As mil palavras de um preto

Neste momento, a palavra continua em disputa, especialmente os sotaques vistos como periféricos

25/07/2024 às 10:16 | 3 min de leitura | Vozes em Destaque

A cerca de duzentos metros da entrada do Morro do Livramento, onde nasceu Machado de Assis, em 1839, está o Cais do Valongo, o que sobrou do maior porto de desembarque de africanos escravizados das Américas e o segundo em fluxo de partida de navios negreiros. O local perdia apenas para o de Liverpool e era de onde saíam escravizados para outras cidades do continente americano. Apesar da proximidade com o local de seu nascimento e onde viveu até os 10 anos, o escritor não conheceu a estrutura, porque quando tinha 4 anos, a região, que fica entre os bairros da Saúde e da Gamboa, no Rio de Janeiro, passara por um embelezamento para a chegada de dona Tereza Cristina Maria, a segunda mulher de dom Pedro 1º (dom Pedro 4º, em Portugal).

O Cais do Valongo não era apenas um cais. Era um complexo onde funcionavam um hospital de quarentena para isolar as pessoas escravizadas recém-chegadas; casas de engorda, porque, definitivamente, os pretos trazidos não eram a prioridade entre os alimentados nos navios negreiros; armazéns de venda de pessoas; e um cemitério, basicamente valas comuns onde eram jogados os africanos que chegavam já sem vida ou que morriam logo após aportarem —e, claro, não sendo considerados gente não havia qualquer cerimônia que lhes respeitasse a fé ou a dignidade. Para se ter ideia barbaridade, se estima que para um vivo que chegava ao Rio de Janeiro outras quatro pessoas morreram pelo caminho.

Machado de Assis não viu —porque o espaço urbano sofrera mudanças por desejo do primeiro imperador do Brasil— mas foi pelo Cais do Valongo, e por todo o seu complexo, que chegaram os seus antepassados. Os avós do escritor eram pessoas escravizadas. E os pais deles estão na contabilidade que diz que um quarto de toda a gente levada à força para o Brasil —cerca de 4 milhões— passara por aquele lugar, hoje escavado e encravado no meio da cidade, como lembrança de um passado de que a humanidade deveria lembrar, se envergonhar, lamentar e assumir responsabilidades, como ocorre em Auschwitz. A diferença é que de Auschwitz o mundo não esquece. Já do Cais do Valongo, ninguém lembrou. Ele fora aterrado no início do século 20 para transformar o Rio de Janeiro na Paris dos trópicos, incluindo aí a ideia de branquitude —uma branquitude pela qual passou a memória do próprio Machado de Assis.