24/08/2024 às 07:48
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A gente começa essa viagem vínica em Cheleiros, a cinquenta quilômetros de Lisboa. Foi ali, em uma quinta carente de reformas, que o empresário e ex-atleta profissional, André Manz, fincou seus pés e ganhou o respeito da comunidade local por investir no resgate de uma casta autóctone praticamente extinta: a jampal.
Em Portugal há 33 anos, Manz era apreciador de vinho, mas a verve de produtor começou meio ao acaso. Originalmente, o terreno adquirido em 2007 era para promover a expansão de seus negócios na área fitness, que ele abraçou quando encerrou a carreira de goleiro devido a uma contusão.
“Fiquei encantado com a história de Cheleiros, uma vila do século 12 cheia de história e com um passado ligado à produção de vinho”, relembrou à BRASIL JÁ.
Conversa vai, conversa vem, ofereceram-lhe um vinhedo, e Manz virou um agricultor de final de semana, disposto a produzir o próprio vinho, como um hobby.
“Queria produzir algo diferente do que estava acostumado a beber”. Foi aí que a uva jampal, uma das quase trezentas castas portuguesas, cruzou o seu caminho.
“Identificamos facilmente as uvas castelão, mas a sepa branca exigiu uma pesquisa mais aprofundada, pois estava praticamente extinta na esfera de produção comercial.”
Apesar de também produzir tintos, foi a jampal que fez com que os vinhos de Manz partissem de uma pequena produção para ganhar fama internacional.
“Produzir vinho branco pode ser mais complexo e o investimento inicial não foi pouco. Mas, hoje, percebo o quanto valeu a pena.”
A menina dos olhos de Manz, no entanto, é o Manz Cheleiros Dona Fátima, responsável pelo sucesso internacional da marca.
O nome é uma homenagem à sogra do produtor e tem a ver com a força e a perseverança da uva jampal: trata-se de um rótulo monocasta com grande influência atlântica e complexidade, o que o torna ideal para ser apreciado em refeições à beira-mar.
Casado com uma portuguesa e há mais de 30 anos morando em Portugal, Manz garante que foi bem recebido pela comunidade em Cheleiros.
Afinal, além de trazer uma nova dinâmica à produção de vinho da região, faz questão de manter projetos que auxiliam o entorno, seja no aspecto social, com atuação focada na terceira idade, seja no aspecto cultural, com a criação de um museu que conta a história da vila.
Na sua propriedade, Manz também promove atividades de enoturismo e recebe especialmente grupo de estrangeiros dispostos a descobrir o que a uva jampal tem de tão especial. E não é por acaso: os vinhos da ManzWine chegam a vários mercados do mundo, especialmente ao mercado asiático.
“As visitas à propriedade acabam movimentando Cheleiros e apresentam uma região até pouco tempo desconhecida por quem vem de fora”.
Empresário multifacetado, com investimentos da área fitness, em eventos de animes e, mais centemente, na produção de pranchas de surfe, Manz não esconde sua paixão pelo vinho.
“É um imenso orgulho, como brasileiro, ter ajudado no resgate de uma uva esquecida e poder contribuir para a preservação da história de Cheleiros e região”, afirma, orgulhoso.
Aposta no Dão
O gosto pelo vinho, no melhor exercício da enofilia, costuma ser a porta de entrada para muitos apreciadores da bebida, que passam de consumidores a produtores. Foi assim que Juliana Kelman foi cooptada ao mundo de Baco, deus do vinho.
A produtora conta que pelos idos de 2010, com o real valorizado em relação ao euro, começou a ter acesso a vinhos de maior qualidade, incluindo rótulos portugueses. “Na mesma época, saiu a minha cidadania por parte de meus avós, que vieram ao Brasil nos anos 1940.
A partir de então, começamos a resgatar laços familiares e fazer mais viagens a turismo para Portugal”, relembrou à reportagem.
Foi nessa época, que lá e cá, Juliana começou a criar afeição pelos vinhos do Dão, pouco conhecidos à altura em terras brasileiras. “Fiz alguns cursos e dificilmente se falava no Dão, que tem vinhos de muito frescor e elegância, além da alta capacidade de guarda.”
