Prédios parcialmente destruídos por bombardeios. Crédito: Stefani Costa, BRASIL JÁ

Prédios parcialmente destruídos por bombardeios. Crédito: Stefani Costa, BRASIL JÁ

O outro lado da guerra

Regiões separatistas da Ucrânia tentam há uma década a independência, mas o caminho pode ser a anexação à Rússia

15/05/2024 às 06:11

Vika ouvia música no seu telefone quando eu a encontrei nas escadas do prédio onde mora, no bairro de Kirovsky, na periferia de Donetsk. Na manhã fria do dia em que nos conhecemos, ela parecia ignorar — parecia, apenas — que naquela madrugada, 10 de março, o conjunto habitacional onde vive fora alvo de um bombardeio realizado pelas forças ucranianas com projéteis de 155 milímetros, que são de fabricação exclusiva dos países da Otan e que servem à Ucrânia para combater o exército russo — e não atacar civis. 

Três escolas, um ginásio, uma creche e outras residências também foram atingidas, ferindo seis pessoas ao todo. O risco constante de ser a próxima vítima não a impediu de continuar com os seus fones no ouvido. Ela me disse que sentia medo, mas também afirmou estar habituada. Não foi o primeiro ataque que sua vizinhança sofreu nos últimos tempos. 

Dois anos antes, o prédio ao lado ficou destruído por uma explosão. O distrito é um dos mais atingidos da cidade. Ninguém soube falar ao certo quantos mortos ou feridos foram contabilizados naquele dia. Com treze anos, Vika é uma das vítimas da disputa territorial e de identidade cultural no local onde mora. 

“Só queremos paz”, pediu, quando solicitada a enviar uma mensagem ao Ocidente. Um murro no estômago. Tão jovem e exposta tão cedo às atrocidades da guerra. Presenciar o cotidiano daqueles que vivem em um território sob disputa é como caminhar por um vale de sombras, de verdades distorcidas, ao mesmo tempo duras e cruas —e não raro suavizadas ao público geral. 

Nem sempre o ofício do jornalismo é capaz de revelar que os horrores da guerra estão presentes nas vidas dos civis de ambos os lados.

“Só queremos paz”, pediu Vika, quando solicitada a enviar uma mensagem ao ocidente. Um murro no estômago.

Dificuldades 

As dificuldades da cobertura em Donbass começam antes mesmo da chegada ao local. Por conta dos bloqueios impostos à Rússia, adquirir uma simples passagem de avião estando em solo europeu se tornou algo praticamente impossível. Para chegar até Sochi, cidade estrategicamente localizada às margens do Mar Negro, foram quase 24 horas de viagem. 

Em Istambul, o penúltimo destino antes da Rússia, constatei que ter o passaporte brasileiro tem suas vantagens e desvantagens, mas o fato de pertencer a um país que já sofreu com os avanços da interferência americana —como a que culminou no golpe de 1964 e resultou em vinte anos de ditadura — me transformou na principal atração do voo e, depois, me abriu portas. 

Para atravessar a fronteira que dá acesso ao Donbass tive de explicar o trabalho que faria, já que num ambiente de guerra qualquer pessoa é tratada como possível inimigo até que se prove o contrário. Ainda mais quando se está em um território que há dez anos sofre com o cerco de milícias e grupos nazistas fortemente armados pelo próprio governo ucraniano (como nos casos do Batalhão Azov e do grupo C-14, além dos partidos de extrema-direita Svoboda e Pravyi Sektor). 

“A guerra não começou em 2022”, foi o que mais ouvi, feito mantra, de civis e militares em toda a região de Donbass, que agrega as localidades de Donetsk, Kherson, Zaporizhzhia e Lugansk, todas separatistas e pró-Rússia, localizadas no leste da Ucrânia. Após o interrogatório e de ter sido aprovada, o passo seguinte foi negociar com os motoristas que diariamente ficam à espera dos passageiros que cruzam a fronteira da autoproclamada República Popular de Donetsk. 

São homens que perderam os seus postos de trabalho ou que tiveram de encerrar os seus pequenos negócios quando a guerra se intensificou. Nesta região, as histórias são contadas com a urgência de quem é silenciado e quer — precisa— fazer o outro compreender a sua versão dos fatos. Mesmo sem entender uma palavra, foi possível sentir a necessidade de se expressar. 

