A cerca de duzentos metros da entrada do Morro do Livramento, onde nasceu Machado de Assis, em 1839, está o Cais do Valongo, o que sobrou do maior porto de desembarque de africanos escravizados das Américas e o segundo em fluxo de partida de navios negreiros. O local perdia apenas para o de Liverpool e era de onde saíam escravizados para outras cidades do continente americano. Apesar da proximidade com o local de seu nascimento e onde viveu até os 10 anos, o escritor não conheceu a estrutura, porque quando tinha 4 anos, a região, que fica entre os bairros da Saúde e da Gamboa, no Rio de Janeiro, passara por um embelezamento para a chegada de dona Tereza Cristina Maria, a segunda mulher de dom Pedro 1º (dom Pedro 4º, em Portugal).
O Cais do Valongo não era apenas um cais. Era um complexo onde funcionavam um hospital de quarentena para isolar as pessoas escravizadas recém-chegadas; casas de engorda, porque, definitivamente, os pretos trazidos não eram a prioridade entre os alimentados nos navios negreiros; armazéns de venda de pessoas; e um cemitério, basicamente valas comuns onde eram jogados os africanos que chegavam já sem vida ou que morriam logo após aportarem —e, claro, não sendo considerados gente não havia qualquer cerimônia que lhes respeitasse a fé ou a dignidade. Para se ter ideia barbaridade, se estima que para um vivo que chegava ao Rio de Janeiro outras quatro pessoas morreram pelo caminho.
Machado de Assis não viu —porque o espaço urbano sofrera mudanças por desejo do primeiro imperador do Brasil— mas foi pelo Cais do Valongo, e por todo o seu complexo, que chegaram os seus antepassados. Os avós do escritor eram pessoas escravizadas. E os pais deles estão na contabilidade que diz que um quarto de toda a gente levada à força para o Brasil —cerca de 4 milhões— passara por aquele lugar, hoje escavado e encravado no meio da cidade, como lembrança de um passado de que a humanidade deveria lembrar, se envergonhar, lamentar e assumir responsabilidades, como ocorre em Auschwitz. A diferença é que de Auschwitz o mundo não esquece. Já do Cais do Valongo, ninguém lembrou. Ele fora aterrado no início do século 20 para transformar o Rio de Janeiro na Paris dos trópicos, incluindo aí a ideia de branquitude —uma branquitude pela qual passou a memória do próprio Machado de Assis.
Lembro que na minha infância, quando tive o primeiro contato com o escritor, ele era branco. E lembro, da minha infância no Rio de Janeiro, não ver nem saber do Cais do Valongo, redescoberto apenas em 2011, aleatoriamente, durante obras de revitalização da região. Enquanto lembro do embranquecimento de Machado de Assis e escrevo este texto, ainda estou sob impacto da condenação de Claudia Simões, uma mulher preta, vítima de agressão —sim, vítima de agressão, mesmo que a Justiça portuguesa diga que não—, mas condenada, ela sim, por, ao tentar se desvencilhar da agressão, morder a mão do policial que a violentava. O policial agressor —e branco— foi inocentado.
Mesmo com a palavra de testemunhas e imagens do momento da agressão, a juíza considerou verdadeiro o “sou inocente” do policial agressor —e branco—, ignorando todo o resto. O desenlace deste julgamento faz quase acreditar no que ele disse a Claudia Simões, quando ela prometeu denunciá-lo: “Uma palavra de um branco tem mais peso que mil palavras de um preto.” O episódio faz quase acreditar na afirmação, mas resisto, porque: 1. Ainda há esperança nos recursos às instâncias superiores da justiça; e 2. Machado de Assis era um homem preto e um gênio das palavras e do seu uso da língua portuguesa, as mesmas palavras que o policial agressor —e branco— diz não valer. Vale. Machado de Assis está na galeria dos grandes nomes da literatura mundial, falando português, uma língua periférica e um sotaque periférico, e, repito, era preto. Eu só queria ter sabido disso antes.
A introdução desta carta, leitor, é para dizer que neste momento, apesar de devolverem a negritude de Machado de Assis, as palavras continuam em disputa, seja a palavra e o sotaque de Claudia Simões, nascida em Angola, seja a palavra e o sotaque falados no Brasil. As repórteres Déborah Lima, Stefani Costa e Graziele Frederico relataram na edição de julho da BRASIL JÁ como o modo de se expressar dos ex-colonizados é desvalorizado em círculos portuguesas, como a academia e as escolas, e como o jeito brasileiro de falar e escrever é alvo frequente na manifestação de xenofobia.
Por outro lado, a literatura brasileira ganha cada vez mais fãs, com traduções em inglês, francês e espanhol, tornando conhecidos e vendidos escritores brasileiros, puxado por Machado de Assis, mas não somente por ele. Surgem, agora em destaque, nomes, vários deles pretos, como Djamila Ribeiro e Conceição Evaristo, cujas palavras valorizam a língua e espalham-na a partir do Brasil para mundo. Um viva à língua portuguesa e boa leitura.