Na época, os vinhos da França, da região de Bordeaux, tinham muito mais cartaz. A aproximação com os vinhos da região por meio da Viniportugal, a Associação Portuguesa da Indústria de Vinhos, fez a então admiradora de vinhos ter um estalo: por que não investir na região?
O que foi um pouco curioso, dada à origem minhota de seus antepassados. “Vi no Dão uma oportunidade de mercado.”
Ciente da necessidade de ter uma boa parceria em terras portuguesas, contratou consultores, dentre os quais estava António Narciso, que se tornou enólogo da Quinta da Família Kelman, como batizou a pequena propriedade em Nelas, concelho que pertence ao Distrito de Viseu e uma referência da denominação de origem protegida do Dão.
“Quando cheguei, as pessoas estranharam um pouco. O que uma carioca estava buscando por ali? No entanto, logo perceberam que a ideia era levar o projeto a sério e fui acolhida, especialmente por envolver a mão de obra qualificada da região”, disse.
“O meu time é o mesmo desde o começo do projeto”. A confiança mútua, aliás, permite que ela divida o seu tempo entre Nelas e o Rio de Janeiro, onde o marido e os filhos vivem.
A primeira safra veio em 2013, acompanhada de um árduo trabalho de recuperação e compreensão das vinhas. Os primeiros vinhos com a marca Kelman —um tinto e um branco— foram engarrafados dois anos depois.
“Empreendi do zero. A parte comercial é sempre um desafio e há uma grande diferença entre apreciar e produzir vinhos.” Hoje, a marca Kelman conta com cinco referências: dois tintos, um branco, um rosé e um palhete, um tipo de vinho mais fresco que mistura uvas brancas e tintas em seu processo de produção.
Os vinhos são destinados especialmente à restauração e às garrafeiras, os famosos estabelecimentos que comercializam vinho e outras bebidas em terras portuguesas. Para o futuro, os planos são firmes.
“O objetivo é avançar, mesmo em meio a tantas marcas. A produção de vinhos não é uma prova de 100 metros rasos. É uma maratona, onde é preciso encontrar sustentabilidade e ritmo.”
Como fênix
A fênix é uma ave da mitologia grega com plumagem vermelha e dourada capaz de renascer das próprias cinzas. Foi inspirada nessa narrativa que a produtora de vinhos brasileira Bianca Rocha batizou um de seus vinhos.
E, ao entender a história por trás do rótulo, não poderia haver nome mais adequado. A vontade de empreender no setor viticultor surgiu à época da pandemia, quando muita gente —incluindo Bianca e o marido, Luiz Vianna— repensou os planos para o futuro.
“Nós estávamos em Londres e queríamos mudar de ares. A paixão pelo vinho e pelo Douro acabou falando mais alto e compramos a ta do Vianna em 2020”, disse Bianca.
No entanto, o projeto realmente começou a caminhar em 2021: ela ficou responsável pelo negócio enquanto o marido iniciava um novo desafio profissional em Madrid.
Quando a coisa começou a andar, veio a consciência de que produzir vinhos vai além das imagens romantizadas em filmes.
De início, a produtora colheu as uvas que estavam na propriedade e, de cara, passou algo inimaginável: a propriedade no Mesão Frio, assim como outras da região, foi tomada por um incêndio de grandes proporções, que levou parte da produção.
“Salvamos uma pequena parcela das vinhas e das uvas e, curiosamente, as tintas resultaram em um vinho com leve sabor defumado, que o tornou especial.”
Aí veio a ideia do Phoenix 197, que surgiu das uvas “renascidas das cinzas” e resultou em uma edição especial de apenas 197 garrafas. No ano passado, vieram os primeiros vinhos com a real pegada da Quinta do Vianna, com as castas trabalhadas cuidadosamente na propriedade.
“Fizemos oitocentas garrafas de espumante [Bibis Bullae], quatrocentas de branco [Bibis Sileo] e quinhentas garrafas de rosé [Bibis Blush]”, afirmou.
O rótulo rosé foi apresentado durante o evento 50 Tons do Douro, realizado no final de maio deste ano em Mesão Frio, como forma de valorizar o trabalho dos produtores da região que investem neste tinho de vinho.