A situação, me disseram, agravou-se a partir de fevereiro de 2022, quando o presidente russo, Vladimir Putin, avançou com seu exército sobre o território ucraniano. O conflito, antes concentrado nas regiões separatistas, passou a uma conflagração ampla. 

A Ucrânia já vivia uma guerra civil desde 2014, mas a partir da invasão russa o exército de Kiev passou a contar com o apoio da Otan, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, inclusive com munições e armas que atingem civis ucranianos — agora russos, como preferem, inclusive oficialmente, alterando seus documentos. 

A vontade de conversar, de contar histórias ou de simplesmente dividir algo, como uma espécie de catarse, é comum em locais conflagrados. Qualquer coisa serve de gatilho para o início do diálogo. E o futebol pode ser um grande catalizador. Ao longo da viagem a Mariupol, após atravessar a fronteira, conheci o Andrey (evitarei dar sobrenomes para proteger os personagens, embora a maioria tenha permitido o registro de imagem). 

Ele é um entre os muitos que mudaram de profissão e, agora, trabalham como taxistas. Enquanto atravessávamos a estrada, onde muitos combatentes perderam suas vidas, ele me contou entusiasmado que do Brasil conhecia o Corinthians e o Flamengo. Ao encontrar esse ponto de convergência entre nós, finalmente, depois de dias tentando chegar, pude celebrar uma vitória. 

Durante o trajeto até Donetsk, os cemitérios a céu aberto ilustram o cenário. Bandeiras russas e ucranianas fincadas sobre os túmulos de terra escura são a lembrança de que a morte está para todos e quando se percebe que há mais pessoas se movendo na direção contrária à sua, compreende-se que o inferno se aproxima. 

Andrey me lembra que a situação já foi muito pior. Apesar do niilismo do cenário, reparo na beleza que resiste entre os lagos azuis e as vegetações semicongeladas. Eu fiquei hospedada em um prédio no distrito de Leninsky (bairro que leva o nome de Lênin, líder da Revolução Russa) onde residem trabalhadores da construção civil. 

Do meu quarto era possível ver a cidade e ter o silêncio interrompido de tempos em tempos pelo barulho das explosões. Fui aconselhada a correr para o banheiro, em caso de ataque, para me abrigar. É, me disseram, a estrutura mais rígida das construções. Por muitos dias, os raios de sol foram o meu despertador. 

Era comum ver garrafas espalhadas por toda a parte, já que não há água encanada, por conta da destruição das estações de tratamento. Nunca senti tanta falta de uma ducha quente. Durante o processo de banho (sim, porque não era apenas um banho, mas um processo), ouvir “Da Lama ao Caos”, álbum de Chico Science e Nação Zumbi, me ajudava muito, principalmente nos dias em que os ruídos das artilharias faziam as paredes tremerem. 

É um momento de solidão e de quase confronto com a morte. Sou a única jornalista brasileira de que se tem notícia por ali. Eram nestes momentos em que pensava como nós, jornalistas, tínhamos a opção de estar ali — enquanto para a maioria das pessoas não era uma opção. Como no caso de Marina, que enterrou em 17 de março os seus três filhos, vítimas do bombardeio que destruiu a sua casa, em Petrovsky, dois dias antes. 

Ter a oportunidade de denunciar a dor daquela mãe, que não se livrou dos estrondos da artilharia nem mesmo durante o funeral das suas crianças, é mais do que cumprir o dever de ofício, é um compromisso de vida. 

Marina enterrou em 17 de março os seus três filhos, vítimas do bombardeio que destruiu a sua casa, em Petrovsky, dois dias antes.
Foram necessários ao menos três dias para que eu conseguisse me acostumar com o barulho das explosões. Uma jovem professora me contou que até hoje não suporta os ruídos. O fato de ter presenciado o peso da artilharia da Otan explica o trauma. 

Em uma rápida volta pela zona central é comum encontrar estabelecimentos abandonados ou adaptados para a realidade da guerra. Os tapumes de madeira que substituem as vidraças das lojas e dos prédios revelam que não vale a pena insistir: a qualquer momento, um ataque pode colocar tudo abaixo novamente. As largas avenidas do urbanismo socialista impressionam. 

