Donald J. Trump durante a campanha presidencial. Crédito: Reprodução X, Donald Trump

Donald J. Trump durante a campanha presidencial. Crédito: Reprodução X, Donald Trump

Divide et impera

O que está em xeque na União Europeia com Trump na Casa Branca

20/01/2025 às 16:26 | 7 min de leitura | Edição Impressa
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Nas memórias de Angela Merkel publicadas no mesmo mês da eleição de Donald Trump para um segundo mandato nos Estados Unidos, a ex-chefe do governo alemão o define como um homem de negócios que olha para as delicadas questões políticas dentro de um quadro binário. 

Segundo a alemã, Trump enxerga um mundo político em que alguém ganha e os outros perdem, numa lógica de concorrência entre os países, em que a possibilidade de cooperação como prosperidade mútua não existe. 

A concepção de uma instituição comunitária de países que compartilhem direitos e deveres para obter ganhos em larga escala, parece, então, bastante incompreensível ou pouco aceitável para o republicano. 

Nas palavras do escritor italiano e repórter de guerra Alberto Negri, em “Trump no ano zero das promessas de paz”, publicado em 7 de novembro no jornal Il Manifesto: 

"Se Trump já vive com muito aborrecimento o fato da política externa ser feita por diplomatas, viagens, negociações e tratativas, imaginem o que ele pensa de Bruxelas e de sua burocracia, em que os 27 estados-membros exigem espaço e voz para emitir a própria opinião". 

Retrato oficial de Trump em novo mandato. Crédito: Divulgação

Os principais temas que a eleição de Trump coloca em xeque na União Europeia são: 

  • O apoio à Ucrânia na guerra contra a Rússia; 
  • A defesa dos países europeus e a necessidade de maior contribuição econômica deles na Otan; 
  • A guerra comercial e o protecionismo prometido por Trump; 
  • E, por fim, o crescimento do populismo de direita e do nacionalismo soberano como única medida aceitável. 


“A eleição de Trump não pode ser tratada exatamente como uma surpresa no cenário mundial. O que assusta é o fato de sabermos que ele é imprevisível e provavelmente vai obrigar a União Europeia a acelerar alguns processos”, diz Michele Bellini, formado pela Sciences Po de Paris e atual responsável pelas políticas europeias do Partido Democrático na Lombardia. 

Em relação ao apoio à Ucrânia, o presidente húngaro, Viktor Orbán, aliado do republicano e que até o final de 2024 ocupa o turno de presidente da União Europeia, desde à eleição de Trump vem fazendo um chamado aos colegas para a adaptação à nova realidade. 

Na reunião informal dos 27 países em Budapeste, no início de novembro, ele afirmou mais de uma vez que “Trump detesta a guerra e que a situação mudará rapidamente, por isso, os países europeus serão obrigados a se adequarem”. 

Durante o G20 no Brasil, o atual chanceler alemão telefonou para Putin tentando uma nova negociação depois de quase dois anos. A ação de Scholz foi acordada previamente com líderes dos Estados Unidos, França e Inglaterra.

A contrariada Meloni como elo 

A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, se viu contrariada porque não esteve entre os consultados, mas publicamente também afirmou tentar um contato neste momento: “é inútil, porque Putin não está disposto ao diálogo”.

Ela tem sido apontada como uma possível ponte entre Trump e os líderes europeus. Diante de um governo alemão de saída e a fragilidade da aliança construída por Macron para continuar no governo, Giorgia Meloni lidera uma coalizão estável neste momento. 

Além disso, ser uma política populista de extrema direita lhe dá credenciais ideológicas com o novo presidente dos Estados Unidos. Por fim, ela tem conseguido ampliar sua presença em âmbito europeu. 

Nas alianças políticas que acabam de formar a nova Comissão Europeia presidida por Ursula von der Leyen, Giorgia Meloni conseguiu emplacar o político de seu partido, Raffaele Fitto, como um dos três vice-presidentes-executivos. 

Presidente da Ucrânia, Volodmir Zelensky, e a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni. Crédito: Divulgação

O calcanhar de Aquiles de Meloni é justamente seu veemente e declarado apoio à Ucrânia desde o início da guerra. A distância com Trump nesse quesito não está apenas no suposto fascínio que ele nutre por Putin, segundo as memórias de Angela Merkel, mas aparece desde a promessa de pôr fim à guerra em 24 horas até a nomeação de Tulsi Gabbard para dirigir o serviço de Inteligência Nacional. 