Com o projeto nos trilhos, a ideia, agora, é seguir com uma produção pequena, mas com uma aposta forte em rótulos especiais, com pouca intervenção e com uma pegada bem autoral.
“Cada vinho tem seu nicho. Nossa intenção não é chegar aos supermercados, porque os preços não compensam. Queremos ter algo realmente especial.”
Para chegar lá, a produtora passa longe do estereótipo do que chama de “dondoca de varanda”. Ela faz questão de colocar a mão na massa. Ou melhor dizendo, nas uvas. “Participar do trabalho no dia a dia é muito importante, além de economizar na mão de obra.”
Nesse processo, Bianca conta com ajuda dos demais produtores, que a acolheram e se tornaram amigos. “Acho que o processo de adaptação foi relativamente fácil porque já vivíamos há muitos anos no exterior. Outra vantagem é que muita gente deixa a região e, ter mais produtores [presentes], enriquece a dinâmica da economia local. Não jogo tão bem, mas já me sento à mesa”, brincou.
Ciente de que só da pequena produção de vinhos a Quinta do Vianna não se mantém, ela diz ter começado a trabalhar com o olival de suas terras para produzir azeite em breve: “em dois ou três anos.” Outra aposta é no alojamento único na propriedade, com direito a degustações e pequenos eventos.
Formada em administração, com carreira em consultoria, nas artes plástica, na literatura e até como chefe de cozinha, Bianca acredita que a escolha em se tornar produtora de vinhos no Douro foi uma guinada na vida.
“Começar a produção tem as suas dificuldades e seus custos. Mas para quem tem resiliência, tudo é possível.”
Busca pela excelência
A produtora da Quinta Alta, Fernanda Zuccaro, é direta e reta. “Eu arrasto a bunda para colher uvas”, disse, garantindo que participa ativamente de todas as etapas de produção de seus vinhos no Douro.
Com uma profícua carreira no marketing político, ela sonhou em ter a própria produção de vinhos ao lado do marido falecido, Francisco Santa Rita, morto no ano passado.
“Ele foi o maior incentivador o projeto e se hoje estou aqui, é por causa dele”, disse, emocionada. A sementinha do projeto da Quinta Alta começou a ser plantada lá atrás, ainda em 2010.
“Passamos uma semana no Uruguai, visitando vinícolas. E em uma de nossas longas conversas, ele perguntou: o que você realmente gostaria de fazer? No que prontamente eu respondi: vinho!”, disse.
Disciplinada, Fernanda passou a se dedicar a cursos sobre o universo do vinho em São Paulo, na Argentina e começou a frequentar feiras de vinho, com destaque para a Vinhos de Portugal, que é realizada em São Paulo e no Rio de Janeiro há exatos dez anos.
As viagens do casal também acabavam incluindo a apreciação de vinho. “O curioso é que sou descendente de italianos e não tinha nenhuma relação mais próxima com Portugal. Até conhecer o Douro de perto”, contou Fernanda.
As curvas sinuosas, repletas de vinhas, com sua geografia e histórias únicas e a diversidade das castas —perto de trezentas— fez o casal bater o martelo e organizar a mudança para o Norte de Portugal.
“Não queria ir para um lugar e fazer vinho de Carbenet ou Shiraz, que são cultivadas e produzem vinho por todo mundo. Hoje as uvas portuguesas são mais conhecidas, mas ainda há muito a se explorar”, afirmou a produtora.
Quando tudo parecia encaminhado, com a propriedade escolhida e a mudança consolidada, Francisco adoeceu. “Foi um processo doloroso, mas sigo porque ele acreditou em mim.”
Ao longo da caminhada, Fernanda tem se mantido firme à frente da Quinta Alta e cumpriu um desejo que veio lá de trás, quando a ideia de produzir o próprio vinho surgiu. Ela queria um bom rosé e chegou lá com seu Qant, feito de Touriga Francesa, um dos sete rótulos com a marca da Quinta Alta.