O edifício da Biblioteca Krupskaya, que já foi alvo de bombardeios, é encantador. A solidariedade dos civis também é algo comovente. Diante das dificuldades técnicas que estar em um lugar onde nem o básico se faz garantido, ajudar o próximo é uma regra tácita. Hoje, está mais fácil conseguir internet nos cafés que resistem bravamente. Além, claro, dos saguões dos hotéis, onde a concentração de jornalistas é mais comum. 

Estive em dois deles, ambos bombardeados. No Hotel Central, as marcas de artilharia dos combates ainda insistem em narrar uma história no bar da recepção. No Donbass Palace (o icônico hotel que chegou a ser ocupado pela Gestapo quando as tropas nazistas invadiram a Ucrânia), o aviso de que é proibido entrar com armas está em evidência logo na entrada. 

Pelo menos agora, ao invés do cheiro de fumaça dos explosivos, felizmente é possível escrever sentindo predominantemente o aroma do café. Desde 2014, quando o presidente ucraniano Viktor Yanukovych sofreu um golpe de Estado, parte da comunidade de origem russófona, que defendeu por anos a autonomia em relação à Ucrânia, tem resistido a um cerco de terror, formado por batalhões militares ligados a grupos e partidos neonazistas. 

A situação debandou para uma longa guerra civil na região, ignorada por anos pelo Ocidente, e entendê-la ajuda a compreender o atual estado do conflito. 

Ivan está internado há cinquenta dias no hospital central de traumatologia. Morador do bairro de Kuibyshevsky, ele me disse ter sido atingido por estilhaços durante um ataque de drone operado pelas forças ucranianas enquanto tentava proteger seu carro.

Cidade produtora de carvão é alvo de disputa

A reportagem da BRASIL JÁ foi até Donetsk, uma importante produtora de carvão e agrícola da Ucrânia, que se tornou alvo explícito da disputa entre o Ocidente — especificamente, a Otan— e a Rússia, que rejeita a proximidade da organização liderada pelos Estados Unidos da Ucrânia, historicamente sua área de influência. 

Em meio às estratégias geopolíticas e ao certo cinismo da política internacional está a população do Donbass, como um senhor de 65 anos chamado Ivan que está internado há cinquenta dias no hospital central de traumatologia. Morador do bairro de Kuibyshevsky, ele me disse ter sido atingido por estilhaços durante um ataque de drone operado pelas forças ucranianas enquanto tentava proteger seu carro, um ganha-pão. 

O alvo era o edifício onde vive, mas o projétil atingiu apenas a entrada do prédio. Com a voz rouca e um olhar perdido, deu detalhes do que afirmou ter sido o pior momento da sua vida: “Com o impacto da explosão, perdi os meus óculos. Havia uma grande poça de sangue. Os médicos pensaram em amputar a minha perna, mas, felizmente, não foi necessário”. 

Como o de Ivan, os relatos são muitos —e tristes. Todos na região têm uma história de sobrevivência ou de perda para contar. Lyudmila é uma dessas pessoas. Mãe de cinco filhos, ela foi atingida no dia 21 de janeiro durante uma ofensiva de Kiev ao mercado do bairro de Tekstilshchik, no subúrbio de Donetsk. 

Enquanto aguardava por mais uma cirurgia na perna, contava que a amiga de 28 anos, que até poucos dias dividia o quarto com ela, não teve a mesma sorte. "Infelizmente ela perdeu uma das pernas”, disse, num misto de resignação e revolta. 

Segundo as autoridades locais, a agressão daquele dia matou 27 civis e feriu outros 24, numa operação que contou com artilharia combinada de projéteis de calibre 152 e 155 milímetros, os mesmos que atingiram o prédio de Vika, do início desta reportagem. 

É a munição de fabricação exclusiva dos países da Otan e que deveriam servir à Ucrânia para contra-atacar o exército russo — não os civis. O Ministério das Relações Exteriores da Rússia classificou o ataque como “um ato terrorista bárbaro contra a população civil da Rússia”. Kiev negou a autoria. 

