Quando a própria existência é um ato de resistência contra a sociedade em que se vive, foi a forma como Nico Guglielmo, de 21 anos, respondeu à reportagem sobre como é ser atualmente uma pessoa trans na sociedade italiana.
A frase “La mia esistenza è resistenza” está atuada em Nico e conta um pouco do processo de autoconscientização sobre quem é.
“Hoje tenho mais segurança e sou mais extrovertido até. Sei quem eu sou e isso ajuda muito a lidar com a opinião e os julgamentos alheios.”
Uma das primeiras coisas que Nico diz à reportagem é que não gosta da ideia de que tenha passado por uma transição para falar do período em que iniciou o tratamento hormonal. Ele explica:
“Não gosto de falar em transição, porque não sou outra pessoa, sou sempre eu. Meus pais não perderam uma filha, porque eles nunca tiveram uma filha, eles tinham um filho que ainda não sabia disso.”
A legislação italiana, porém, impõe dificuldades para a adequação de seus documentos.
A Itália não prevê a possibilidade da autodeclaração dos sujeitos trans para a mudança dos registros civis ou o início dos tratamentos hormonais.
É necessária perícia médica que emita um atestado de idoneidade mental do indivíduo diante das decisões que está tomando. A mudança nos documentos só é feita por meio de pedido à Justiça, que poderá ou não autorizar as alterações nos dados.
Há um custo e um período estimado de cerca dois anos para que o processo seja realizado. Para poder obter tratamento e consultas médicas no sistema de saúde pública, a perícia psiquiátrica também é necessária.
“Pelo menos na universidade eu tive apenas que fazer o pedido para a mudança de carreira para meu nome social e a questão foi resolvida em poucos dias”.
Segundo Nico, o discurso de ódio a LGBTQIANP+ ganhou força na sociedade italiana, tendo a população trans um dos alvos preferenciais, mas, ainda assim, ele vê como positivo a possibilidade de acesso, ainda que com dificuldade, às terapias hormonais e aos tratamentos pelo sistema público.
O jovem conseguiu agendar uma primeira consulta para a operação que lhe permitirá retirar as mamas no final de 2028.
No último relatório do instituto de pesquisa Euripes, publicado em maio de 2024, quando perguntados sobre a possibilidade de autorização de terapias e procedimentos médicos para a readequação física de pessoas trans através da autodeclaração, sem a necessidade de certificação psiquiátrica, apenas 40,7% dos italianos se disseram favoráveis.
Entre os jovens de 18 a 24 anos, 58,5% dos entrevistados concordam que a autodeclaração basta. São favoráveis em maioria de 52,9% as pessoas com idades entre 25 e 34 anos. Nico lembra que a aprovação de mudanças nos registros civis e médicos sequer está no horizonte das discussões legislativas no país.
A ofensiva contra famílias não tradicionais
Desde a campanha eleitoral em 2022, a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, prometeu leis que criminalizem sujeitos que, segundo ela, coloquem em xeque a estrutura e os privilégios de um modelo familiar, o único dito tradicional.
Com a falsa retórica de proteger as crianças, seus projetos apontavam para dificultar a constituição de outras formas familiares, que não sejam necessariamente homem e mulher casados e com seus filhos.
O que, aliás, não constitui nem mesmo a organização familiar de Meloni e de seu vice, Matteo Salvini, por exemplo.
Recentemente, uma dessas promessas de campanha virou normativa governamental, sendo oficializado em 18 de novembro deste ano:
a partir de agora a gravidez de substituição, a barriga de aluguel, como se diz no Brasil, se tornou crime com penas que vão de três meses a 2 anos de detenção, além de multas que podem variar de 600 mil a 1 milhão de euros, mesmo quando ocorrida fora da Itália.
Quando veio lançar a tradução do seu livro “O crime do bom nazista”, Samir Machado de Machado lembrou que a primeira minoria perseguida pelo regime nazista alemão foi a comunidade homossexual de Berlim.
“Eles começaram invadindo o Instituto de Sexologia e a primeira queima de livros na Praça da Ópera foram os livros do instituto. Às vezes, diante de melhoras e da possibilidade de uma conquista de espaços através da questão econômica, muitos de nós se esquecem dessa ameaça diante de regimes autoritários”.