A ex-democrata desde 2022 condena as ações do governo Biden de apoio aos ucranianos. No xadrez da posição europeia, Ursula von der Leyen pretende a substituição do gás líquido russo que ainda abastece o bloco em troca de maior aporte do produto proveniente dos Estados Unidos. 

Em 2023, de acordo com o Conselho Europeu, o país cobria uma quota de 19,4% da importação total de gás nos 27 países. Seria um gesto de abertura para negociar com a política protecionista de Trump, mas também na questão da guerra e o apoio à Ucrânia. 

Oficialmente, a presidente da Comissão Europeia declarou, após a vitória do republicano, que Estados Unidos e Europa são mais do que simples aliados e historicamente trabalham juntos em uma aliança transatlântica comum. 

Bellini aponta que desde seu primeiro mandato, Trump não parece reconhecer essa relação especial. 

Ele lembra também que desde o final da guerra fria e a ascensão da China no cenário global, as prioridades estratégicas dos Estados Unidos se voltaram para o Pacífico e a menor centralidade geopolítica da Europa pesou no aumento de cobranças para que os europeus começassem a contribuir mais para garantir a própria segurança. 

Em seu livro “Salviamo l’Europa”, Negri apresenta como insuficiente o modelo no qual a integração europeia foi concebida. Segundo ele, a união foi construída principalmente pelo viés econômico, fiel a um multilateralismo baseado nas leis do mercado neoliberal. 

Esse modelo e método de atuação mostram suas fragilidades desde às crises internacionais de 2007, mas especialmente depois de 24 de maio de 2022, com a invasão russa à Ucrânia. 

“Existe uma vasta literatura nas relações internacionais que embasam a ideia de que a União Europeia seja um ator global completamente diferente dos outros, exatamente porque defende seus valores e interesses não através da força militar, mas pela imposição do direito e das regras, usando como contrapartida o acesso ao rico mercado interno.” 

Mudança através do comércio

Recordando a política de distensão da Alemanha Ocidental com os países da União Soviética na década de 1970, Bellini aponta como a Wandel durch Handel (mudança através do comércio) tentou promover uma política gradual de transformação dos países através da abertura econômica e do estabelecimento de fortes laços comerciais. 

É este o parâmetro que ainda hoje guia a relação da Europa com regimes considerados pouco democráticos. A interconexão econômica através da globalização sempre foi um paradigma para a União Europeia. 

O que destaca Bellini é que, quando os tanques russos ultrapassaram as fronteiras ucranianas, ficou claro que aquele era o fim definitivo da ilusão europeia de que poderia haver regras internacionais compartilhadas que bloqueariam objetivos e interesses políticos de governos nacionais. 

Por outro lado, o estudioso mostra como para os Estados Unidos isso sempre foi bastante claro. 

“Eles promoveram a globalização na medida em que essa fosse parte de uma ampla estratégia de hegemonia global e nunca sacrificaram os interesses de seus governos em nome de princípios do multilateralismo.” 

Os Estados Unidos nunca assinaram o tratado internacional que os colocaria sob a jurisdição da Corte Penal Internacional. Trump tentou deixar a Organização Mundial da Saúde em plena pandemia de covid. 

Em 2011, o governo Obama passou a reduzir o financiamento norte-americano à Unesco em represália à admissão da Palestina como membro pleno do órgão. Os Estados Unidos prosseguiram com a invasão ao Iraque em 2003, mesmo contra deliberação do Conselho de Segurança da ONU. 

Depois da invasão russa, ainda em 2022, Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para Relações Exteriores e a Política de Segurança admitiu a necessidade de uma reflexão e mudanças de paradigmas para o bloco. 

As autoridades europeias e vários governos admitem que a discussão sobre a criação de um novo débito comunitário para financiar a transição militar está sendo feita. Isso não significa haver consenso para financiar o setor ou para compartilhar despesas em um âmbito que ainda é visto como exclusivamente nacional.

Longe disso. O que está posto são os possíveis riscos de o governo Trump 2 ser hostil às demandas europeias na área de segurança. Bellini lembra que em 1954, o projeto de uma Comunidade Europeia para a Defesa Comum propunha a formação de uma autoridade supranacional também em campo militar e a formação de um exército único europeu. 

“Era um pilar político importante que faliu e mudou a direção e as prioridades do processo de integração para um viés quase exclusivamente econômico.” 