Enquanto Lyudmila me mostrava vídeos e fotos das pessoas que morreram e me contava um pouco sobre como conhecia praticamente todo mundo que frequentava o mercado, ela faz um pedido: “Se Kiev quer fazer parte da Europa, que faça, mas deixe o Donbass em paz”. Me soou cansado e indignado ao mesmo tempo. 

Lyudmila: “Se Kiev quer fazer parte da Europa, que faça, mas deixe o Donbass em paz”

Um histórico de confronto

Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhye declararam independência em fevereiro de 2014 motivados pela anexação da Crimeia à Rússia. A população dessas regiões pressionou o governo central da Ucrânia para que a sua proposta de revisão constitucional fosse realizada no intuito de ampliar a autonomia das regiões. 

Logo após a queda do presidente Viktor Yanukovych, ainda naquele ano, os cidadãos da região pegaram em armas, segundo eles, por autopreservação e na defensa de sua liberdade. Um referendo sobre a independência das regiões do Donbass realizado em 2022 mostrou o apoio da população à ideia de deixar de pertencer à Ucrânia. Em Donestsk o apoio chegou a 99%. 

Kiev nunca aceitou essa proposta, menos ainda a anexação da região de Donbass à Rússia. Os motivos vão desde questões históricas a ideológicas e econômicas. A Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas também não reconhece a independência nem a integração da região a Moscou. Em 2022, a ONU aprovou uma resolução condenando e classificando os referendos como uma “tentativa de anexação” dos territórios ucranianos por Moscou. 

Foram 143 países a favor da posição e 35 abstenções. Rússia, Síria, Nicarágua, Coreia do Norte e Belarus foram os únicos que votaram contra a resolução das Nações Unidas. O Brasil se alinhou contra a independência desses territórios, enquanto Estados Unidos e China se abstiveram. A Rússia só anexou as regiões separatistas no ano passado. 

Na ocasião, Putin afirmou que respeitaria as constituições das autodeclaradas repúblicas (embora, anexadas a Rússia, não sejam repúblicas). Mesmo condenando a invasão à Ucrânia, Brasília mantém boas relações diplomáticas com Moscou. Além disso, o governo brasileiro trabalha pelo fortalecimento econômico do Brics, acrônimo para a reunião de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. 

Mais recentemente outros países passaram a fazer parte do grupo. Para a especialista em Relações Internacionais Caroline Cicarello, a diplomacia brasileira agiu bem ao condenar a intervenção territorial da Rússia, porque reforça a importância dos mecanismos internacionais apropriados para a resolução de conflitos, além de não abrir precedentes na relativização da soberania nacional e nos acordos internacionais, considerando especialmente que a Rússia não atuou apenas nas regiões disputadas de Donetsk e Lugansk. 

“O Brasil também condenou a atuação da Otan no impulso e na escalada de conflito”, afirmou ela, lembrando que o país se equilibra para manter a estabilidade das alianças econômicas, em especial no comércio de fertilizantes essenciais para a agricultura brasileira. Segundo Cicarello, o princípio da Otan mudou desde a Guerra Fria, considerando que passou de uma aliança por segurança internacional com um objetivo específico de ser contraponto à União Soviética para uma aliança bélica expansionista com ausência de finalidade nas três últimas décadas. 

“A elevada capacidade do poder político, econômico e militar dos países-membros da Otan foi central para permitir a sua expansão sem retaliações, em especial considerando que a Otan se utiliza dos instrumentos internacionais como elemento legitimador de sua excepcionalidade, enquanto os países em desenvolvimento não apresentam forças para contrapor este processo unilateralmente ou nos organismos internacionais multilaterais”, afirmou à BRASIL JÁ

De acordo com a pesquisadora, a atuação da Otan é fator de desestabilização da segurança internacional ao burlar ou sabotar as discussões nas instâncias internacionais apropriadas, como o Conselho de Segurança da ONU, e, na prática, os países do grupo atuam unilateralmente. Rússia e China são membros permanentes do grupo, o que significa que, sozinhos, também podem travar as deliberações.

Um senhor caminha pelas ruas do bairro de Tekstilshchik, no subúrbio de Donetsk, onde um mercado foi atingido no dia 21 de janeiro durante uma ofensiva do exército de Kiev. Vinte e sete pessoas morreram.