A criminalização da barriga de aluguel
No senso comum e com certa dose de preconceito, a gravidez por substituição ficou conhecida como “barriga de aluguel” ou “maternidade usurpada”.
No Brasil e na maioria dos 66 países onde a prática é legal e regulamentada, ela só é possível por meio de acordo solidário, não pecuniário.
Na Itália, a gravidez por substituição é proibida desde 2004. O que muda agora é a criminalização do cidadão italiano que recorrer a ela em um país onde a prática é legal.
Eva Benelli escreve em seu livro “Gravidanza per altre persone: tra disinformazione, discriminazioni e diritti negati” que reforçar a criminalização de um ato que já era proibido no país demonstra o desejo de cortar espaços e possibilidades em uma realidade complexa, com o agravante de “descontar nas crianças, o desejo de punir os pais”.
Mesmo que a nova norma acrescente mais uma camada na criminalização da gravidez por substituição é evidente que o texto traz o problema de que essa visão não é realmente compartilhada internacionalmente, nem mesmo no território europeu.
No mundo, são 66 países onde a prática é regular. Entre eles, recentemente, como lembra Benelli, a católica Irlanda aprovou em 26 de junho de 2024 a legalização da gravidez por substituição na sua forma solidária.
Uma comparação perigosa: quando direitos viram crime
Além disso, há também na declaração italiana de crime a comparação da gestação de substituição com crimes como a pedofilia, terrorismo, genocídio e tráfico de pessoas.
Outro problema na criminalização é, como definido pela Corte Europeia de Direitos Humanos, o risco de que a tutela da identidade dos menores nascidos sob a gestação por substituição não possa ser plenamente realizada, uma vez que poderá ser negado o reconhecimento de filiação parental de pelo um dos pais ou mães.
Outra questão é como se dará a fiscalização. Oriundos de países como o Brasil ou os Estados Unidos, onde o indíviduo recebe uma certidão de nascimento e a cidadania pelo direito de nascimento, casais poderão entrar na Itália e pedir o reconhecimento dos registros civis sem talvez levantar suspeitas.
Os que vierem de países onde esse registro não ocorre, como na Grécia ou na Ucrânia, casais terão de passar pelos consulados para conseguir o documento dos filhos e, nesse momento, é que os funcionários poderão realizar alguma fiscalização ou pedir informações sobre nascimento do filho para o próprio casal.
A hipótese é que para casais heterossexuais será possível dizer que o filho foi fruto de uma concepção tradicional e que a mulher teve o bebê no exterior.
No caso de casais homoafetivos, que desde 2023 têm visto seus direitos parentais serem negados, é previsível uma situação mais complicada. A lei não é retroativa e não prevê interferência em processos já iniciados no exterior.
Ainda assim, ativistas e associações de direitos civis, como a Associazione Luca Coscioni, anunciaram dezenas de recursos para impedir que a norma seja aplicada.
Em abril de 2024, a associação apresentou ao Parlamento uma petição com mais de 10 mil assinaturas solicitando a discussão legislativa de um projeto de lei que regulamente a gravidez por substituição na sua forma solidária, com o intuito de impedir que incertezas nas normativas do assunto pudessem impedir “a tutela dos direitos de todos os envolvidos, especialmente, dos menores que nascerão ao final dos processos que se realiza de maneira inteiramente regular em países estrangeiros”.
Concretamente, a lei instaura terror para dissuadir pessoas que desejam a constituição de uma família através de filhos gerados legalmente por terceiros em outros países.
Ainda que as estatísticas não tragam dados exatos, uma vez que a prática é ilegal, o cenário aponta para uma maioria de casais heterossexuais, cerca 90%, a usarem o recurso.
Ainda assim, é maior a probabilidade de que sejam casais homossexuais os que enfrentarão concretamente as maiores dificuldades para registrar e oferecer plenos direitos civis a seus filhos. Além claro, de a partir de agora estarem sob a ameaça da prisão.
O futuro das famílias LGBTQIANP+ na Itália
A criminalização da gravidez por substituição mesmo quando realizada no exterior é um passo a mais na batalha contra o reconhecimento da parentalidade homoafetiva.