Aumento de despesas militares

Hoje, está em jogo também a maior veemência com que a Otan vai seguir na exigência de que os europeus invistam pelo menos 2% do PIB em Defesa. O atual secretário-geral da instituição, o holandês Mark Rutte insiste que a cifra deveria ser de no mínimo 4%. 

O aumento de despesas militares provavelmente se traduzirá em aquisições da indústria de armamentos dos Estados Unidos. 

Um estudo do Parlamento Europeu feito em 2019 evidenciava que um acordo para gestão dessas compras em larga escala poderia resultar numa economia de pelo menos 22 bilhões de euros por ano. 

Para além disso, é importante refletir, como argumenta Bellini, que sem uma coordenação europeia na questão militar há um grande risco do retorno à uma corrida armamentista de exércitos nacionais, fazendo lembrar o passado europeu em que se viveu dramaticamente duas guerras mundiais do século 20. 

Reunião de comitê militar de defesa na Otan, em Bruxelas. Crédito: Divulgação

Na questão econômica, em setembro deste ano, o economista, ex-presidente do Banco Central Europeu entre os anos de 2011 e 2019 e ex-primeiro-ministro italiano entre 2021 e 2022, Mario Draghi apresentou o relatório que fez a pedido da Comissão Europeia sobre a competitividade do bloco. 

Apontando gargalos e indicando caminhos, o documento intitulado “Looking ahead” (Olhando para o futuro) sentencia que se a União Europeia não começar a investir de maneira maciça —pelo menos 800 bilhões de euros anualmente— no desenvolvimento de microchips, inteligência artificial, energia verde e armamentos, ficará à mercê e será a ponta mais fraca na disputa bipolar entre Estados Unidos e China em uma economia de guerra. 

Em comparação com 2016, os dados mostram economias mais frágeis na União Europeia depois dos anos de pandemia e das consequências econômicas da invasão russa à Ucrânia. 

A preocupação com a guerra comercial prometida por Trump vai desde as implicações para uma indústria tradicional já em crise —como aquela automotiva— até as consequências que maiores taxas de importação dos produtos chineses podem gerar no mercado interno. 

O temor é que os chineses comecem a ofecerer mercadorias no âmbito europeu com preços mais baixos do que aqueles praticados pelas empresas europeias, para compensar as perdas no mercado americano. 

Além disso, é provável que a administração Trump busque negociar acordos bilaterais com os países europeus, dividindo os governos e colocando-os em uma situação delicada diante dos próprios eleitores. 

Por fim, é possível também que a bloco encontre dificuldades para continuar impondo controle às big techs sediadas nos Estados Unidos. Recentemente, por exemplo, a Comissão Europeia emitiu uma multa de cerca 800 milhões de euros contra a Meta pela concorrência desleal no serviço de marketplace instalado pela empresa no Facebook. 

Em um governo que colocou o empresário Elon Musk entre seus membros, é difícil imaginar posturas e reações nesse âmbito. Diante desses cenários, Mário Draghi defendeu que um dos pontos prioritários para dar início aos processos necessários de investimento e aumento da competitividade econômica e geopolítica da União Europeia é a abolição do critério de unânimidade para aprovação de reformas. 

Em uma reivindicação que não é de agora, o economista ressalta a importância de adotar o critério de maioria qualificada, formada por pelo menos 55% dos estados-membro, para a realização de medidas em tempos de complexos contexto global. 

O quadro que emergiu das últimas eleições para o Parlamento europeu de 2024, porém, impôs um novo obstáculo para essa renovação. Como nota Bellini, a atual legislação tem se confrontado com uma normalização dos partidos eurocéticos dentro das instituições. 

Se em 2018, muitos tinham como prioridade a saída da União Europeia, em 2024, essa agenda já não compunha a maioria dos programas eleitorais. 

“Atualmente é muito difícil distinguir entre quem quer uma reforma real do sistema —para ceder espaços de sua soberania em prol das políticas comunitárias— e quem está propondo um blefe.” 

Segundo ele, muitos atores políticos que insistem na necessidade de reformas do sistema europeu, buscam agir dentro das instituições para bloquear os mecanismos de expansão e integração. 

Até agora, os acordos políticos costurados por von der Leyen estão buscando uma ponte com políticos mais extremos que abrem brechas para a negociação, como é o caso de Giorgia Meloni. 

O resultado até aqui é que, a partir de dezembro, teremos também na Europa, um governo que dá um passo a mais no espectro à direita do cenário político.

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