A aliança militar

Fundada em abril de 1949, a aliança militar composta por trinta e dois países europeus e norte-americanos foi criada com o objetivo de impedir o avanço socialista pelo mundo. O advogado e especialista em Direito Internacional e europeu pela Universidade Nova de Lisboa Felipe Cunha diz que o projeto da Otan nunca foi exatamente o de defender e conter, mas de combater a influência soviética em áreas consideradas em disputa. (como o centro europeu, o centro asiático, a África e a América Latina). 

Para isso, a aliança se vale, segundo ele, de todo tipo de operação subterrânea a fim de causar instabilidade e disputa político-ideológica: “Com o fim União Soviética, esse caráter altivo da Aliança Atlântica se tornou explícito através das várias incursões militares diretas e da adesão sistemática de novos membros europeus rumo às fronteiras da Rússia”. 

Depois do golpe na Ucrânia, em 2014, foi possível estabelecer a troca de um regime que mantinha boas relações com a Rússia por um mais alinhado, ao menos no discurso, aos interesses europeus e dos Estados Unidos, além do cultivo de um sentimento patriótico exacerbado e antirrusso com invocações a figuras colaboracionistas do nazismo, como Stepan Bandera. 

O período de perseguição das populações russófonas de Donbass também foi marcado por intervenções militares comandadas a partir de Kiev. Houve, na região, a determinação de se restringir o idioma russo e seu ensino nas escolas e foi proibida a existência da Igreja Ortodoxa no país. “A resposta da Rússia foi a anexação da Crimeia, via referendo popular, ainda em 2014, e a elaboração de uma política de contenção de danos, via acordos de Minsk, em 2015”, afirmou Felipe. 

Os acordos tiveram a participação da Organização para a Segurança e a Cooperação da Europa, mas, no fim, foram frustrados. Eles previam, por exemplo, o cessar-fogo na região, que vivia em guerra civil, prevendo a anistia aos separatistas e um regime especial que desse mais autonomia aos locais, o que nunca chegou a ser cumprido.

O diretor da fábrica de uniformes, Dmitry Anatolevich. reconfigura o mapa das fronteiras pendurado na parede. Agora, para a sua felicidade, ele faz parte da Rússia.

Como seguir em frente?

Apesar do estado de guerra na região, a vida segue —porque precisa seguir. Numa fábrica de uniformes, o diretor decidiu mexer no mapa da Ucrânia antes que eu pudesse fotografá-lo. “Vamos definir o que provavelmente precisamos tirar deste mapa”, me disse Dmitry Anatolevich. Ele achou prudente reconfigurar as fronteiras da cartografia pendurada na parede. Agora, para a sua felicidade, ele faz parte da Rússia. 

Enquanto bebíamos um café, Anatolevich apontou para as marcas dos ataques de artilharia de Kiev na parede da sede. Depois de tantos bombardeios, resolveu manter os tapumes de madeira nas janelas do prédio, num indicativo de que a qualquer momento tudo pode vir abaixo de novo. Mesmo com a incerteza, Dmitry explicou que todos os funcionários — trezentos ao todo — trabalham menos de oito horas por dia. 

Em contexto de conflito armado é importante que as pessoas possam regressar para casa ainda na luz do dia. Muitos desses funcionários residem em bairros próximos das linhas de frente do combate. No edifício ao lado, as garrafas de vodka e whisky empoeiradas revelam que a mesa de corte e as máquinas de costura estão improvisadas em um antigo bar. 

Embora em guerra há uma década, Dmitry diz que pretende expandir as instalações e empregar mais pessoas. O complexo da nova sede, que agora passa por uma série de obras, em breve será inaugurado. “No momento, nós fabricamos e atendemos várias localidades do distrito de Kirovsk e também algumas cidades da região, incluindo Mariupol”, disse. 

Na despedida, pergunto sobre uma frase em russo que estampava vários moletons expostos nos cabides. O diretor explicou: “Feito Sob Bombardeio”. Segundo ele, a ideia é transmitir a literalidade da frase, já que produzem diariamente sob o som de explosões: “Os obstáculos são imensos, mas nós vamos continuar a trabalhar. E pode ter certeza que nós vamos prosseguir com o nosso desenvolvimento. Nada vai nos impedir ou nos fazer desistir”. 

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