Ainda segundo o relatório Euresis, se 69,3% dos italianos são a favor da união civil, independentemente do orientamento sexual, a adoção de crianças por casais homoafetivos fica favorável a 54,2% dos entrevistados, ainda que esse número tenha crescido consideravelmente nos últimos anos.
Em 2019, por exemplo, o mesmo ponto obteve 31,1% de favoráveis. Novamente, são os mais jovens que concordam em maior número com essa igualdade de direitos.
Na faixa entre 18 e 24 anos, a adesão é de 72,2% e 67,7% para quem tem entre 25 e 34 anos.
O reconhecimento dos filhos por ambos pais e mães em casais homoafetivos também tem um parecer favorável da maioria da população, nesse caso, 58,4%.
Já para a gestação por substituição, que através das possibilidades tecnológicas, permite a um casal, homo ou hétero, de gerar um filho com seu material genético, através da gestação feita por uma terceira pessoa, a aceitação cai para 37,1%.
Se em 27 de outubro de 2021, a partir da reprovação no Senado do projeto de lei “Medidas de prevenção e combate à discriminação e violência por motivos de sexo, gênero, orientação sexual, identidade de gênero e deficiências”, conhecido também como decreto Zan —o nome do parlamentar de centro-esquerda que o propôs, Alessandro Zan (Partido Democrático)— ficou explícito a alegria de uma classe política ao negar direitos a uma parte da população italiana, desinteressando-se também do contraste a discriminação e a homofobia, a justificativa oficial também naquela ocasião foi a proteção das crianças.
Com 154 votos contrários e 131 favoráveis, foi recusada a lei que propunha principalmente a extensão do agravante penal já aplicado para crimes de violência e incitação ao ódio baseados em discriminação racial, étnica e religiosa aos casos de violência motivada por questões de orientação sexual, identidade de gênero e deficiências.
Segundo uma pesquisa feita na época pelo instituto Demos&PI, 62% da população era favorável à sua aprovação. Desde 1993, já houve sete tentativas de aprovação de uma lei contra a homofobia e a transfobia no país.
Só em 2013 se aboliu a distinção e a hierarquia de direitos para filhos legítimos e ilegítimos. Eva Benelli recorda o Código Civil italiano de 1942 que distinguia os filhos entre legítimos —que nasciam de um casal casado— e ilegítimos, quando nascidos de sujeitos que não estavam unidos pelo matrimônio.
Mesmo querendo, pela lei, a filiação extraconjugal não podia ser reconhecida, o que impedia um pleno direito tutelar do menor, por exemplo.
Entre os filhos ilegítimos havia mais uma hierarquia: os naturais, que nasciam de casais que não eram casados; e os filhos de adultério que poderiam ser reconhecidos apenas pelo pai ou mãe que não fosse casado com outra pessoa.
Pelo menos oficialmente, caso ambos os pais fossem casados com terceiros, judicialmente as crianças não poderiam ser reconhecidas por nenhum deles. Eram os chamados filhos de ninguém.
A hierarquia criada para diferenciar a categoria filho no códico civil vinha encoberta por um discurso moral, mas ocorria especialmente para distinguir os direitos de herança patrimonial.
Apesar das mudanças que ocorreram na década de 1970, dando direitos a todos os filhos, os considerados legítimos continuaram mantendo privilégios até 2013.
Em 2022, a Itália votou contra um Certificado Europeu Único de Filiação. Em 2023, novamente sob o falso discurso de proteção das crianças, o governo de Giorgia Meloni através de uma circular ministerial recomendou que as prefeituras parassem com os registros civis de filhos dos casais homoafetivos.
Em algumas cidades houve a cassação retroativa dos documentos emitidos. Atualmente, a solução encontrada tem sido a adoção por casos particulares por um dos parceiros.
O que consiste em um processo judicial, com um parecer que analisa e julga cada casal e certifica os que considera idôneo. Até a saída da decisão judicial, um dos pais ou mães não consta no registro da criança.
O que se vê, com mais essa lei a favor da dita família tradicional, é a reconstrução da hierarquia nos tipos de filhos, adicionando, como lembrou Eva Benelli, a perversidade de agora categorizá-los como “filhos de um crime”.
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