“O rosé foi o que mais demorou a chegar no ponto que buscava. Foi um longo processo.” O vinho topo de gama da Quinta Alta leva o seu sobrenome, Zuccaro, que ela define como um vinho fora da caixa, feito com uvas das vinhas velhas de Touriga Nacional, Tinta Roriz, Sousão e Barroca.
“Me considero uma produtora raiz, com manutenção do padrão e respeito à consistência, mas com um pouco de ousadia-” Exigente, só engarrafa um vinho se considerá-lo muito bom.
“O processo para se produzir um bom vinho é longo. É uma indústria cara e exaustiva. Não tinha a exata noção quando comecei”, admitiu. “Mas Douro é isso. Todos os dias agradeço por estar aqui.”
Gigante do Douro
Mesmo quem não transita no universo de Baco, certamente já ouviu falar na Menin, uma das grandes produtoras de vinho na região do Douro.
O que talvez nem todos saibam é que por trás do projeto milionário, que surgiu em 2018 e já recebeu 45 milhões de euros de investimentos, está uma dupla de brasileiros: Rubens Menin e Cristiano Gomes.
O destino da dupla se cruzou no mercado financeiro, mais precisamente no Banco Inter, fundado por Menin, também fundador da CNN Brasil e co-fundador da construtora MRV Engenharia.
O apreço de ambos pelo vinho e o desejo de Cristiano em dar uma guinada na carreira foi o ponto de partida para surgir a Menin Douro States.
“Depois de uma visita ao Douro em 2013, na Quinta do Crasto, a coisa ganhou forma e em junho de 2018, adquirimos as duas primeiras quintas, em Pinhão e na Régua (Quintas da Costa de Cima e do Sol)”, contou à BRASIL JÁ.
A aposta inicial foi explorar onze hectares de vinhas velhas, para criar topos de gama, ou seja, vinhos realmente diferenciados e de alto valor agregado. Em 2021, o grupo adquiriu a Horta Osório Wines, adega recém-construída e totalmente equipada cujos herdeiros não tinham interesse de manter.
“Surgiu então a HO, que reforçou a nossa linha de produção”, afirmou Cristiano. Atualmente, pouco mais de seis anos depois de fundada, a Menin Douro States produz 35 rótulos, com onze referências de vinho do Porto.
Além de Portugal, os vinhos são vendidos em quatro estados brasileiros: Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina. A intenção é chegar ao número de 400 mil garrafas em 2025.
Toda a produção passa pela batuta do enólogo e diretor de produção da Menin, João Rosa Alves, com a consultoria do enólogo Tiago Alves de Souza, constantemente desafiados. “A cada vindima, surgem novos rótulos, a partir da análise do potencial das uvas”.
De toda a produção, Cristiano não esconde o carinho pelo Menin D. Beatriz, um blend com mais de cinquenta castas de vinhas velhas, cuidadosamente tratadas ao longo de cinco anos.
“É um vinho de excelência, lançado apenas em anos realmente especiais”, disse Cristiano. No mundo do vinho, é um processo parecido com o utilizado para a produção do Barca Velha, precursor dos vinhos tranquilos de alta qualidade em terras portuguesas.
O preço? Uma garrafa da safra de 2019 custa 197 euros e, dizem, vale cada gole vertido. Não à toa, foi premiado pela Revista de Vinhos no concurso Melhores do Ano de 2022. Nada mal para o primeiro vinho de alta gama da Menin.
Quem vê o reconhecimento, no entanto, talvez não saiba que, lá no início, os produtores locais viam o negócio com alguma desconfiança.
“Um investimento alto como fizemos traz questionamentos sobre a seriedade que envolve. Mas, hoje, estamos totalmente envolvidos com a comunidade e dá um imenso orgulho sermos brasileiros e estarmos ajudando no fortalecimento cada vez maior da região.”
De quebra, além da movimentação na economia e na aposta da sustentabilidade, a Menin faz questão de auxiliar em alguns projetos sociais por meio do Programa Acrescenta, dirigido ao desenvolvimento social, cultural e econômico da região.
“Temos um investimento para ser perene, de médio a longo prazo. A ideia não é apenas produzir vinhos. É tornar o vinho do Douro cada vez mais conhecido e apreciado”, concluiu Cristiano.
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