileiro já estimulou campanhas que sexualizavam a imagem da mulher do país. Entre as décadas de 1960 e 1980 havia propagandas para promoção turística do Brasil com fotos de mulheres na posição de objeto sexual, publicizadas especialmente na Europa. Essas campanhas associavam o país a um destino de turismo sexual, perpetuando uma imagem que objetificava as brasileiras e as tornava disponíveis aos turistas estrangeiros.

Por fim, na opinião da pesquisadora, a ascensão da extrema direita reforça a xenofobia e o preconceito contra as mulheres: “Nesse período vemos que tudo que difere é questionável. Há um aumento dos discursos de ódio e uma ideia de que ‘vamos proteger o que é nosso e vocês não podem vir para aqui. O discurso agrada parte da população e os jovens conservadores”.

Combate e denúncia

Em diversos países, como no Brasil, a abordagem coletiva para enfrentar essas questões envolve a criminalização do assédio sexual. Em Portugal, os atos podem se enquadrar no artigo 170 do Código Penal, que prevê penalizações pela ação praticada por “quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contato de natureza sexual”.

A punição prevista vai até um ano de prisão ou o pagamento de multa. A reportagem solicitou à PSP dados sobre denúncias de assédio no país. Mesmo pedindo no dia 3 de abril, até o fechamento da reportagem o órgão não os havia enviado.

Em nota, o Itamaraty afirmou que “os consulados-gerais do Brasil em Portugal [nas cidades de Faro, Lisboa e Porto] têm conhecimento de casos de
assédio a mulheres brasileiras em Portugal e mantêm constante interlocução com as autoridades portuguesas responsáveis pela investigação desse tipo de crime”.

Também por meio de nota, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil informou que “as três repartições consulares contam com assessoria jurídica dedicada a temas de assistência aos cidadãos brasileiros e permanecem à disposição da comunidade para orientações sobre o encaminhamento de qualquer denúncia”.

Em caso de emergência, é possível comunicar a polícia pelo telefone 112. As chamadas são gratuitas. Em situações de xenofobia, os brasileiros são encorajados a recorrer à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), um órgão do governo português. A queixa pode ser registrada por meio do site ou da Linha de Apoio ao Migrante, disponível de segunda a sexta, das 9h às 19h. Os contatos são: Rede fixa – 808 257 257 (custo de chamada local) e Rede móvel – 218 106 191. O CICDR oferece suporte jurídico gratuito para aqueles que necessitam desse auxílio.

O projeto Brasileiras Não Se Calam continua recebendo relatos de assédio e xenofobia sofridos por mulheres imigrantes em diversos países através do Instagram: @brasileirasnaosecalam

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